Mulheres que resistem com e através do cinema: paternidade ausente no cinema nacional

Mulheres que resistem com e através do cinema: paternidade ausente no cinema nacional

Alguns temas perpassaram os filmes curados e programados na mostra competitiva da 51ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Chama a atenção que várias produções tenham, de forma direta ou oblíqua, abordado a paternidade ausente ou suprimida para falar sobre o “feminino”. Sendo aquela uma edição que demonstrou estar atravessada por questões urgentes do debate político atual do país, as mulheres impactadas pela ausência da paternidade foram figuras que estruturam os roteiros dos longas-metragens ficcionais “Los silêncios” (de Beatriz Seigner), “A sombra do pai” (de Gabriela Amaral Almeida), “Temporada” (de André Novais) e do curta “Eu, minha mãe e Wallace” (dirigido pelos irmãos Carvalho).*

É, portanto, a partir desses filmes que nos debruçaremos para esmiuçar, através da estética e da linguagem cinematográfica, os fenômenos que emulam o assombroso número revelado pela pesquisa realizada em 2013, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com base no Censo Escolar de 2011: há mais de cinco milhões de crianças matriculadas no sistema educacional brasileiro, público e privado, sem o nome do pai no registro.

Eu, minha mãe e Wallace

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Cena de “Eu, minha mãe e Wallace” (Imagem: reprodução)

O curta-metragem “Eu, minha mãe e Wallace” traça um panorama imagético que busca construir, através da busca pela obtenção de uma fotografia, laços afetivos e de memória entre dois elos que o protagonizam e que não se conheciam até uma determinada véspera de festejos natalinos. O primeiro ato parte do ponto de vista de Wallace (Fabricio Boliveira), recém-chegado, e acompanha seu percurso para ir ao encontro de Vanessa (Noemia Oliveira) e sua filha (Sophia Rocha). O caminho enevoado pelas vielas da favela que culminam na casa dessa mãe solo põe, desde a cena inicial, a câmera de Safira Moreira (que assina a direção de fotografia) sempre à espreita, a observar aquele corpo masculino que vagueia, sem muita certeza e esperança, por um lugar que já foi seu lar.

Vanessa e a filha vivem confinadas numa pequena casa em que precisam se adaptar para, sem a figura paterna, darem conta da realidade hostil que coloca à margem mães que criam sozinhas seus filhos. O estrangeirismo de Wallace naquele seio familiar, em que ele tem dificuldade (simbólica e física) de se reintroduzir, nos leva a indagar os motivos pelo qual somente depois de tantos anos ele busca por essas mulheres. Ao mesmo tempo, a personagem interpretada por Noemia Oliveira quebra a quarta parede e confronta Wallace, olhando frontalmente para a câmera, convidando a espectadora a se colocar em seu lugar: o da mulher que tem que fazer o impossível para arcar com as heranças uterinas de uma sociedade que vilaniza apenas as mulheres pela concepção de um filho.

A proposta naturalista fica evidenciada pela montagem cadenciada, que amarra os três atos de forma a conferir um ritmo de fluxo contínuo, aliado à direção de arte e figurino assinados por Cleissa Regina, formando um mosaico de “memorabilia” que conformam o roteiro. Em um ano em que o vice-presidente do Brasil (na época ainda candidato) declarou que as casas “onde não há pai e avô, mas apenas, mãe e avó” são “fábricas de desajustados”, o filme dos Irmãos Carvalho se revela urgente para levantar o debate sobre a (r) existência das mulheres.

Los Silencios

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Cena de “Los Silencios” (Imagem: reprodução)

De forma semelhante, “Los Silencios” investiga uma família que tem o convívio de parentes ceifado devido ao desaparecimento do marido da protagonista Amparo (Marleyda Soto), o que faz com que ela busque asilo político na Ilha da Fantasia, localizada na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Por mais curioso que possa parecer, esse lugarejo mágico, que transborda em águas, de fato existe e permite que a ficção elaborada por Beatriz Seigner possa conjugar elementos documentais para imprimir na tela uma denúncia sobre o extermínio de viés político-ideológico-partidário que assola inúmeros países da América Latina.

No tour de force que visa uma indenização e a possibilidade de entrada no Brasil para tentar reconstruir a vida, os silêncios vão dando conta de preencher, através de recursos imagéticos, as inúmeras saudades e a imensidão de injustiça que as ditaduras militares impõem às vidas de Amparo e seu filho (Adolfo Savinvino) de apenas nove anos de idade. Com uma direção de atores primorosa conjugada à fotografia da colombiana Sofia Oggioni, é nas cenas noturnas que o filme ganha elementos fantásticos e a narrativa surpreende ao deslocar o centro do roteiro para o não visto, para os elementos invisíveis da alma humana, para os fantasmas que habitam cada pessoa e suas culturas.

Ao propor o diálogo com uma filmografia que remete ao imaginário de crianças para lidar com a perda, temos aqui também um filme sobre mulheres tentando subverter a realidade que subtrai a figura paterna para dar conta da criação dos filhos de forma digna, embora solitária. Porém, é na sororidade e no apoio de uma anciã da Ilha que a protagonista vai, com efeito, encontrar o amparo que necessita.

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A Sombra do Pai

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Cena de “A sombra do pai” (Imagem: reprodução)

Em outra chave, encontramos “A Sombra do Pai“, no qual a diretora e roteirista Gabriela Amaral Almeida pretende fabular sobre classe e gênero através das concepções de mundo de Dalva (Nina Medeiros), uma criança órfã de mãe que precisa “virar adulta” porque o pai não dá conta de (sobre) viver sem a esposa. De todos aqui listados, esse é o único filme em que a figura paterna está organicamente presente na narrativa sob esta alcunha. É interessante ressaltar esse contraste, pois, afinal, os filmes postos em diálogo nesse texto nos propõem que a masculinidade tóxica acaba por esvaziar os homens de potência e pulsão de vida se ao seu lado não há uma figura que o complemente de forma subserviente. No caso, a imagem feminina espelhada na mãe de seus filhos.

Para dar corpo à narrativa, a opção pelo horror se pronuncia visando dar conta de uma realidade em que as condições precárias de trabalho ajudam a minar toda e qualquer perspectiva de futuro desse pai sorumbático, interpretado por Julio Machado. O trabalho de som e a trilha sonora conferem a atmosfera pouco acolhedora que o roteiro vai aos poucos desvelando. O alento da menina protagonista, por sua vez, só é encontrado em outra mulher, sua tia Cristina (Luciana Paes), que de certa forma também é refém da estrutura patriarcal e, portanto, busca um marido para cristalizar sua própria família. É, portanto, na fantasmagoria que Dalva pretende escapar do caminho desprovido de afetos que o destino lhe reserva.

Temporada

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Cena de “Temporada” (Imagem: reprodução)

Por fim, numa perspectiva mais libertadora, temos Juliana (Grace Passô), protagonista de “Temporada“, que ao passar num concurso para agente de combate a endemias se muda de Itaúna para a periferia de Contagem (MG). De acordo com o dicionário, endemia “é a ocorrência de uma determinada doença que, no decorrer de um largo período histórico, acomete sistematicamente grupos humanos distribuídos em espaços delimitados e caracterizados, mantendo a sua incidência constante”. Estaríamos, portanto, vivendo uma epidemia social de abandono de lares por parte dos homens? Que homens e que mulheres especificamente estão marcados nas categorias como agentes e pacientes dessa equação? “Temporada” é um filme que emula inúmeras perguntas e sua maior grandeza é não se preocupar em digerir respostas.

Juliana passa parte do filme à espera do marido até que, em determinado momento, revela um segredo que a liberta para seguir adiante. Esse segredo tem relação com a expectativa do marido (sempre fora de quadro) sobre uma concepção de “família tradicional” que ainda reserva enorme sofrimento, caso essa premissa, por algum motivo, se rompa. Nesse sentido, uma jornada da heroína é empreendida magistralmente pela personagem de Grace Passô, que emprega, com visceralidade, uma atuação contida para desabrochar todas as angústias e os pequenos maravilhamentos que perpassam a rotina de Juliana.

A reconexão consigo mesma a partir de novos encontros e possibilidades, ressignificadas após suas constantes transformações, vão ditando o ritmo de uma narrativa calma e orquestrada por uma trilha sonora de clarinetes. Assim como nos filmes de Eric Rohmer, o diretor e roteirista André Novais filma o cotidiano de forma a sublinhar aquilo que é mais fascinante: a beleza e a potência dos encontros sem tintas farsescas, pois sobreviver com as imagens é preciso.

* Texto originalmente publicado no site da Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema por ocasião em que fiz parte do júri da crítica do 51ª Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. 

Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Aquariana, mora no Rio de Janeiro, graduada em Ciências Sociais e em Direito, com mestrado em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ, curadora do Cineclube Delas, colaboradora do Podcast Feito por Elas, integrante da #partidA e das Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Obcecada por filmes e livros, ainda consegue ver séries de TV e peças teatrais nas horas vagas.
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