“Elisa e Marcela” e o amor entre mulheres no século 19

“Elisa e Marcela” e o amor entre mulheres no século 19

Eu só acredito nas coisas que se movem“. Um cavalo que corre no litoral, uma pedra jogada contra o ser que se julga pecar, o fôlego de um amor que se recusa a perder. Baseado em uma história real repleta de grandes lacunas e mistérios, “Elisa e Marcela” entrega nas mãos de Isabel Coixet, diretora e roteirista, em parceria com o maior biógrafo das duas, Narciso de Gabriel, a árdua tarefa de reconstruir, poeticamente e nem tão presa aos fatos, um registro histórico de recusa à inexistência e à invisibilidade.

Quase um século e meio atrás, Elisa e Marcela driblaram não apenas uma sociedade preconceituosa e violenta com mulheres, mas o sistema religioso que alimenta a exclusão e a perseguição à homoafetividade. Em uma igrejinha nos arredores de um vilarejo na Galícia, comunidade autônoma espanhola, uma cerimônia de casamento breve e simples teve muito mais potência pelo seu significado.

História real

Marcela Gracia Ibeas e Elisa Sánchez Loriga eram duas professoras da região da Galícia. Elas haviam se conhecido quando ainda eram estudantes. O falatório pela intimidade da relação das duas, que conviviam como um casal e dividiam a mesma casa, fizeram com que elaborassem o plano de transformar Elisa em seu primo falecido em um afogamento, Mario, e convencer o pároco da província vizinha, que acreditou serem homem e mulher, a realizar e celebrar o casamento das duas.

Marcela Gracia Ibeas e Elisa Sánchez Loriga em sua foto de casamento (Imagem: reprodução/La Opinión A Coruña)

A cerimônia aconteceu em 8 de junho de 1901 e, mesmo Elisa continuando a se apresentar e agir como Mario, a perseguição e falatório seguiram, o que levou as duas a fugir para Portugal. Lá, foram detidas poucos meses depois, em 16 de agosto do mesmo ano. Marcela estava grávida e nada se sabia do pai da criança que nasceu em 2 de fevereiro de 1902. Após o parto, com a ajuda de alguns membros da polícia em Porto, elas fogem para a Argentina sem a bebê e pouquíssimo se tem certeza da história delas a partir daí.

O casamento de Elisa e Marcela nunca foi anulado, mas não se sabe, na realidade, se a busca pela celebração foi uma proteção de Elisa, a amiga, à Marcela, grávida fora de um casamento, ou se de fato foi um ato de amor entre duas mulheres buscando a legitimidade de estarem juntas – esta última possibilidade mais defendida pelo biógrafo e a apresentada por Coixet no longa.

Elisa e Marcela
Elisa (Natalia de Molina) e Marcela (Greta Fernández) (Imagem: reprodução/Netflix)

Em 1885, Elisa (Natalia de Molina) e Marcela (Greta Fernández) se conhecem na escola de freiras que ambas frequentam. Entre o sutil e o óbvio – pela implicitude de um amor à primeira vista -, a amizade se desdobra na intimidade de querer uma à outra que não se sabe poder querer, mas que fazem poder: é esta a potência desse amor delicado em sua luta.

Em nenhum momento há o pensamento de desistência na busca por uma forma de permanecerem juntas. Seja reclusas à casa que dividem agindo para os outros como apenas amigas, seja na ansiedade de conseguirem pelo menos dividirem a mesma cela quando são condenadas por sua jornada, a separação não é uma opção.

Estética e poética na narrativa de “Elisa e Marcela”

Com uma fotografia impecável de pretos, brancos e luz que conversa com a trilha sonora sutil, a história do primeiro casamento entre mulheres na Espanha é construída narrativamente de uma forma poética não usual nos filmes que recontam amores entre mulheres, escassos não apenas das produções audiovisuais no geral, mas também de produções de narrativas subjetivas e imersivas.

Principalmente na primeira metade do filme, o roteiro de “Elisa e Marcela” encaixa poucos diálogos longos entre personagens que não sejam as protagonistas. Caminhando por um corredor da escola, entre dois quartos ou uma praia, as inserções de falas dos pais de Marcela ou das freiras são pontuais – ainda que potentes e dolorosas em seu significado e sempre permeadas por sombras mais incisivas.

Quando se separam forçadamente, o jogo de luzes, sobreposições e dupla exposições para leituras de cartas que marcam a passagem de anos atravessa a tela primeiro com estranhamento, pela rapidez com que a sutileza implícita do amor entre elas se torna mais explícita e urgente, mas o que toda a estética artístico-documental e quase não linear diz sobre representação e identidade?

Isabel Coixet
Cena de “Elisa e Marcela” (Imagem: reprodução/Netflix)

Amadurecimento através do tempo

Um romance através dos anos, observamos nas cenas o passar de décadas – da primeira palavra trocada até o casamento já se vão 16 anos – que transformam as protagonistas sem o uso de uma grande reviravolta como marca. É fato que a jornada inteira das duas é permeada por violências que servem como pontos de ancoragem, mas nenhuma é apresentada como um marco para a mudança emocional e psicológica delas.

Elisa, na primeira metade do filme, é a grande sonhadora que almeja fugir do lugar onde se encontra, que desacredita da existência de divindades mesmo vivendo em um ambiente religioso. A evolução da personagem vê a força com a qual questiona a sociedade patriarcal e misógina carregar nos braços um amor arrebatador por Marcela, a súplica de que Marcela não tem culpa, que a poupem de tudo, que condenem apenas Elisa.

Na outra ponta da relação, Marcela, a mais nova, passa por um processo de amadurecimento que não é pontuado solidamente. Percebemos apena um pouco de cada vez como a adolescente ingênua e quieta se transforma com feições mais duras e cansadas de não encontrar paz e sossego com o amor de toda uma vida. Quando pensamos que o cansaço finalmente vencerá e ela desistirá de ser perseguida, numa cena que também é o ápice do amor incondicional de Elisa, Marcela toma a decisão ainda mais difícil de sua vida: continuar com Elisa.

Elisa e Marcela
Cena de “Elisa e Marcela” (Imagem: reprodução/Netflix)

O amor entre mulheres que estranha

Seria um polvo uma melhor forma de amor? Símbolo da Galícia, presente em toda a cultura e culinária da região, o polvo também pontua sutilmente o filme, como plano de fundo de cenas das duas na praia, dentro da água e na cozinha da casa em que vivem. O polvo também aparece grudado ao corpo das duas em uma das cenas de intimidade.

A cena causa estranhamento, a sensação de asco ou nojo em alguns que assistam. Porém, também estranhamente, a cena parece encaixar na narrativa de intimidade e de retrato histórico e regional que o longa inteiro consegue segurar. Para além de um recurso estético, que beira o bizarro para nós na contemporaneidade e em outro contexto de higiene, a presença do polvo ali reforça a marcação do tempo e do local em que Elisa e Marcela Vivem.

Todas as cenas de relação íntima entre as duas são permeadas pelo movimento lento e sem pressa de descobrir como viver um amo proibido e inevitável; mãos que desatam os nós de um espartilho e desabotoam uma saia comprida da virada do século passado. Recheadas de uma beleza rica nos closes em detalhes e nos olhares silenciosos que trocam, houve quem se questionasse, pelo longa, se àquela época havia tanto conhecimento do corpo e dos prazeres entre duas mulheres.

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A resposta está na primeira cena do longa. A voz de Elisa soa com as suas costas na tela: “Quem eram essas mulheres cujos nomes eram ditos baixinho quando pensavam que eu não estava ouvindo?“. É preciso entender que os conhecimentos sobre o corpo de mulheres sempre perpassaram mulheres desta forma, sendo sussurrados entre amigas e confidentes, por mais que tenham sido apagados e deslegitimados pelos homens que se consideravam donos da história e da ciência.

A invisibilidade a que as relações entre mulheres foram relegadas traz o reflexo deste pensamento, de que a troca de prazeres não pudesse se assemelhar com o que temos hoje e entender onde, como e de que forma tocar o corpo da outra não é uma construção moderna que ponha em cheque a representação apresentada pelo filme, mas sim um entendimento de mulheres que amaram outras mulheres “baixinho” através dos séculos e fomos condicionadas a acreditar que não.

O que é que se move?

Isabel Coixet escolhe transformar esta história de lacunas que até hoje encontra novos fatos em uma história de amor e luta. A decisão em dar um final feliz à Elisa e Marcela e desenhar um amor arrebatador que não enxergou limites ao recusar a pressão para que não continuassem juntas é um lança-chamas no incêndio de amores que, antes que falássemos em lutar por direitos, lutaram pela existência entre apedrejamentos e perseguições sociais e criminais.

A narrativa começa e termina com a filha, Ana (Sara Casanovas), finalmente encontrando a mãe, décadas após ter sido deixada em Porto, “para uma vida melhor”, quando Marcela decide seguir com Elisa para a Argentina. Ela deseja saber de tudo. “É impossível saber tudo“, Marcela responde antes de contar sua história. Elisa não está presente.

Ao fim do relato, Ana questiona a mãe, agora uma senhora de idade, se a prisão, a perseguição, a violência e o medo que enfrentaram valeu a pena, se ainda assim tudo valeu a pena. Elisa, que sempre sonhou em cavalgar um cavalo no litoral, vem a galope no horizonte. Sem responder a filha, Marcela se levanta para receber a mulher com quem tem dividido a vida. O amor das duas é a coisa que se move.

Isabel Coixet
Cena de “Elisa e Marcela” (Imagem: reprodução/Netflix)

Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

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Jornalista, fotógrafa, feminista e lésbica cearense. Ariana torta e viciada em qualquer série, filme ou livro que tenha mulheres amando mulheres, tem voltado sua atuação à defesa dos direitos humanos e à luta por visibilidade e representatividade lésbica. Não dispensa uma pizza ou uma balinha de gengibre das que vendem no ônibus. Nas horas vagas se atreve a escrever ficção científica.
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