Escrita em apenas três semanas em 1912, mas publicada somente em 1915, A Metamorfose de Franz Kafka é uma novela que continua intrigando leitores após décadas de lançamento. O protagonista, Gregor Samsa, um caixeiro-viajante que sustenta a família, acorda transformado em inseto sem grandes explicações.
Samsa é frequentemente retratado como um besouro gigante, quase uma barata. Apesar disso, em correspondências com seu editor, Kafka reiterou que não queria a imagem do inseto na capa do livro. Ele também foi cuidadoso na descrição da personagem, evitando especialmente o termo “besouro”.
Gregor, então, acorda como um inseto não muito específico, sem justificativas diretas para sua metamorfose. Com isso, a interpretação da novela de Kafka pode seguir diferentes caminhos. No campo da saúde mental, podemos entender Gregor Samsa como um indivíduo acometido por diversos transtornos.
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A exploração trabalhista como causa do burnout de Gregor Samsa
Profissionais da saúde cada vez mais discutem o burnout, a síndrome do esgotamento profissional. Esse tema é especialmente relevante no período pós-isolamento social, quando as demandas do mercado de trabalho se tornam cada vez mais exigentes e o desemprego assombra populações inteiras.
O medo de perder o sustento fragiliza as pessoas e as torna suscetíveis a aceitar condições abusivas de trabalho, o que facilita o burnout. Gregor, o protagonista de Kafka, é um trabalhador explorado.
Como caixeiro-viajante, Samsa detesta não ter controle sobre o horário dos trens ou das refeições oferecidas; desgosta de seus colegas de escritório e se sente pressionado pelo chefe. Além disso, seu salário sustenta seus pais e sua irmã mais nova, Grete, então a demissão é impensável para o protagonista.
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O gerente de Gregor visita a família Samsa na mesma manhã da metamorfose. O protagonista se sente perseguido, condenado a um trabalho em que uma falta inesperada já causa desconfianças. Apesar de Kafka não tratar os problemas de Gregor como motivo de sua metamorfose, a situação da personagem se assemelha à de muitas pessoas que enfrentam empregos insalubres e sofrem com o burnout.
A narrativa tem um toque claustrofóbico com o ritmo lento de Gregor em seu novo corpo, contrastando com sua família que tenta apressá-lo para ir ao trabalho. A claustrofobia cresce conforme a família Samsa isola o filho em seu quarto, com nojo do que ele se tornou. Em consequência disso, Gregor expressa diversas vezes a indiferença em relação à morte; para ele, seria melhor morrer do que perturbar a família.
O transtorno depressivo retratado em A Metaformose
Com o isolamento de Gregor, outra interpretação possível de A Metamorfose é a de que o protagonista sofre de algum transtorno depressivo. Samsa torna-se um fardo para seus parentes, incapaz de trabalhar e levar uma vida normal.
Como um inseto, o protagonista não consegue se comunicar com a família, e a única pessoa que tem certa simpatia por Gregor é sua irmã. No entanto, em determinado momento, Grete também passa a sentir repulsa pelo irmão. Ela prefere considerar que Gregor morreu para preservar as boas memórias que tinha com ele antes da metamorfose.
Na vida real, pessoas com depressão tendem a se isolar, o que acaba afastando amigos e parentes. Para alguém mentalmente saudável, o isolamento depressivo pode ser interpretado como antipatia, e não como uma consequência do transtorno. Gregor passa por um processo semelhante, pois deseja manter o convívio com a família, mas sua nova forma o impede de se comunicar adequadamente e causa repulsa.
Com a metamorfose, a família Samsa se esforça para manter a estabilidade financeira, já que Gregor, o provedor da família, perdeu o emprego e está incapacitado de trabalhar. Seus pais começam a trabalhar, e até mesmo Grete, que era considerada jovem demais para ter um emprego, também começa a trabalhar.
Apesar de o trabalho representar uma mudança na vida familiar, a estabilidade é garantida. Entretanto, a existência de Gregor como inseto representa uma ruptura na normalidade. Grete, a última a sentir repulsa pelo irmão, é a primeira a sugerir que não há solução para sua metamorfose.
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Isolamento e o abandono gradual descrito por Franz Kafka
Gregor passa por um processo de isolamento e abandono gradual, como muitas pessoas com transtornos psicológicos. Ele não consegue desenvolver bons relacionamentos em um ambiente de trabalho prejudicial. Além disso, a metamorfose o condena ao isolamento em casa.
Entretanto, até mesmo no ambiente familiar, Gregor enfrenta a solidão, que se torna extrema ao ponto de resultar em sua morte, consequência da falta de cuidado por parte da família.
O protagonista perde o apreço pela vida e a vontade de voltar à forma anterior, já extremamente debilitado e ciente do desconforto que causa às pessoas. Samsa aceita a metamorfose e, com isso, se torna apático a qualquer possibilidade de melhoria. Pessoas com transtornos mentais frequentemente passam pelo mesmo processo de isolamento, que culmina na perda de amizades e relacionamentos.
Apesar da morte do personagem não ser por suicídio, é possível entender que sua desumanização contribuiu para a aceitação apática de uma vida infeliz, com resultado trágico.
Nem toda pessoa adoecida apresenta tendências suicidas, mas comumente evita cuidar de si mesma: não se alimenta adequadamente, ignora problemas de saúde e não toma as devidas precauções ao sair de casa. No caso de Gregor, ele deixa de comer para não incomodar a irmã, enfraquecendo-se cada vez mais.
O livro A Metamorfose, apesar de ter sido escrito no início do século XX, reflete características típicas de uma sociedade que não acolhe pessoas com transtornos mentais. Gregor Samsa reflete indivíduos que, sem ajuda e tratamento necessários, são isolados de suas comunidades a ponto de perderem os relacionamentos familiares e qualquer perspectiva de recuperação.
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Colagem em destaque: Sharline Freire para o Delirium Nerd