As Golpistas: um olhar feminino sobre strippers

As Golpistas: um olhar feminino sobre strippers

Baseado no artigo “The Hustlers at Scores“, escrito em 2015 por Jessica Pressle, “Hustlers” (“As Golpistas” no Brasil) é um filme sobre strippers, escrito e dirigido por Lorene Scafaria, com ausência marcada no Oscar. Muitas plataformas de entretenimento questionaram por quê a Academia teria deixado de indicá-lo para concorrer em alguma das categorias da premiação. Esse fato pode ser visto simplesmente como mais uma atitude machista dentro do cinema.

O filme conta a história de um grupo de mulheres que trabalhavam como strippers e desenvolvem um modo de ganhar dinheiro fácil em meio à crise de 2008. À convite da jornalista Elizabeth (Julia Stiles), Dorothy/Destiny (Constance Wu) conta como foi sua trajetória e como conheceu sua parceira Ramona (Jennifer Lopez).

AVISO: O texto abaixo contém spoilers do filme

Visão feminina do strip tease em “As Golpistas”

Ramona (Jennifer Lopez) e Destiny (Constance Wu) em "As Golpistas"
Ramona mostrando movimentos de pole dance para Destiny (Foto: reprodução)

No senso comum, as strippers podem até serem comparadas à prostitutas, mas suas realidades são diferentes. A vida das mulheres que trabalham no clube é difícil como a de qualquer outra: elas têm namorados ciumentos, filhas pequenas para criarem sozinhas e familiares que dependem de seu auxílio financeiro. As strippers estão em constante luta para que os homens não encostem em suas partes íntimas com intuito sexual ou as beijem – elas se dispõem apenas a provocá-los, não a fazer sexo com eles, pontuando a principal diferença entre elas e as prostitutas.

Em “As Golpistas”, Dorothy parece ter como família apenas a avó (Wai Ching Ho), a quem tem muito apreço e tenta de todas as formas ajudar. Ela começa a trabalhar em um clube de strip tease, mas não tem a malícia que o trabalho espera. Então, decide pedir ajuda à Ramona, uma das mais experientes do ramo e uma das mais admiradas por Dorothy. Ramona é mãe solteira e sonha em fazer sua própria linha de biquínis. Mesmo sabendo pouco sobre sua vida, a personagem consegue conquistar a empatia do público rapidamente, mostrando-se uma mulher determinada e empática com suas colegas.

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A amizade entre as duas é bem construída, pois elas sabem dos desafios e apertos que cada uma passa e estão sempre prontas a se ajudarem – são como “dois furações”, como elas mesmo dizem. O clube em si é uma grande família, tanto que a mulher que o administra (Mercedes Ruehl) é chamada carinhosamente de “mãe” pelas dançarinas.

A rede de apoio afetivo trazida no filme mostra-se de extrema importância para as mulheres que trazem relatos de constante humilhação e indiferença de outras pessoas. Sem sombra de dúvidas, o fato de ter sido dirigido e roteirizado por uma mulher possibilita o lado humanizado das profissionais vir à tona, como também pontuam as atrizes. 

Mãe solteira e stripper

Annabelle (Lili Reinhart), Ramona (Jennifer Lopez), Mercedes (Keke Palmer) e Destiny (Constance Wu) em cena de "As Golpistas"
Annabelle (Lili Reinhart), Ramona, Mercedes (Keke Palmer) e Destiny em “As Golpistas”. (Foto: reprodução)

Associada à crise e a queda de movimento no clube, Dorothy recebe mais uma bomba: descobre que está grávida de Johnny. Ele promete cuidar dela e não abandoná-la, mas é claro que não é o que acontece. Destiny tem que cuidar da filha sozinha, apenas com auxílio da avó. Com a situação financeira apertando e sem tem para onde correr, ela decide voltar ao trabalho no clube, onde reencontra Ramona e se espanta com o esvaziamento do lugar.

No reencontro, as duas entendem que podem voltar a trabalhar juntas. Elas não se importam se o trabalho for ilegal ou não, contanto que estejam trazendo dinheiro para casa, a fim de cuidar de suas filhas. O lado protetor e materno das personagens as acompanha em todo o longa. Mesmo que estejam sem suas filhas, agem como mães das companheiras, sempre as protegendo de alguma forma. A maternidade traz um tom de complexidade no trabalho das strippers e as humaniza para o público: não é só sobre mostrar o corpo, é sobre conseguir dinheiro para criarem sozinhas suas filhas.

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A crise de 2008 e o golpe

Ramona Jennifer Lopez em "As Golpistas"
Ramona ao ser surpreendida pela polícia. (Foto: reprodução)

Os homens que frequentavam a casa de strip tease e gastavam mais de 10 mil dólares com as strippers eram, geralmente, homens que trabalhavam em Wall Street. Portanto, quando a crise de 2008 os atingiu, a frequência de suas idas ao clube diminui significativamente. A ausência desses clientes fiéis fez com que a maioria das funcionárias tivessem que procurar outros trabalhos para se sustentarem. Quando Destiny decide retornar ao clube, se vê em outro ambiente: agora as dançarinas eram predominantemente russas ou de outras nacionalidades, e estavam recebendo para fazerem sexo oral e coisas cada vez mais violentas. É interessante pensar aqui que o trabalho informal agora está cada vez mais tomado por imigrantes, retratando a dura realidade dessas trabalhadoras, muitas vezes ilegais, no país.

Os homens estavam mais “exigentes” e violentos. Por conta disso, notamos a dificuldade que as strippers passam para serem respeitadas. É nesse contexto de abusos e dificuldade financeira que Ramona, Destiny, Mercedes (Keke Palmer) e Annabelle (Lili Reinhart) elaboram um modo de receber as mesmas quantias de antigamente e não precisarem se prostituir para isso: fazer com que os homens ricos se interessem em ir ao clube, drogá-los e conseguir pegar a maior quantia possível de seus cartões de crédito.

O golpe funcionou várias vezes e já que a maioria dos homens que caíam eram casados, não iriam atrás do dinheiro, muito menos atrás da polícia. Elas conseguiram uma estabilidade financeira muito boa, mas claro, nem tudo são rosas e elas acabaram sendo denunciadas. Mais uma vez o lado maternal de Destiny pesa mais e ela acaba assumindo o crime , enquanto as outras colegas pegam penas curtas mas acabam presas.

Abordagem sensível sobre assuntos pertinentes

Cena de "As Golpistas"
Ramona se apresentando no clube (Foto: reprodução)

De modo geral, “As Golpistas” aborda de forma sensível e empática diversos temas atuais extremamente importantes. O primeiro deles, claro, é a dificuldade de ser mulher e trabalhar com o corpo. Elas ainda têm que lidar com problemas em serem respeitadas e como são vistas socialmente, além das dificuldades nos relacionamentos que as strippers passam. O problema da imigração e da hiper sexualização de mulheres de beleza “exótica” é outro ponto: Dorothy é asiática e é Ramona mesmo quem diz que ela é “um perigo” para os homens. As russas que assumem o lugar das funcionárias antigas no clube também reforçam esse desejo masculino por imigrantes e o problema da precarização de seus trabalhos.

Além disso, a masculinidade tóxica também é assunto do filme, já que os maiores frequentadores dos clubes são homens, principalmente casados. É como se precisassem frequentar aquele espaço com os amigos para exibirem sua virilidade, além de se mostrarem cada vez mais violentos após a crise, exigindo sexo oral e outras coisas.

O filme de Scafaria é revolucionário no que diz respeito à visão feminina sobre uma profissão tão inferiorizada. Durante todo o longa é relembrado o fator humano, feminino e até maternal das strippers. No entanto, o longa poderia conter um teor ainda mais crítico sobre a ideia de “libertação sexual”, para não ficar no limbo do feminismo liberal. Entretanto, o simples fato de não ter sido dirigido por um homem contribui para uma construção mais potente e verossímil.


Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.

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Psicóloga, mestranda e pesquisadora na área de gênero e representação feminina. Riot grrrl, amante de terror, sci-fi e quadrinhos, baterista e antifascista.
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