O feminismo é branco: uma análise em tela da Segunda Onda Feminista

O feminismo é branco: uma análise em tela da Segunda Onda Feminista

Por vezes, parece que o movimento feminista não evolui. Parece que não apenas o alcance do movimento, mas suas próprias políticas de combate, estão parados no tempo e no espaço. Assim, não é possível aumentar sua incidência efetiva de forma a mudar o sistema político, social e ambiental atual. Ao assistir ao filme “Misbehaviour” (2020) e a série “Mrs. America” (2020 – ), da FX – visto que ambos se passam nos anos 1970 (em meio a segunda onda feminista nos Estados Unidos) – é impossível não aprender e comparar os discursos, conquistas e desejos da época com as pautas atuais do feminismo. Não cabe mais, entretanto, permanecermos em uma posição passiva e nos contentarmos em apenas assistir a revolução (passada), mas não trazê-la à atualidade.

Em relação a Misbehaviour (2020), o foco da discussão é o concurso de beleza Miss Mundo de 1970, sobre o qual o filme apresenta uma visão distinta dos jornais. Além de ter sido palco de uma das primeiras manifestações feministas vistas pelo grande público (se não, a primeira), foi também o cenário de um fato histórico: a primeira vitória de uma mulher preta em um concurso de beleza.

Mulheres Pretas como objeto de desejo: a dupla face do patriarcado racial

De início, o objeto de discussão da trama parece ser mais uma visão superficial e raivosa de feministas e do feminismo em si. Afinal, as protagonistas da parcela do movimento mostrada na trama são majoritariamente brancas e fazem jus ao meio real no qual estavam inseridas na época, um meio misógino e amplamente excludente. A princípio, a escolha de lados em uma demanda contra a objetificação feminina (através de concursos de beleza) parece óbvia, não é? Na trama, e pensamos ser este o seu cerne, somos convidadas a questionar essa opinião.

Na imagem, estão 5 personagens do filme, lado a lado, encostadas em uma parede.
Cena de “Misbehaviour” (imagem: reprodução)

O que muitas mulheres (e isso não é um exagero) inseridas no movimento feminista não se dispõem a fazer, apesar das diversas ferramentas de busca e autoconhecimento disponíveis hoje em dia, é entender que existem outras realidades além das suas imediatas. Isso, em verdade, se insere desde fatos complexos até os (aparentemente) simples. No filme em questão, não se discute apenas o papel de um concurso de beleza na visão social sobre a mulher, mas sua função na percepção da mulher preta nessa mesma sociedade. Tais fatos ocorrem em meio ao movimento pelos Direitos Civis, nos Estados Unidos, e do Apartheid, na África do Sul.

Em relação às personagens negras falantes, um número exorbitante de três pessoas, vemos distintas visões sobre o significado do concurso e seu papel na sociedade. Uma, é a camareira encarregada de cuidar da Miss Suécia (a favorita) durante o concurso. As outras duas são as duas primeiras concorrentes negras do concurso, Miss Granada e a outra Miss África do Sul. Quanto a esta, as peculiaridades já começam com a sua presença no concurso: foi apenas um golpe publicitário em relação ao Apartheid. Fato é, e isso a outra Miss África do Sul reconhece de pronto, que a presença das mulheres pretas no concurso (como concorrentes praticamente ignoradas) não passa de uma grande ação paliativa sem consequências políticas aparentes.

As duas personagens olham uma para a outra, e estão recostadas em uma mesa.
Sally Hawkins (Keira Knightely) e Jennifer Houston (Gugu Mbatha-Raw) em cena de “Misbehaviour” (imagem: reprodução)

A questão é que as experiências das mulheres presentes na sociedade, e no concurso, é intrinsecamente distinta assim como semelhante. A cena do banheiro entre a Miss Granada, Jennifer Hosten (Gugu Mbatha-Raw) e a porta-voz das manifestantes feministas, Sally Alexander (Keira Knightley) é a cena em que isso fica claro. Para Jennifer, sua presença no concurso era vista com teor racial e como uma oportunidade de ser reconhecida como, simplesmente, uma mulher capaz de ser objeto de um desejo comum e, mesmo que por alguns momentos, poder ser vista além do pesado contexto racializado no qual estava inserida. Já para Sally, a visão era ampla e sem recortes de raça e de classe.

Sobre o problema, inclusive, falou a verdadeira Jennifer:

“Eu não percebi totalmente na época, mas todas nós estávamos usando o concurso como uma forma de passar a nossa mensagem. Para mim, era sobre raça e inclusão – para elas, era sobre exploração feminina.”

Feminismo não é feminismo se não olhar para todas

A mensagem que se nota após o fim do filme, e após alguns documentários sobre o assunto, é que o núcleo do movimento feminista ainda é, por si só, excludente – e isso permanece até hoje. Ora, como é possível pensar em um feminismo que não amplia a discussão e acolhe todas as lutas? Como garantir reconhecimento a umas como mulheres, incluindo a possibilidade de serem vistas como tais, e ao mesmo tempo garantir humanidade a todas? Saímos com essas e mais perguntas do filme e recebemos um raio de esperança através da série “Mrs. America” – pelo menos no início.

Ressaltamos, antes mesmo de trazer a análise da série “Mrs. America”, que quando da elaboração desse texto, ela ainda não havia terminado. Portanto, serão observados apenas os acontecimentos até a metade da série (episódio 5). Dito isso, percebe-se três núcleos – em uma perspectiva macro e não tão aprofundada – centrais da existência feminina na época: as feministas (lideradas por Gloria Steinem); as conservadoras anti-feminismo (lideradas por Phyllis Schlafly); e as mulheres não-brancas (majoritariamente pretas e, até agora, sem liderança definida além da primeira e única candidata à presidência norte americana, Shirley Chisholm).

Arte/montagem com as atrizes da série, representando pessoas reais pró e anti feminismo.
Phyllis Schlafly (Cate Blanchet), Shirley Chisholm (Uzo Aduba), Jill Ruckelshaus (Elizabeth Banks) e Gloria Steinem (Rose Byrne) em poster de Mrs. America (imagem: reprodução)

A princípio, foca-se em uma disputa óbvia: as feministas “contra” as anti-feministas diante, pelo menos até o quinto episódio da trama, sobre legalização do aborto seguro e universal. As assertivas do grupo conservador se repetem até hoje. Dizem que as feministas são mal amadas e que estão indo contra a “ciência” (determinismo biológico). Além do mais, questionam seu caráter por escolhas – para nós – simples, como o trabalho. De forma a consolidar essa diferença e superioridade conservadora, ideologias que curiosamente se misturam às patriarcais, e em uma das emblemáticas cenas da disputa, Phyllis Schlafly (Cate Blanchett) lidera as mulheres “Anti-ERA”¹ na distribuição de bolos e geleias caseiras aos legisladores – todos homens – de Illinois. Assim, de forma surpreendente, elas impedem a votação favorável ao aborto.

As feministas retratadas são esmagadoramente mulheres brancas e aparentemente de classe média. Apesar de serem vistas como oposição, assim como as manifestantes de “Misbehaviour”, elas focam sua militância em pautas sem recorte e, por vezes, não tão imediatas. Não se pode esquecer, em ambas as obras, que o manifesto feminista se faz em meio a luta pelos Direitos Civis de norte-americanos não brancos. Este momento é de surgimento de ativistas pretas como Angela Davis e Bell Hooks.

As demandas não-brancas, apesar do belo discurso de igualdade – e isso é um fato -, não eram realmente observadas pelo discurso feminista mais difundido (e representado na mídia), conforme exposto na série. Sendo assim, as sujeitas não-brancas eram obrigadas a se organizarem e buscarem a si próprias por apoio. Esta denúncia, até o presente momento, já foi feita – centralmente – em duas oportunidades: o desfecho do apoio feminino a candidatura de Shirley Chisholm (brilhantemente retratada por Uzo Aduba); e o desentendimento sutil (mas escandaloso) entre as editoras da revista Ms. e a, agora, reconhecida ativista e poeta Margaret Sloan-Hunter (Bria Henderson).

Cena da série com algumas mulheres interagindo entre si, provavelmente num encontro relacionado ao feminismo.
Cena de Mrs. America (imagem: reprodução)

Ao adiantarmos para 2020, infelizmente a realidade não mudou muito. Tornou-se urgente reconhecer que o feminismo dos anos 1970, separado por si só, não é suficiente para se propor uma verdadeira mudança sistemática. Ora, em vez de nos preocuparmos em vencer debates em redes sociais e ficarmos presas sempre na sedutora lacração (ainda estamos dizendo isso em 2020?), melhor seria agir para construir um movimento – e um mundo – que foque em atender a todas as demandas de todas as mulheres. Vale lembrar, em uma conversa de mudança sistêmica e observando o renascimento da filosofia do feminismo socialista, o que disse Bell Hooks sobre o que é (ou deveria ser) o feminismo²:

“Feminismo é a luta contra a opressão sexista. Seu objetivo não é apenas beneficiar um grupo específico de mulheres, uma raça em particular ou uma classe de mulheres”.

Ambas as obras deixam um gosto amargo na boca devido a sensação de estagnação evolutiva do movimento, quando olhamos para a nossa realidade. Passados 50 anos da segunda onda feminista, ainda nos encontramos lutando para fazer certas partes do movimento – e infelizmente as mais aceitas – ver que não é possível uma ação de fim de opressão que só garanta essa liberdade para algumas pessoas.

Já que estamos no tópico, seguindo-se a filosofia de feminismo socialista, é impossível propor o fim da opressão – no caso, a feminina – sem substituir um sistema que se sustenta na submissão de muitos pelo favorecimento de alguns. Além do recorte para o reconhecimento de todas as demandas, é fundamental aplicar a sistemática interseccional na evolução do movimento e, dessa forma, agir.

Sair da posição de passividade e obsessão com a história – no sentido de não atuar efetivamente e simplesmente idolatrar figuras que já protagonizaram o movimento no passado – é urgente, bem como é fundamental que tomemos a frente na ação de inaugurar, sim, uma nova onda (verdadeiramente inclusiva) do movimento. Afinal, nós somos suas atuais protagonistas – todas nós.

Notas:
  1. A chamada Emenda da Igualdade de Direitos (ERA, na sigla em inglês) é uma iniciativa destinada a incorporar à Constituição a garantia de igualdade entre homens e mulheres, seu foco principal era a aprovação do aborto legal.
  2. Conforme ensinado no livro “Feminist Theory: From Margin to Center” (Teoria Feminista: da Margem ao Centro)

Edição por Isabelle Simões e revisão por Mariana Teixeira.

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