Em “A Vida Invisível“, Guida (Julia Stockler) é uma jovem ousada e desafiadora. Quer ser dona de sua vida, tomar suas próprias decisões. Eurídice (Carol Duarte) é tímida e ingênua. Segue as regras impostas pelo pai com resignação. Essas duas irmãs, embora com temperamentos diferentes, têm um laço muito forte uma com a outra.
Após Guida sair de casa atrás de um grande amor, o pai a expulsa da família e conta várias mentiras para que as irmãs não se vejam mais. Porém, as duas passam a vida inteira pensando uma na outra e fazendo esforços para se reencontrar.
“A Vida Invisível“, dirigido por Karim Aïnouz (“O Céu de Suely”), é baseado no recente livro de Martha Batalha, “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” (2016), que conta uma história comum a muitas mulheres de classe média brasileira na década de 50. Entretanto, diferentemente do livro, a adaptação cinematográfica segue pelo estilo do melodrama, focando apenas nos aspectos trágicos da vida dessas mulheres e cortando as partes mais alegres de seu cotidiano.
Essa escolha, por um lado, permite criar um potente retrato dos efeitos do patriarcado. Dessa maneira, o grande triunfo do filme é apontar o machismo como o grande e único responsável pelas tragédias ocorridas na vida das duas, e não por um infortúnio ou azar na vida. É imprescindível admitir isso como o primeiro passo para a mudança. Além disso, é importante que um filme dirigido por um homem traga essa questão de forma bastante clara.
O machismo corrói tanto todos os âmbitos da vida pública e privada, que a mãe de Eurídice tem que se aliar às mentiras contadas pelo pai para não ser ela mesma o alvo das consequências. A amiga mais experiente, Zélia, até oferece uns conselhos sobre sexualidade, mas sempre com julgamento por trás.
A única aliança feminina desafiadora que vemos em “A Vida Invisível” é a amizade de Guida com Filomena (Bárbara Santos), uma ex-prostituta que se torna cuidadora de crianças, e que tem uma mente a frente de seu tempo. É uma pena que ela apareça pouco e seja vítima de suas próprias tragédias também, mas sua presença é revigorante. Ela inclusive diz a Guida “ninguém precisa de homem pra se divertir“.
De fato, Guida não consegue explorar sua sexualidade de forma satisfatória, porque todos os homens só ligam para o próprio prazer, e nem sequer contemplam a possibilidade de que a mulher deva ser digna de algum também. E ainda há o fator da gravidez, numa época anterior à pílula anticoncepcional, onde as mulheres tinham que arcar com todas as consequências da reprodução compulsória (algo que infelizmente ainda persiste hoje, com minúsculos avanços).
A vida sexual de Eurídice é uma tragédia maior ainda. Ao chegar totalmente inexperiente no casamento, algo comum e desejado naquela época, ela sofre nas mãos do marido Antenor (Gregório Duvivier). A cena da noite de núpcias é filmada de forma tragicômica. Porém, o riso logo dá lugar ao nó na garganta, ao notarmos que se trata basicamente de um estupro. Quantas mulheres devem ter passado por aquilo em suas vidas cotidianas? Quantas não devem passar ainda hoje em dia?
Ao fazer um retrato realista do machismo, o longa “A Vida Invisível” vai na direção certa, mostrando como não existe saída para as mulheres dentro do patriarcado. Não importa qual caminho elas sigam, jamais haverá a possibilidade de felicidade plena dentro desse sistema.
Guida, que se rebela, é punida com o abandono, a pobreza, e o bloqueio institucional em diversas instâncias. Eurídice, que segue todas as regras, se casa e vira dona de casa, também tem uma vida extremamente infeliz, tendo sempre que servir aos outros antes de si mesma, e sendo impedida se seguir os caminhos profissionais com que tanto sonha.
“A Vida Invisível” arrancará lágrimas das espectadoras, e pode fazer com que muitas e muitos levem o impacto do machismo mais a sério, se dando conta de tudo que ele causou na vida de nossas avós, mães, e infelizmente ainda na de muitas mulheres jovens hoje em dia.
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O que incomoda é que o sofrimento feminino já foi retratado na arte incontáveis vezes. Não há nada de novo ou subversivo nisso. O filme se abster de mostrar o elemento realmente subversivo, que é a felicidade das mulheres, faz dele um produto muito “seguro” de ser exibido, mesmo nos tempos radicalmente polarizados de hoje. Mesmo a insubordinação de Guida, a irmã rebelde, não chega a ser ameaçadora, pois ela é devidamente punida por sua transgressão.
Essa é a fraqueza do melodrama, da tragédia. Ela retrata a impotência, a tristeza, o sofrimento. Dá para sair com muita raiva ou muita dor no coração da sessão de cinema, mas dificilmente com a exaltação que impele à ação transformadora.
O filme de Karim Aïnouz é muito competente tecnicamente, conseguindo evocar o forte elo entre as irmãs mesmo elas tendo pouquíssimas cenas juntas. O bom trabalho das atrizes também contribui para isso, com destaque para a excelente atuação de Julia Stockler como Guida. A bela fotografia, a música, o compasso da montagem que deixa a trama cada vez mais tensa, tudo contribui para que sintamos vividamente o drama daquelas mulheres.
Entretanto, mostrar o sofrimento feminino dessa maneira serve apenas como forma de acordar quem ainda não se tocou de que ele existe com essa magnitude. Apesar de podermos nos identificar com essas histórias, já temos retratos demais do sofrimento das mulheres na arte, desde os tempos mais remotos.
É especialmente cruel quando homens pegam uma história feminina, escrita por uma mulher, e decidem que só os aspectos tristes merecem ser adaptados. E ainda mais: mudando várias coisas na história para que ela se torne ainda mais dramática e sofrida. Esse é o único aspecto da vida das mulheres que parece interessante de se retratar? Essa escolha parece confortável demais para os homens, pois mulheres subjugadas e humilhadas não ameaçam sua posição de poder no mundo. Os realizadores do filme certamente tinham boas intenções, mas, de qualquer forma, estamos a todo momento reproduzindo as mensagens prejudiciais com que fomos criados, sem sequer perceber. Já passou da hora dos artistas se informarem melhor sobre as discussões contemporâneas e como isso se reflete em suas obras.
O que mais precisamos agora é ver mulheres alegres, que se divertem, lutam e desfrutam de momentos felizes, apesar de todo o machismo que ainda temos que enfrentar. O livro de Martha Batalha tem esses elementos, e felizmente deve ter suas vendas alavancadas com o sucesso do filme. Como diria Geena Davis, “se ela pode ver, ela pode ser“. Necessitamos ver mulheres felizes para saber que a felicidade existe, e que temos o direito de querê-la em nossas vidas. Cansamos de só ver mulher sofrer na tela do cinema.
“A Vida Invisível” está em cartaz na programação da 43ª Mostra de Cinema de SP, que acontece entre os dias 17 até 30 de outubro. O longa também será exibido no próximo Noitão do Petra Belas Artes, que ocorre dia 25 de outubro. Nos cinemas, o filme estreia no dia 21 de novembro.