As inspirações históricas de George R. R. Martin para a construção de suas narrativas ficcionais vêm cativando audiências há anos, e poucos exemplos ilustram esse fenômeno tão vividamente quanto os paralelos entre a Imperatriz Matilda da Inglaterra e Rhaenyra Targaryen.
Matilda foi uma nobre inglesa do século XII, e Rhaenyra, uma das personagens principais do livro Fogo e Sangue e da série da HBO A Casa do Dragão. As duas dividem similaridades notáveis em seus esforços para garantir a sucessão e o poder como mulheres em momentos de imensa instabilidade.
A Imperatriz Matilda da Inglaterra
Matilda, nascida em 1102 em Londres, era filha de Henrique I, Rei da Inglaterra e Duque da Normandia, e de Matilda de Escócia. Desde cedo, ela recebeu uma educação de teor religioso na corte de sua mãe, até que, aos oito anos, as negociações para seu futuro casamento começaram. O noivo escolhido foi Henrique V, o Sacro Imperador Romano, parte do plano de Henrique I da Inglaterra para fortalecer a Normandia contra a França.
Em 1110, a jovem Matilda deixou a Inglaterra e mudou-se para a Germânia para se preparar para seu casamento. O noivado foi oficializado em abril em Utrecht, seguido da coroação de Matilda em julho do mesmo ano, em Mainz. Apesar da considerável diferença de idade – Henrique V tinha 24 anos quando as negociações começaram –, o casamento foi consumado em janeiro de 1114.
Durante sua estadia na Germânia, Matilda aprendeu sobre os costumes, a cultura e a forma de governo do país, preparando-se para seu papel como Imperatriz. No entanto, ela e Henrique não tiveram filhos, e após a morte dele em 1125, Matilda foi obrigada a fazer um segundo casamento arranjado, desta vez com Godofredo de Anjou, que era doze anos mais jovem que ela.
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Reinvindicação ao trono inglês
O caminho de Matilda para o trono inglês se tornou mais claro após a trágica morte de seu irmão mais novo, Guilherme Adelino, no desastre do Barco Branco em 1120. Esse evento deixou Henrique I sem herdeiros homens, o que levou o rei a casar-se novamente com Adeliza de Lovaina na esperança de gerar um novo herdeiro.
No entanto, apesar do casamento de quinze anos, que tinha como único propósito a produção de um herdeiro masculino, nenhum filho nasceu dessa união.
Como a única filha legítima sobrevivente de Henrique I, Matilda foi nomeada sua herdeira. Para garantir a sucessão de Matilda, Henrique I obrigou os barões do reino a jurarem lealdade a ela em 1127, uma decisão sem precedentes tanto no reino da Inglaterra quanto no ducado da Normandia. Contudo, a morte repentina de Henrique I em 1135 desencadeou uma crise de sucessão.
Adoecendo subitamente, Henrique I faleceu, e o que ele declarou em seu leito de morte é motivo de disputa. Cronistas que apoiavam Matilda afirmavam que ele reiterou seu desejo de vê-la como sua sucessora, enquanto os cronistas pró-Estevão de Blois alegavam que o rei expressou arrependimento por ter feito os barões jurarem lealdade à filha.
Apesar dos juramentos feitos à Matilda, muitos barões renegaram seus votos, permitindo que Estevão de Blois, sobrinho de Henrique I, reivindicasse o trono. Com o apoio da Igreja e da maioria dos barões, Estevão foi rapidamente coroado rei. A rapidez da coroação, junto com o apoio de seu irmão, Henrique de Blois, Bispo de Winchester, foi fundamental para que ele mantivesse o trono.
Para legitimar sua reivindicação, Estevão e seus apoiadores sugeriram que Henrique I havia mudado de ideia sobre a sucessão de Matilda em seu leito de morte. Esses eventos precipitaram um conflito prolongado conhecido como a Anarquia.
A anarquia
O período de guerra civil conhecido como Anarquia teve início em 1139, quando Matilda, com o apoio de seu meio-irmão Roberto de Gloucester e de seu tio, o rei Davi I da Escócia, invadiu a Inglaterra para reivindicar seu direito ao trono. Esse conflito resultou em uma série de batalhas e cercos, com diferentes partes da Inglaterra passando de mão em mão entre Matilda e Estevão.
Um momento fundamental ocorreu em fevereiro de 1141, durante a Batalha de Lincoln, quando Estevão foi capturado e aprisionado. Essa vitória abriu caminho para que Matilda fosse proclamada “Senhora dos Ingleses” por um conselho clerical em Winchester, em abril daquele ano.
Contudo, seu período de poder foi breve: a arrogância e as exigências excessivas de Matilda, particularmente em relação ao dinheiro dos cidadãos ingleses, a levaram a ser expulsa da cidade antes que pudesse ser coroada rainha.
A guerra prosseguiu, sem que nenhum dos lados conseguisse obter uma vantagem decisiva. Um dos episódios mais notáveis desse conflito foi a fuga ousada de Matilda do Castelo de Oxford em dezembro de 1142. Vestida de branco para se camuflar na neve, Matilda atravessou o congelado rio Tâmisa e conseguiu escapar das forças de Estevão.
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A Anarquia persistiu por quase duas décadas, com Matilda eventualmente se retirando para a Normandia em 1148. Embora não tenha conseguido assegurar o trono para si, os esforços dela foram fundamentais para abrir caminho para seu filho, Henrique Plantageneta, fruto de seu casamento com Godofredo V, Conde de Anjou. Em 1154, Henrique subiu ao trono inglês como Henrique II, inaugurando a dinastia Plantageneta.
Rhaenyra Targaryen da Casa do Dragão
Rhaenyra Targaryen, nascida em 97 DC, era a única filha sobrevivente do rei Viserys I Targaryen e de sua primeira esposa, a rainha Aemma Arryn. Ela teve um irmão, Baelor, que viveu apenas por algumas horas, falecendo pouco depois de nascer. Como jovem princesa, Rhaenyra era amplamente conhecida como “O Deleite do Reino”, devido à sua clássica aparência valiriana e a um comportamento orgulhoso.
Na esperança de assegurar um herdeiro masculino, Viserys casou-se novamente com a muito mais jovem Alicent Hightower. Porém, para afastar seu irmão Daemon – que o havia ofendido ao fazer piadas sobre a morte de seu filho – de qualquer possibilidade de sucedê-lo no Trono de Ferro, Viserys nomeou Rhaenyra como sua herdeira. Ele convocou os lordes de Westeros para jurar lealdade à princesa, reconhecendo-a como a sucessora legítima da coroa.
Rhaenyra foi casada com seu primo Laenor Velaryon, filho do lorde de Driftmark e herdeiro da segunda casa mais poderosa de Westeros. O casamento estratégico visava fortalecer os laços entre os Targaryen e os Velaryon, que já estavam em um conflito frio havia algum tempo.
Contudo, Rhaenyra não teve filhos com Laenor, que era homossexual. Durante o casamento, Rhaenyra deu à luz três filhos: Jacaerys, Lucerys e Joffrey, que, embora oficialmente reconhecidos como filhos de Laenor, eram, na verdade, filhos naturais de Ser Harwin Strong, um cavaleiro da Guarda Real.
Após a morte de Laenor, Rhaenyra casou-se com seu tio, o príncipe Daemon Targaryen, um homem muito mais velho. Dessa união, nasceram dois filhos, Aegon e Viserys.
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Reinvindicação ao Trono de Ferro
A reivindicação de Rhaenyra ao Trono de Ferro foi estabelecida por seu pai. No entanto, ela começou a enfrentar resistência após o segundo casamento de seu pai, que gerou três filhos homens: Aegon, Aemond, e Daeron. Dentre eles, o mais velho, Aegon, tornou-se o principal desafio para Rhaenyra após a morte de Viserys.
Na série da HBO, Viserys, em seu leito de morte, reitera o desejo de que sua filha o suceda, mas em um momento de delírio, ele começa a falar sobre o sonho do Príncipe Aegon, o Conquistador, uma profecia que apenas Rhaenyra conhecia.
Não era Rhaenyra que estava com ele, porém, e sim sua esposa Alicent, que entende que o marido estava voltando atrás e dizendo que seu filho, também um Príncipe Aegon, deveria sucedê-lo.
Apesar dos juramentos de lealdade anteriores feitos à Rhaenyra, muitos lordes de Westeros renegaram seus votos, e seu meio-irmão Aegon reivindicou o trono.
Ele foi rapidamente coroado rei, recebendo o apoio da Fé dos Sete, do conselho (incluindo sua mãe, a rainha viúva Alicent, seu avô Otto Hightower, principal conselheiro de Viserys, e seu irmão Aemond, que montava o maior e mais poderoso dragão vivo, Vhagar), e da maioria dos nobres.
A Dança dos Dragões
O caminho de Rhaenyra para o trono foi repleto de obstáculos. O reino — nobres e plebeus em igual medida — relutava em aceitar uma mulher como herdeira mesmo antes da morte de seu pai, e o segredo aberto da ilegitimidade de seus três primeiros filhos, incluindo seu herdeiro Jacaerys, complicava ainda mais sua reivindicação.
Após a coroação de Aegon, Rhaenyra coroou-se rainha em sua propriedade, Pedra do Dragão, e os preparativos para o conflito foram iniciados por seu marido, Daemon.
Nos primeiros dias, o segundo filho de Rhaenyra, Lucerys, foi morto por Aemond, irmão mais novo de Rhaenyra e Aegon, em um ato de vingança — pois Lucerys havia tirado um olho de Aemond anos antes, durante uma briga na infância. Em retaliação, Daemon ordenou a decapitação de Jaehaerys, o filho mais velho de Aegon. Esses eventos tornaram a guerra inevitável.
As batalhas que se seguiram causaram imensas perdas para ambos os lados. Na Batalha de Rook’s Rest, Rhaenys Targaryen, prima e sogra de Rhaenyra, foi morta. Pouco depois, na Batalha do Gargalo, o filho mais velho e herdeiro de Rhaenyra, Jacaerys, também foi morto.
Após essa perda, Rhaenyra enfureceu-se e decidiu usar seus dragões. O rei Aegon havia sido seriamente ferido em Rook’s Rest, e o príncipe Aemond, seu irmão, estava servindo como regente.
Rhaenyra aproveitou uma oportunidade em que Aemond e seu dragão, a imensa Vhagar, estavam longe da capital. Montada em seu dragão, Syrax, e acompanhada por seu marido, que estava montado no dragão Caraxes, Rhaenyra tomou King’s Landing com o apoio da frota de seu sogro, Corlys Velaryon. O rei Aegon II escapou com seus filhos, Jaehaera e Maelor, enquanto Rhaenyra ocupava o Trono de Ferro.
Pouco depois, Aegon II conseguiu conquistar Pedra do Dragão, com a ajuda de habitantes locais que não gostavam de Rhaenyra. A enteada da rainha, Lady Baela Targaryen, filha de Daemon com sua esposa anterior, Laena Velaryon, conseguiu escapar em seu dragão, mas este foi cegado e eventualmente morto pelo dragão de Aegon.
Nas semanas seguintes, os príncipes Daemon e Aemond se mataram em uma batalha sobre o Olho dos Deuses; o príncipe Maelor, filho de três anos de Aegon, foi morto por uma multidão descontrolada; o avô de Aegon, Otto Hightower, foi decapitado por Rhaenyra; e a rainha Helaena, irmã e esposa de Aegon, cometeu suicídio.
Simultaneamente, a população de King’s Landing se revoltou contra Rhaenyra e invadiu o Fosso dos Dragões, matando todos os dragões que lá estavam. O terceiro filho de Rhaenyra, Joffrey, tentou impedir a matança, mas caiu de seu dragão e morreu. Pouco depois, o dragão de Rhaenyra, Syrax, também foi morto. O conselho de Rhaenyra chegou à conclusão de que King’s Landing estava perdida, e Rhaenyra fugiu da capital no dia seguinte com seu filho Aegon.
Rhaenyra foi eventualmente capturada e morta — Aegon II, seu meio-irmão, ordenou que ela fosse devorada por seu dragão, enquanto o filho de Rhaenyra, Aegon, o Jovem, foi feito refém.
Aegon II foi assassinado pouco tempo depois, deixando apenas sua filha, Jaehaera, já que Jaehaerys e Maelor haviam sido mortos. Ele foi sucedido por Aegon III, filho de Rhaenyra, que se casou com Jaehaera.
Paralelos entre Matilda e Rhaenyra
As muitas semelhanças entre Matilda e Rhaenyra evidenciam como eventos históricos influenciam a criação das narrativas ficcionais de George R. R. Martin. Ambas as mulheres enfrentaram desafios comparáveis em sua busca pelo poder.
Dinâmica familiar e casamentos
Matilda e Rhaenyra foram as únicas filhas legítimas sobreviventes de seus pais. Ambos, viúvos, casaram-se novamente com mulheres muito mais jovens em busca de herdeiros homens após a morte de seus únicos filhos — Henrique com Adeliza, Viserys com Alicent.
De forma semelhante, tanto Matilda quanto Rhaenyra foram casadas duas vezes, cada uma delas uma vez com um homem significativamente mais velho.
Declaração do pai
O rei Henrique I da Inglaterra e o rei Viserys I Targaryen tomaram decisões similares em relação a seus herdeiros, declarando suas únicas filhas vivas como herdeiras após a morte de seus filhos homens. Em ambos os casos, a escolha de uma herdeira mulher foi uma decisão sem precedentes, que não foi bem recebida pela população em geral.
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Juramentos de aliança
Para reforçar o direito de suas filhas, ambos os reis exigiram juramentos de fidelidade de seus súditos e lordes. Contudo, esses juramentos se mostraram frágeis.
Após a morte de Henrique I, muitos barões renegaram seus juramentos a Matilda, apoiando uma coroação rápida de Estevão, justificada pelo rumor de que Henrique teria mudado de ideia sobre a sucessão em seu leito de morte.
De maneira similar, boa parte da população se recusou a aceitar Rhaenyra como rainha, e muitos lordes voltaram atrás em seus juramentos, apoiando Aegon II em uma coroação apressada, justificada pelo entendimento de que Viserys o teria apontado como herdeiro em seu leito de morte.
Guerras civis: Inglaterra e Westeros
Em ambos os casos, a crise sucessória levou a guerras civis devastadoras. Na Inglaterra, o período conhecido como Anarquia dividiu o reino e resultou em matança generalizada, enquanto Matilda e seu primo Estevão de Blois lutavam entre si.
No mundo de Westeros, a disputa sucessória entre Rhaenyra e seu meio-irmão Aegon transformou-se na Dança dos Dragões, uma guerra civil catastrófica que despedaçou Westeros e destruiu a Casa Targaryen.
Rainhas por pouco tempo
Tanto Matilda quanto Rhaenyra conseguiram tomar a capital por pouco tempo, mas tiveram que fugir logo depois, sem conseguirem manter o posto de rainhas. Após essas ocasiões, nenhuma das duas conseguiu recuperar o poder.
Sucessão do filho
No fim, tanto Matilda quanto Rhaenyra não ficaram com a coroa, mas Estevão e Aegon morreram sem deixar descendentes masculinos vivos. Assim, os filhos mais velhos dos segundos casamentos de Matilda e Rhaenyra, Henrique e Aegon, foram coroados reis, sucedendo os homens que haviam usurpado suas mães.
Problemas de gênero
Tanto Matilda quanto Rhaenyra enfrentaram problemas relacionados ao gênero: a Inglaterra não estava preparada para aceitar uma monarca mulher reinando de forma independente, o que contribuiu para angariar apoio à causa de Estevão.
Da mesma forma, as objeções ao reinado de Rhaenyra em Westeros eram baseadas em seu sexo, com seus inimigos declarando que uma mulher no trono era algo sem precedentes e contrário à ordem estabelecida. Ambas também foram criticadas como arrogantes e altivas demais.
A inspiração de George R. R. Martin
Os paralelos entre Matilda e Rhaenyra demonstram como George R. R. Martin se inspirou na história medieval para criar um cenário político intrincado para Westeros, reimaginando eventos históricos em um contexto de fantasia.
Essa conexão entre história e fantasia enriquece a experiência e encoraja as audiências a explorar os eventos do mundo real que inspiraram essas histórias cativantes.