A mulher perfeita é a mulher morta. Isso é absolutamente certo do ponto de vista narrativo, e muitas vezes transpira também para a vida real. A mulher morta não muda, não envelhece e não toma decisão nenhuma. Ela não comete erros. Ela é sempre linda, sempre jovem, sempre boa, não discute e é lembrada apenas por suas muitas qualidades.
Isso é especialmente verdadeiro em histórias de homens viúvos – afinal, sempre nos apaixonamos pela esposa falecida, que para todos os efeitos era a mulher perfeita. São muitos os exemplos dessas jovens e perfeitas noivas mortas – Apollonia Vitelli Corleone em O Poderoso Chefão, Mabel Thompson em Boardwalk Empire, Lyanna Stark em A Canção de Gelo e Fogo.
Inúmeros livros e histórias foram criados tendo essa premissa como base. Dois clássicos do gênero são os livros O Jardim Secreto, onde figura Lilias Craven, a falecida esposa de Archibald Craven, tio de Mary Lennox e dono de Misselthwaite Manor, e Rebecca, que tem como figura constante Rebecca de Winter, a primeira esposa de Maxim de Winter, senhor da casa Manderley e marido da protagonista do livro.
Mulheres totalmente distintas, mas cujo papel nas narrativas das quais participam é assustadoramente similar, embora com resultados diametralmente opostos. Num caso de cisne branco/cisne negro, as duas parecem versões uma da outra – fantasmas que assombram suas antigas casas e aqueles que nela habitam, uma para o bem, a outra para o mal.
“The house is ours”: o impacto do espaço físico
Tanto Rebecca quanto O Jardim Secreto são contados pela perspectiva de personagens femininas, jovens e estrangeiras para a vida da casa em que agora moram e das pessoas com as quais convivem – a segunda senhora De Winter e Mary Lennox, respectivamente. Nenhuma das duas chegou a conhecer a “mulher da casa” – Rebecca e Lilias.

A casa, por sinal, é o centro da narrativa. Tanto Manderley quanto Misselthwaite Manor têm importância fundamental em todos os eventos que ocorrem em suas histórias, com a ação de fato começando quando as protagonistas passam a residir nelas. São lugares cheios de memórias e referências às esposas falecidas de seus proprietários, e pessoas que nunca se cansam de falar delas.
O quarto de Rebecca está fechado e é mantido exatamente como era quando ela o ocupava. O de Lilias, também. É entrando nesses quartos que as jovens protagonistas começam a entender melhor o passado dessas mulheres e sua relação com elas.
Mas não são apenas seus aposentos pessoais que são fechados: alas inteiras de ambas as casas – as alas associadas a elas e seus ambientes preferidos – são abandonadas e consideradas “fora dos limites” aceitáveis para as novas moradoras de Misselthwaite e Manderley.
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Ao longo das narrativas, somos apresentadas às falecidas esposas em grande parte através de comentários de dois homens que as conheceram no passado: Frank e Ben Weatherstaff. Ambos contam para as protagonistas pequenas coisas a respeito de Rebecca e Lilias, construindo a imagem delas. O velho Ben foi o jardineiro de Lilias e tinha muito carinho por ela. Frank foi o primo e amante de Rebecca.
A imagem da mulher amada: os quadros nas paredes
Há um retrato tanto na história de Rebecca quanto na de Lilias. Ambos são icônicos para suas narrativas.
O encontro da segunda senhora De Winter com a imagem de uma antepassada de seu marido termina em tragédia quando ela cai numa trama para constrangê-la, se fantasiando como a mulher do retrato, quando Rebecca já o tinha feito anos antes.
Ela surge em frente a Maxim vestida exatamente como Rebecca – usando, inclusive, uma peruca para ficar com os cabelos escuros como o dela –, incorrendo na ira dele.

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Já o encontro de Mary com o quadro de sua tia tem um resultado completamente diferente. Ele está no quarto de seu primo Colin e costuma ficar coberto por uma cortina, já que o filho “tem raiva dela por sorrir demais”.
No filme, ela percebe a própria similaridade com Lilias, e é essa similaridade – como apontada por Colin e pelo próprio Archibald – que faz com que o tio simpatize o suficiente com ela para permitir que continue morando na casa e, mais importante, que possa ter um jardim.
No livro de Frances Hodgson Burnett, ela nota a falta de similaridade de Colin com a mãe e menciona que talvez seja por isso que seu pai não goste muito de olhar para ele.
Maridos viajantes, depressão e a busca por escapar
Ambos os viúvos de Rebecca e de Lilias lidam com a morte das esposas de maneira muito similar: fugindo de casa. É conhecido que Archibald passa seu tempo viajando por toda a Europa, passando o mínimo de tempo possível em Misselthwaite – que ele evita sobretudo na primavera e no verão, quando as flores estão em seu máximo.
Já Maxim começa suas viagens pouco após a morte de Rebecca, também escapando de casa para viajar pela Europa. É numa dessas viagens que ele conhece sua segunda esposa, iniciando a narrativa desenvolvida por Daphne Du Maurier.
Em breve, porém, o leitor descobre que essas fugas têm razões distintas: Archibald não aguenta estar em casa, pois sua dor com a morte da esposa que tanto amava é tão profunda que chega a ser insuportável; Maxim foge de Manderley e evita falar de sua mulher porque a odiava tanto que queria esquecer-se de uma vez por todas.
Os empregados de ambas as casas adoravam suas antigas senhoras, que parecem, de acordo com suas memórias delas, sem falhas. De maneira similar, todos os personagens que interagem com Mary Lennox e com a segunda senhora De Winter não deixam de lembrar de Lilias e Rebecca, sempre falando das diferentes maneiras em que essas mulheres eram quase perfeitas e de como Archibald e Maxim ficaram – e continuam – abalados em função de suas mortes, eternamente lembrando as protagonistas do impacto das tragédias na vida desses homens.

Mesmo no amor pelas flores, as duas se assemelham. Lilias, é claro, é definida por seu jardim, e especialmente por suas rosas, que ela tanto amava, e das quais Weatherstaff seguiu cuidando após sua morte, apesar da proibição de Archibald. Entretanto, Rebecca também tinha certa paixão por flores – especificamente, pelos rododendros de Manderley, que a segunda senhora De Winter acha belíssimos, mas que repelem Maxim.
Cisne Negro e Cisne Branco: forças de criação e destruição
Assim, é impossível negar que as similaridades das duas são muitas: é quase possível dizer que, até determinado ponto, Rebecca e Lilias tenham exatamente o mesmo papel em suas respectivas histórias.
É apenas no final dos livros que percebe-se exatamente a maneira como as duas diferem – e, mais especificamente, a forma como são diametralmente opostas. Apesar de suas presenças parecidíssimas na vida das protagonistas e de seus falecidos maridos, é o destino deles, e também o das casas que esses “fantasmas” assombram, que separam as duas.
No fim de Rebecca, a segunda senhora De Winter e Maxim são levados a Londres quando o corpo de Rebecca reaparece. Quando voltam para Manderley, encontram-na em chamas.
Danvers, a governanta da casa que servira Rebecca com a lealdade de uma devota, ateou fogo na mansão para que, não sendo de Rebecca, ela não fosse de mais ninguém. Manderley é destruída pelo fogo, em nome da memória de Rebecca. Ela não pode deixar a casa, pois a ela a casa pertence; ninguém mais poderá viver nos domínios dessa mulher morta.
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Archibald Craven retorna para Misselthwaite Manor após ser chamado a fazê-lo por Lilias, que aparece em um de seus sonhos dizendo que está no jardim. Ele volta para encontrar a casa em franco florescimento. O jardim foi reaberto, as flores crescem quase como se fossem selvagens.
Há animais na propriedade, crianças brincando. A casa tem luz mais uma vez – luz que havia sumido com a morte de Lilias, pois Archibald não aguentava encará-la. É através da memória de Lilias – quando seu quadro é exposto, seu jardim reaberto e seu espírito recuperado – que Misselthwaite renasce.
Manderley não é recuperada – ou, ao menos, não parece ter sido. Os protagonistas do livro de Du Maurier a abandonam de uma vez por todas, passando a viajar pelo mundo em busca de um novo lar, ou vários; é apenas assim que se livram da mulher-fantasma.

Archibald, por sua vez, volta para casa e abandona suas viagens. Ele será, a partir de então, um homem presente na vida de seu filho, de sua sobrinha e de sua propriedade. Lilias o chama de volta, e ele encontra sua casa mais uma vez.
Ao longo de Rebecca, ela afasta Maxim de sua segunda esposa; afasta a segunda senhora De Winter de si própria – sequer descobre-se seu nome!; além de afastar Maxim de Manderley, a princípio de maneira provisória, e depois para sempre. Rebecca é uma força de morte, destrutiva, envenenando tudo o que existe ao seu redor.
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Lilias, por sua vez, aproxima – é esse seu papel ao longo de O Jardim Secreto. Ela aproxima Mary e Colin, ela aproxima Archibald e Mary, e Archibald e Colin. Ela aproxima Mary e Dickon através de seu jardim. Ela aproxima Mary de seu verdadeiro e melhor eu.
Ela aproxima Archibald de Misselthwaite mais uma vez. Lilias é, literalmente, vida: ela é representada pelas flores em seu jardim, pela melhora na saúde de Mary e sobretudo na de Colin, pela melhora no estado mental de Archibald. Lilias, até o fim, é uma força do bem, do renascimento, da saúde, da luz.

Rebecca de Winter e Lilias Craven: o papel da vida e da morte
Cabe, nesse sentido, um último comentário a respeito dos dramáticos fins de ambas as personagens: logo antes de morrer, Rebecca diz ao marido que está grávida de outro homem. É uma mentira criada para convencê-lo a matá-la. Rebecca não tem uma criança: ela tem câncer de útero.
Lilias, por sua vez, morre de parto – um parto prematuro, iniciado por uma queda –, não sem antes dar à luz a um menino, Colin. Lilias morre carregando dentro de si a vida; Rebecca, a morte. Lilias chama, Rebecca expulsa. Lilias faz do marido um pai, Rebecca um assassino.
O efeito de Rebecca na segunda senhora De Winter é o de destruir: de uma menina saudável, talvez um pouco tola, a protagonista sem nome de “Rebecca” se torna progressivamente mais insegura, ansiosa e deprimida à medida que convive com a memória da primeira esposa de seu marido.
Já Mary se torna cada dia mais saudável, confiante, alegre, bonita e “parecida com uma criança” a cada dia que passa no jardim de sua tia, assim como Colin começa a se tornar tão saudável que, de um menino dito doente, inválido e fadado a morrer cedo, ele se torna uma criança perfeitamente comum, que anda, corre e brinca. Enquanto a segunda senhora De Winter chega a cogitar suicídio, Colin grita a plenos pulmões que vai viver para sempre.
Embora em livros totalmente sem relação, frutos de épocas e mentes muito distintas, e representadas de maneira completamente diferente, é surpreendente observar a forma como Rebecca De Winter e Lilias Craven dividem tantas semelhanças e têm papéis tão parecidos, com resultados tão diferentes.