O Urso (The Bear), série estadunidense criada por Christopher Storer, retornou com a terceira temporada no dia 26 de junho nos EUA pela Hulu e chegou ao Brasil somente no dia 17 de julho pela Disney+. Com isso, voltaram também as discussões sobre o relacionamento entre os protagonistas: Carmen Berzatto (Jeremy Allen White) e Sydney Adamu (Ayo Edeberi).
De um lado, há fãs da série que defendem a ideia de um simples e íntimo amor platônico entre os personagens devido aos negócios do restaurante, enquanto outros fãs preferem uma leitura mais romântica e profunda sobre a possível verdadeira natureza dos sentimentos entre os dois.
Muitos acabam considerando essa segunda perspectiva de maneira negativa, desnecessária e até mesmo sem sentido, pois acreditam ser importante assistir a obras que mostram um homem e uma mulher tendo um relacionamento íntimo, mas puramente platônico — e eles estão certos, é importante.
No entanto, neste texto, vamos entender que essa leitura romântica dos fãs de sydcarmy (Sydney + Carmy, nome do ship) não é negativa, desnecessária e muito menos sem sentido. Na verdade, ela faz muito sentido e pode ser algo bem mais importante do que um relacionamento platônico entre duas pessoas.
Casais interraciais na TV e no cinema

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É uma verdade quase absoluta que uma grande parte do público que consome obras do audiovisual não vê a questão da representatividade de casais interraciais como uma pauta de muita relevância, por mais que esses casais tenham desempenhado um papel importante nas mudanças sociais ao longo das décadas.
Desde Old Hollywood até os dramas mais modernos da televisão e do cinema, os casais interraciais têm sido um símbolo forte de diversidade, mas também enfrentado desafios em termos de boa representação e aceitação. Nos primeiros anos do cinema, a representação de casais interraciais era rara e, quando ocorria, muitas vezes era marcada por estereótipos.
Com o passar do tempo, essa representação começou a evoluir, apresentando-se de maneira mais positiva e realista. Produções como Grey’s Anatomy, com casais como Cristina Yang (Sandra Oh) e Preston Burke (Isaiah Washington), e Scandal, com Olivia Pope (Kerry Washington) e Fitz Grant (Tony Goldwyn), demonstraram que a televisão estava começando a desenvolver essa pauta de maneira mais abrangente, embora ainda houvesse críticas em relação à sua autenticidade e profundidade.
Casais interraciais na atualidade
Atualmente, vemos uma maior diversidade nas representações de casais interraciais na mídia em séries como Dear White People e Master of None, que exploram as nuances e os desafios enfrentados por esses casais de maneira mais questionadora e moderna. Outras obras, como The Walking Dead, The Good Place, Jessica Jones, The Bridgerton, apresentam casais interraciais como protagonistas, mas não discutem tanto o fator racial no relacionamento.
A série The Bear aborda essa questão racial quando vemos uma boa parte do público defendendo a ideia de que Sydney não pode ser lida como uma opção de interesse amoroso de Carmy, porque eles são apenas “colegas de trabalho”, “quase irmãos” ou até mesmo o argumento da “possível sexualidade homoafetiva” de Sydney — já que, aparentemente, quando uma mulher negra não é sexualizada, as pessoas assumem que ela é lésbica.
Mas sabemos que a leitura do relacionamento entre eles seria completamente diferente se a Sydney fosse uma mulher branca, como a Claire (Molly Gordon), ou o Carmy fosse um homem preto, como o Marcus (Lionel Boyce).
Amor platônico versus o “fenômeno dos ships”

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Há quem diga que a “representatividade do amor platônico” está em falta nesta atualidade em que só se pensa em “shippar personagens”.
É perceptível que uma grande parte do público que consome séries de TV se incomoda com o amor romântico entre casais do mesmo sexo ou envolvendo outras minorias. Os argumentos repetitivos de que “agora os homens não podem mais ser só amigos?” ou “agora as mulheres não podem ser só amigas?” circulam em diversas redes sociais.
Quando se trata de Sydney e Carmy, eles apelam para a questão da amizade entre homens e mulheres, como se não houvesse representação de amor platônico íntimo entre outros personagens na série, como Tina (Liza Colón-Zayas) e Ebraheim (Edwin Lee Gibson) ou Natalie (Abby Elliot) e Fak (Matty Matheson), ou até mesmo Natalie e Richie (Ebon Moss-Bachrach) no final da segunda temporada, quando eles estabelecem o início de uma grande parceria.
Apesar de sempre ter sido um comportamento comum entre os fãs de audiovisual e literatura, o “fenômeno do ship” realmente cresceu bastante nas últimas décadas com o surgimento das redes sociais como Twitter, Tumblr e outros. E é claro que, devido à interpretação e leitura de cada sujeito, há sempre uma parte do público que enxerga uma química entre dois personagens, enquanto outra parte vê somente uma linda amizade.
A interpretação de Sydney e Carmy como bons amigos ou apenas parceiros de negócios é válida até certo ponto, mas o que passa dos limites é a ideia de que a representatividade do amor platônico seja mais importante do que a representatividade de casais interraciais, por exemplo. Vocês realmente acham que o mais importante é defender o “poder da amizade verdadeira” ao invés de torcer para calar os racistas que não querem ver Sydney beijando o protagonista branco de beleza duvidosa?
Já estamos fartas dessa defesa do amor platônico! No decorrer da história da TV, tivemos vários exemplos icônicos de amizade entre homens e mulheres, como em Friends, How I Met Your Mother, Mad Men, Star Trek, Bojack Horseman, The Good Place, Avatar: The Last Airbender, Parks and Recreation e muitos outros. Porém, podemos contar nos dedos as séries que apresentaram uma boa representatividade de casais interraciais, especialmente uma tão bem desenvolvida e aclamada como The Bear está tendo a chance de apresentar.
Por que a ideia de Carmy estar interessado romanticamente por Sydney é tão absurda para alguns? E por que isso “estragaria completamente a série”, como muitos dizem? Ou pior, ainda há o argumento de que isso não faz sentido algum dentro da narrativa e é tudo invenção desse “povo que não consegue apreciar uma boa amizade”.
Por isso, a seguir, vamos abordar por que isso faz muito sentido e por que seria muito positivo para a história da série, já que não há nada melhor do que um bom romance lento.
Sydcarmy: uma leitura romântica da série The Bear

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Na primeira temporada de The Bear, quando Sydney chega ao restaurante em busca de emprego, o encontro entre ela e Carmy é marcado pelo caos ao redor e também por elogios. Sydney diz que conhecia a carreira de Carmy e praticamente o considerava o maior cozinheiro dos EUA, e por isso queria trabalhar com ele, mesmo que fosse em um restaurante familiar.
À primeira vista, esse encontro pode não parecer tão significativo, mas na segunda temporada vemos que Carmy guardou esse momento na memória e até usou essa recordação do primeiro contato com Sydney para acalmar seu ataque de pânico — o que é considerado algo super platônico no audiovisual.
As palavras de Sydney e sua confiança nele são importantes para Carmy. Ele quer continuar impressionando-a, quer que ela fique contente com a parceria entre os dois, mas não consegue suprir as expectativas dela devido ao luto pelo suicídio do irmão, ao abuso sofrido no antigo emprego em Nova York e a outras questões traumáticas mal resolvidas.
Ainda na primeira temporada, Natalie “Sugar” diz que Carmy nunca perguntou se está tudo bem com ela, e isso a chateia muito. Enquanto com Sydney, Carmy frequentemente pergunta “qual é o problema?”, “o que foi?”, “está tudo bem, chef?”, preocupado com o que ela pensa e como se sente.
Isso já refuta o argumento anti-sydcarmy de que Carmy vê Sydney como uma espécie de irmã, já que ele sequer demonstra se preocupar tanto com sua própria irmã verdadeira. Talvez o relacionamento de Carmy com Sydney possa ser comparado somente com o de Mikey, pelo fato de que Mikey e Sydney são as únicas duas pessoas com quem Carmy já fez planos para o futuro: a parceria no restaurante The Bear.
Mas nem essa semelhança entre esses dois relacionamentos sustenta o argumento de “quase irmãos” que alguns atribuem a Sydney e Carmy, já que a própria série toma um rumo bem diferente no relacionamento dos dois quando comparado ao que Carmy sente e como age com Sugar e Mikey.
Sydney não é como Sugar e Mikey, porque ela é como Carmy.
Ao mesmo tempo em que eles têm conflitos por suas diferenças, a série constantemente reflete suas semelhanças com diversos paralelos ao longo das três temporadas: a cena da praia, o chão da cozinha, o ataque de pânico, a necessidade de remédios, a obsessão. Eles são o espelho um do outro.
“As pessoas acham que a alma gêmea é o encaixe perfeito, e é isso que todo mundo quer. Mas a verdadeira alma gêmea é um espelho, a pessoa que mostra tudo que está prendendo você, a pessoa que chama a sua atenção para você mesmo para que você possa mudar a sua vida.”
— Elizabeth Gilbert
Desde a primeira temporada, Sydney tenta fazer com que o restaurante e o próprio Carmy se tornem melhores do que antes, apontando defeitos e como resolvê-los. Assim como Carmy tenta fazer com que Sydney se torne a melhor chef e consiga as estrelas que ela tanto deseja.
Claro, ambos nem sempre fazem isso da melhor maneira possível, já que estamos falando de The Bear, uma série onde o caos reina e os ciclos de abuso são fortes. Por mais que os dois tenham se aberto emocionalmente um para o outro em momentos de conversas vulneráveis e sensíveis — como Carmy sobre o irmão, Sydney sobre seu passado profissional desastroso e ambos sobre suas inseguranças e medos — essas problemáticas ainda prevalecem, porque relacionamentos são humanos, não perfeitos.
As palavras importam, mas as ações também falam. Então, mesmo que Carmy se desculpe e diga que não quer ser “um merda”, ele falha com Sydney. E falha de novo. E de novo. Ao ponto de acabar reproduzindo o comportamento tóxico do seu antigo chefe nela. Logo, enquanto Sydney se torna a única paz nos momentos de pânico de Carmy, Carmy se torna a principal razão do pânico de Sydney.
Claire, Marcus e terapia como contras

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Por essa razão, essa problemática na relação deles é vista como um motivo para o ship não acontecer. “Eu acho que o Carmy não precisa de um relacionamento com a Sydney, ele precisa de um relacionamento com uma terapeuta”, dizem os tuiteiros que se acham sabichões demais.
Sim, Carmy realmente precisa de terapia, assim como Sydney e todos os personagens da série. Mas o fato de que Carmy precisa de ajuda psicológica não deve privá-lo de ter um relacionamento, pois pessoas mental e emocionalmente instáveis também merecem a chance de ter um relacionamento amoroso e usufruir disso. Ele está tentando ser melhor, mas ainda tem muitas barreiras para enfrentar.
O próprio Carmy, no final da segunda temporada, fala que não se considera digno de divertimento e alegria, apesar de ter fragmentos disso com a família que criou no restaurante The Bear e, querendo ou não, com Sydney. O que muitos — até mesmo Carmy — não entendem é que pessoas traumatizadas e instáveis também merecem isso tanto quanto qualquer outra, apesar de parecer mais complicado.
Quando Claire surge na série, o público parece se esquecer dos argumentos anti-Sydcarmy, como “a série não é sobre romance” ou “Carmy deveria namorar uma psicóloga”. Tudo bem gostar do relacionamento deles, mas é difícil negar o fato de que a personagem é usada apenas como a namorada “perfeita” de Carmy e nada mais. Ela não tem personalidade além de ser namorada e médica. Carmy sequer parece desejar conhecê-la profundamente.
Claire, a namorada “perfeita”
Ele acredita que deve ficar com Claire porque todos ao seu redor diziam, no passado e ainda dizem no presente, que é isso o que ele deveria querer, como Mikey fez no episódio de Natal e até Fak e Richie fazem na segunda e terceira temporadas. Assim, Claire faz parte do passado conturbado que Carmy não consegue enfrentar e superar de verdade.
Por isso, a imagem de Claire estava ligada ao caos da família Berzatto no ataque de pânico dele. E somente a imagem de Sydney foi capaz de realmente o trazer paz. Sydney é a pessoa que Carmy escolheu para estar ao seu lado. Não foi uma escolha de Mikey, de Fak ou de Richie, mas o próprio Carmy escolheu contratar ela e fazer dela sua parceira de negócios.
Além de Claire, muitos falam que o sydcarmy não faz sentido pelo fato de que Sydney deveria ficar com Marcus, sendo que a própria personagem já deixou claro na segunda temporada que não tem interesse amoroso algum nele, o considerando apenas um amigo.
Na verdade, Marcus tem mais química com Luca (Will Poulter) do que com qualquer outro personagem na série, o que acaba sendo cômico, mas verdadeiro.
Eles mentem para o público?

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Por mais louco que possa parecer, não confiem cem por cento no que os atores, showrunners, roteiristas e diretores dizem sobre suas próprias obras. Eles mentem bastante. Mesmo que tenham saído pelo menos 5 notícias com Ayo ou Jeremy falando que Sydcarmy nunca vai acontecer, eles não são totalmente confiáveis.
É comum em Hollywood os atores mentirem sobre o futuro da série, seja por falta de conhecimento sobre o final ou simplesmente para manter a diversão. Os envolvidos em Maravilhosa Sra. Maisel afirmaram por anos que Maisel (Rachel Brosnahan) e Lenny (Luke Kirby) nunca ficariam juntos, que eram apenas amigos, e no final, o que aconteceu? Eles ficaram juntos.
Assim como em Abbott Elementary, os envolvidos disseram que Janine (Quinta Brunson) e Gregory (Tyler James Williams) formavam um simples relacionamento platônico, porque homens e mulheres podem ser apenas amigos. No final, o que aconteceu? Eles se beijaram.
Onde já ouvimos esse discurso de amor platônico entre um homem e uma mulher que têm uma conexão íntima profunda e uma química incrível? Sim, em The Bear, com Sydney e Carmy. Isso nos faz questionar: será mesmo que o platônico é necessário nesse cardápio?
O público está ávido por um bom romance lento! Seremos pacientes enquanto celebramos cada momento que evidencia cada vez mais o óbvio, que alguns escolhem ignorar ou até mesmo odiar. O fato não é que eles sejam perfeitos; ambos têm traumas e problemas reais. Mas é inegável que são feitos um para o outro, por mais que muitos neguem isso.