Julia Sagorsky e as mulheres esquecidas da Geração Perdida

Julia Sagorsky e as mulheres esquecidas da Geração Perdida

Julia Sagorsky, interpretada pela atriz Wrenn Schmidt na série Boardwalk Empire da HBO, representa as histórias não contadas de milhares de mulheres da Geração Perdida, profundamente marcadas pelas repercussões de não uma, mas várias guerras, sem jamais terem estado em um campo de batalha.

Julia é moldada em grande parte pelos horrores enfrentados pelos homens em sua vida, quase todos veteranos de uma guerra ou outra: Julia é filha de um ex-combatente da guerra das Filipinas, irmã de um veterano da Primeira Guerra Mundial e esposa de outro e, embora a série não alcance a Segunda Guerra Mundial, seu filho adotivo, Tommy, teria a idade exata para ser convocado quando esta chegasse.

Em função de suas próprias experiências de guerra, os homens de Julia – Paul, seu pai, Freddy, seu irmão, e Richard, seu marido – todos sofrem de diferentes males: Paul é alcoólatra e deprimido, Freddy foi morto, e Richard é facialmente desfigurado e, devido à falta de oportunidades oferecidas à ele e outros tantos homens que retornavam da Grande Guerra, envolvido com o crime organizado.

Julia Sagorsky, uma mulher comum em um mundo de homens

A história da personagem se desenvolve nas temporadas 3 e 4 da aclamada série sobre a Proibição, que mergulha no tumultuado mundo do crime organizado em Atlantic City nos anos 1920, e com esse pano de fundo explora temas complexos do período.

A personagem é uma exceção bem-vinda: em um mundo de gangsteres, criminosos, chefes da máfia, prostitutas e políticos, que inclui personagens célebres como Al Capone, Mayer Lansky, Lucky Luciano e Arnold Rothstein, Julia é uma mulher comum.

Suas principais ocupações são seu trabalho como vendedora em uma loja de departamentos e seu pai alcoólatra. Nada a respeito de Julia é particularmente excepcional, e é essa uma de suas mais atraentes características.

Julia é complexa exatamente por ser uma mulher como qualquer outra, com questões que, ao contrário daquelas de muitos outros personagens da série, não mudarão o destino da política americana e nem tem o potencial de colocar alguém na cadeia, mas que refletem as dificuldades reais de incontáveis moças como ela.

A personagem cuida da casa e do pai sozinha, dirige, trabalha, interage com homens em pé de igualdade e não tem tempo à perder, mas também organiza almoços de Páscoa, vai à festas, gosta de receber flores e se veste em tons pastéis. Julia quer se casar, mas não depende e nem quer que pensem que depende de homem algum.

Ela se apaixona, e é extremamente racional ao avaliar os méritos de tal sentimento. Além disso, se afeiçoa profundamente por uma criança que não é sua, e luta praticamente sozinha na justiça pela guarda de tal criança. Julia nunca esteve em guerra nenhuma, e ainda assim, vive com as consequências dela todos os dias.

Boardwalk Empire e os impactos de uma guerra não lutada

Como Julia, muitas mulheres que não sofriam elas próprias de depressão ou transtorno de estresse pós-traumático, que nunca tinham sido amputadas ou mutiladas, que não eram alcóolatras ou viciadas em narcóticos, e que jamais tinham pensado em envolver-se com o crime organizado tiveram, ainda assim, que lidar com as terríveis consequências dessas e de muitas outras realidades terríveis que conflitos trazem através de seus pais, irmãos, maridos e filhos, em uma batalha silenciosa travada em casa.

O impacto disso na vida de Julia Sagorsky é brutal: seu pai é agressivo – embora, nas palavras dela própria, nunca tenha encostado um dedo nela -, verbalmente abusivo, com frequência se envolve em brigas que ela precisa apartar, e eventualmente desenvolve cirrose hepática. Seu irmão está morto.

Seu marido tem um olho e metade de seu rosto faltando, dificuldade de falar, comer e engolir, e é um assassino profissional e contrabandista de bebidas em função da falta de oportunidades para veteranos de guerra como ele; eventualmente, seu trabalho o mata, deixando Julia sozinha com um pai doente e uma criança. Anos antes de tudo isso, Julia tinha tido um namorado, mas o casamento jamais acontecera devido à necessidade de seu pai de alguém que cuidasse dele após a morte do filho.

Através dela, ao redor de quem a vida de todos esses homens se concentram, Boardwalk Empire oferece uma lente interessantíssima para entender as cicatrizes profundas deixadas em famílias destruídas por guerras, e nas mulheres que delas faziam parte.

Richard Harrow entrega Tommy à Julia

Julia Sagorsky e as mulheres da Geração Perdida

Julia Sagorsky é parte da chamada Geração Perdida, que atingiu a maturidade em algum momento da Primeira Guerra Mundial e começou a vida adulta na década de 20. Essa geração do entre-guerras teve de lidar com sentimentos de desconexão com valores tradicionais do século XIX, desilusão frente aos horrores da Grande Guerra, e mudanças significativas nas atitudes sociais sobre gênero, religião e outros tantos temas.

Nascida em uma família polonesa-americana de passado militar, a vida de Julia se conecta intrincadamente com o legado de duas guerras, exibindo a forma como mulheres dessa geração frequentemente carregavam as cicatrizes indiretas de conflitos globais, lidando com as repercussões de questões de saúde física e mental de veteranos, e também com sua marginalização social.

O papel de Julia, apesar de pouco conectado às principais linhas narrativas da série e mantido por duas temporadas, não é meramente individual ou centrado em suas próprias dificuldades. Ela funciona como um arquétipo que reflete verdades históricas mais amplas sobre a resiliência, independência e o sofrimento silencioso das muitas mulheres como ela na vida real. Sagorsky encapsula o tumultuado universo psicológico e emocional atravessado por essas mulheres.

O pano de fundo social

O pano de fundo social durante e depois da Primeira Guerra Mundial foi um de profundas transformações, afetando sobretudo os papéis de gênero e as vidas de mulheres.

Com homens jovens e em idade de trabalho sendo convocados para as linhas de frente, elas tiveram de tomar conta da “frente doméstica” – isto é, substituir esses rapazes nos trabalhos essenciais para manter o país funcionando enquanto a guerra ocorria, uma movimentação fundamental para pavimentar o caminho para lutas por direitos políticos e sociais mais inclusivos e amplos.

Com o fim da guerra, porém, o custo emocional foi profundo: além do sofrimento que muitas dessas mulheres já enfrentavam pela perda de entes queridos, o retorno de pais, maridos, irmãos e filhos com profundas feridas físicas e mentais adicionou à já pesada carga de trabalho dentro e fora de casa outro peso.

Wrenn Schmidt sobre o figurino

É interessante notar pequenas escolhas feitas pela produção da série – conhecida por sua preocupação com qualidade e verdade históricas – na criação de Julia. Wrenn Schmidt, a atriz escolhida, é formada em Teatro e História, e credita à sua compreensão acadêmica do período parte da nuance que ela trouxe para sua personagem.

Julia também se alinha às mulheres reais da época através de seu guarda-roupa, que, embora bastante comum e historicamente correto, desempenha um papel fundamental na construção de sua personagem. As escolhas discretas e cuidadosas de cores e modelos refletem os lados conflitantes de sua personalidade e circunstâncias.

O figurino abraça aspectos andróginos e práticos da moda dos anos 20, mantendo elementos tradicionalmente femininos, especialmente nas escolhas de cores como branco, rosa e azul claro, na maquiagem e em detalhes delicados como motivos florais, cinturas marcadas e peças inspiradas na era eduardiana.

Schmidt menciona em mais de uma ocasião sua admiração pela qualidade do roteiro de de Boardwalk Empire, que ela acredita ter tido um papel crucial na criação de uma personagem com profundidade impressionante para uma coadjuvante.

As nuances do roteiro permitiram que, apesar de seu papel pequeno e apenas tangencialmente relacionado à história principal da série, a atriz explorasse a complexidade das experiências das mulheres indiretamente afetadas por conflitos de maneira excepcional.

As combatentes esquecidas da frente doméstica

Em Boardwalk Empire, Julia Sagorsky traz uma representação vívida, delicada, complexa e emocionalmente instigante, adicionando uma dimensão essencial à narrativa da série. Não apenas revela a história individual de uma mulher que se destaca por sua existência profundamente comum e problemas muito ligados à realidade, mas também encapsula a tempestade silenciosa enfrentada pela geração de mulheres que viveram à sombra de guerras que nunca lutaram, mas que sentiram para sempre.

Sagorsky não é apenas um símbolo, mas uma homenagem às mulheres cuja resiliência foi essencial, muitas vezes passando despercebida, diante das adversidades colossais que enfrentaram por seus pais, irmãos, maridos e filhos. Sua história transcende a narrativa ficcional, inspirando profundo respeito e compreensão pelas mulheres esquecidas da Geração Perdida.

As batalhas silenciosas da personagem ecoam os custos não ditos da guerra carregados pelas mulheres, revelando a profundidade do sacrifício, amor e força que definem o espírito humano em tempos de desespero de maneira tranquila, silenciosa, discreta e, consequentemente, frequentemente desconhecida.

Os destinos dos homens em sua vida, conectados às realidades históricas de seu tempo, iluminam as longas sombras de guerras e conflitos que atravessam gerações, afetando não apenas aqueles que serviram nas frentes de batalha, mas também aqueles que esperavam por eles em casa.

Revisitar e reconhecer essas histórias não contadas é uma forma de honrar seu legado e desenvolver uma compreensão mais profunda do verdadeiro alcance de uma guerra e seu impacto permanente no tecido de famílias e comunidades.

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Cursando História na Universidade Federal do Estado do Amazonas (UFAM), com um interesse de pesquisa particular em Primeira Guerra Mundial. Criadora do instagram @behindherglasses_, uma comunidade de estilo e lifestyle vintage, moda e costumes históricos, livros, teatro e fotografia com mais de 100.000 seguidores. Criadora de conteúdo sobre literatura, cinema, televisão, teatro e história no Instagram @ClarissaDesterro.
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