Um casal de protagonistas apaixona-se perdidamente no primeiro ato de um filme. Talvez no segundo. E até o terceiro, enfrentam uma pluralidade de obstáculos para que, enfim, o amor prevaleça, colocando um ponto final nos problemas anteriores e dando lugar à concretização do relacionamento romântico. Essa é uma das fórmulas prediletas desde a invenção do cinema, antes disso no teatro, livros e contos narrados em poesias declamadas séculos atrás. A fórmula do romance idealizado funciona, pois aproveita-se de um dos maiores medos da humanidade: a solidão. Temendo a solitude, o ser humano pode ser facilmente conduzido. Essa ferramenta de entretenimento tanto pode ser um refúgio capaz de aquecer nossos corações como de alto teor manipulativo. Afinal de contas, produções em massa podem ditar beleza, comportamento e expectativas. Felizmente para a Netflix, “Megarrromântico” sabe navegar o universo de clichês enquanto quebra paradigmas.
Dialogando com clichês
A película brinca com uma gama extensiva de clichês do gênero da comédia romântica, desenrolando uma por uma sem que perca o tom ou nos aborreça. Toda leveza do filme e carisma dos atores e atrizes permite ao espectador que ele reconheça e divirta-se com o absurdo, que aqui desenvolve consciência meta e brinca com isso. É um conto de fadas no metaverso, visto através dos olhos de uma personagem repleta de inseguranças com a qual conseguimos nos relacionar. “Megarrromântico” traz Rebel Wilson numa personagem que deixou de acreditar no amor e no valor que este detém em sua vida, tornando-a cética e incrédula perante varias situações.
Ela interpreta Natalie, que após uma infância apaixonada por filmes de romance, escuta da própria mãe algo que muitas mulheres devem ter experienciado algum dia: que ela nunca será digna de um final feliz. Finais felizes não existem para mulheres que não atraem a cobiça masculina. Finais felizes não existem para quem não possui lábios, sorriso e carisma à altura de Julia Roberts. Finais felizes não existem para meninas fora dos padrões. É esta a primeira lição transmitida no filme e que ressoa por todo o restante dele através do comportamento de Natalie. A insegurança quanto a si mesma só perde para a certeza enraizada nas profundezas de sua psique de que ela não merece ser amada, ser atendida e elogiada.
A cicatriz dos padrões sociais
Sendo a protagonista desde a infância podada por sua mãe devido aos seus trejeitos físicos, percebe-se uma temática extrema e dolorosamente comum na vida real. Tão usual que chega a ser cruel. Desde a infância, as mulheres crescem sob a pressão estética de corresponder ao padrão do que é considerado belo. O valor feminino é mensurado de acordo com sua aparência e o quanto ela agrada o escrutínio da sociedade. Aquelas que fogem ao padrão costumam encontrar dificuldades em cada etapa de suas vidas, desde relacionamentos românticos e sociais até a procura de um emprego, guiada de acordo com a sua aparência física. E este é o norte que guia a jornada da cética protagonista. Desacreditada que seja importante o suficiente para ser amada, ela sofre as consequências de um juízo de valor que diminui mulheres por todo o mundo.
Rebel Wilson transmite com olhares e linguagem corporal o quão deslocada e submissa Natalie encontra-se nos lugares que habita, de sua casa até o ambiente de trabalho. Ela é uma arquiteta talentosa, porém estagnada numa subserviência que faz as pessoas se aproveitarem desse traço. E aqui “Megarrromântico” acerta novamente, num paralelo impecável com a vida real. A falta de autoestima deixa cicatrizes profundas e a película mostra uma porção delas com eficácia. No princípio de sua jornada, ela mal consegue encarar alguém nos olhos. Tende a literalmente abaixar a cabeça e obedecer pedidos absurdos dos demais colegas de trabalho que exploram sua incapacidade de dizer não. O ceticismo de Natalie quanto a romance e felicidade tem raízes na própria insegurança, coisa que acontece com várias e várias mulheres cotidianamente. Acostumadas a serem medidas por seus corpos e charme, aquelas à margem dos padrões tendem a agarrar-se em qualquer mecanismo de defesa que as proteja.
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Natalie, por sua vez, apega-se ao cinismo. Ela não acredita em amor, nem sequer se insere no rol de pessoas que merecem o experimentar. Possivelmente, por isso, passa o primeiro ato do filme realizando atividades que não são suas, sem saber se impor perante grosserias e incapaz de aceitar os convites de seu melhor amigo Josh (Adam Devine) para sair, por acreditar que seria nada mais do que um empecilho na diversão dele. Ela não acredita em si mesma e encara romance com certa aversão. E é depois de um acidente no qual ela sofre uma lesão na cabeça que vê todo seu universo ser transformado no seu pior pesadelo: o mundo perfeito das comédias românticas.
“Megarrromântico” brinca com metalinguagem de maneira divertida, usando da fantasia para que isto ocorra com maior profundidade conforme a trama vai evoluindo e a jornada da protagonista se estenda. É com êxito que presenciamos uma Rebel bastante confortável em interpretar uma personagem que a permite navegar pelo filme, sem que o texto escrito a prejudique com cenas absurdas ou que façam do seu visual algo a ser apontado como necessário de mudança pelos personagens com os quais contracena. É uma mulher bela cujo corpo foge dos padrões hollywoodianos— e, em vez de explorar tal fato negativamente, a enviando numa jornada pela repaginação física, somos enviadas num conto gratificante aonde a protagonista vai pouco a pouco percebendo ser digna de todo amor do mundo.
Enfim, a jornada em busca de si
Trata-se de uma abordagem mais intimista e divertida, na qual Natalie nos leva a uma reflexão sobre o quanto nos negligenciamos numa intensidade automatizada. Quantas vezes não perdemos oportunidades na vida não por, de fato, receber uma negativa ou sermos rejeitadas, mas sim por toda carga emocional que nos prende a uma área de conforto muito difícil de ser abandonada; um peso marcado em nossas peles, como uma ferida cujo ardor sempre nos faz lembrar sua existência. E sobre ela, o filme tenta nos transmitir, de modo divertido, que, no final das contas, amenizar a dor é uma tarefa que está em nossas mãos, tentando nos fazer lembrar de que nem tudo é como pensamos e às vezes o mundo nos aguarda lá fora com novas experiências gratificantes.
E essa é a aventura de Natalie, caminhando num mundo de clichês autoconscientes não para descobrir que seu valor está dentro de outro, não para entregar sua autoconfiança na dependência de elogios, não para que o romance seja um último sopro de validação objetiva. Olhar ao redor, na narrativa, evolui para um olhar interior. Olhar para si mesmo. Com carinho, amor, afeto. Quantas vezes nos negligenciamos? Quantas vezes nossas medidas de valor estão entrelaçadas aos outros?
“Megarrromântico” te leva a uma gostosa reflexão sobre olhar para si sob uma ótica mais suave. A perfeição é utópica e deve ser desconstruída — e por sorte dos apaixonados por comédias românticas, as últimas levas de filmes do gênero andam evocando o poder feminino, o abraçar do público a uma mulher por suas qualidades e falhas, fugindo de uma linha hollywoodiana que, por muito tempo, associou a felicidade da mulher com a subjugação e negligência da própria vida em favor do universo de seu amado. E que o cinema não regrida, mas continue avançando, elaborando protagonistas femininas que, mesmo numa comédia romântica levinha, mostrem que não somos acessórios na vida de outrem, mas sim as donas de nossas narrativas.
Confira o trailer de “Megarrromântico“, filme original da Netflix:
Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.