Yuri Martins fala sobre a tradução de “Verão de lenço vermelho”

Yuri Martins fala sobre a tradução de “Verão de lenço vermelho”

Quando se pensa em literatura russa no Brasil, alguns nomes clássicos estão sempre na ponta da língua. O público já conhece Dostoiévski e Tolstói, embora Púchkin e Gógol nem sempre sejam lembrados com a mesma frequência. No entanto, a literatura russa não se resume apenas a essas relíquias. Recentemente, mais editoras têm trazido clássicos menos conhecidos, livros do período soviético e narrativas contemporâneas, em traduções diretas do russo.

No final de julho, o selo Seguinte da Companhia das Letras lançou o romance Verão de lenço vermelho, originalmente publicado em 2021. A narrativa aborda o relacionamento entre dois garotos em um acampamento de pioneiros durante os anos 1980, na União Soviética.

Escrito pela russa Elena Malíssova e pela ucraniana Katerina Silvánova, o livro foi um sucesso, a ponto de ser banido devido ao seu conteúdo LGBTQIA+. As autoras deixaram a Rússia em 2022, após sofrerem perseguições e ameaças.

Autoras de Verão de lenço vermelho
Elena Malíssova e Katerina Silvánova | Imagem: The Russian Reader

A literatura russófona contemporânea já é pouco traduzida e publicada em português. Narrativas infantojuvenis ou para jovens adultos são ainda menos cogitadas para publicação. Por isso, o lançamento de Verão de Lenço Vermelho durante a Flipop 2024 foi uma surpresa.

Para entender melhor a recepção do livro e seu processo de tradução, conversamos com Yuri Martins, tradutor de Verão de Lenço Vermelho. Yuri formou-se em Letras, com habilitações em português e russo, e é mestre em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo.

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Diferentes recepções de um livro

DN) Quando o livro foi anunciado, foi uma surpresa para mim, já que os livros russos mais populares no Brasil são os clássicos, e de forma relativamente limitada, pois os mais publicados são Dostoiévski e Tolstói.

Até mesmo a literatura do período soviético é menos lembrada pelo público e pelo mercado editorial. Por isso, qual é a expectativa com a recepção do livro, considerando que a maior parte do público de Verão de Lenço Vermelho não é o público da literatura russa clássica?

Fiquei muito contente com a notícia de que Verão de Lenço Vermelho seria traduzido, entre outros motivos, justamente por essa particularidade das publicações russas aqui no Brasil.

Embora tenhamos publicações até bem diversificadas hoje em dia, a impressão é que a maior parte do público brasileiro acha que a literatura russa é composta apenas por calhamaços escritos por algum ‘Tolstoiévski’, quando na verdade existem centenas de outros nomes e histórias.

Pensando nisso, minha maior expectativa com a tradução de Verão é que a literatura russa chegue a outros públicos e por outros caminhos, e que a leitura desperte um interesse pela Rússia e pela antiga União Soviética. Espero também que o público-alvo da literatura russa clássica se interesse pelo livro e pelas questões que ele aborda.

Acho que é muito importante uma obra russa que trata de sexualidade e preconceito ser traduzida e lida, afinal, o contexto político e social da Rússia em relação a pessoas LGBTQ+ é bastante crítico.

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DN) O sucesso de Verão de lenço vermelho na Rússia pode ter desencadeado reações negativas em alguns setores políticos, entretanto, é um sinal de que pessoas queer no leste europeu existem e resistem ao conservadorismo.

No Brasil, também enfrentamos movimentos de ódio — tanto às pessoas quanto à literatura. Por que é tão importante trazer livros perseguidos em outros países para o público brasileiro?

Acho que o mais importante na tradução de livros, em geral, é trazer ao público toda uma cultura e um contexto diversos. Quando falamos em “livros perseguidos”, as questões políticas também ganham destaque.

Verão de Lenço Vermelho é um romance de amor adolescente, mas também é um texto político que fala de como o preconceito e a homofobia são destrutivos.

O fato de as autoras terem sofrido sérias ameaças, inclusive de morte, e terem decidido deixar o país, bem como o livro ter sido discutido na Duma e legalmente proibido, são provas de que a literatura ainda tem um poder muito grande.

Então, traduzir histórias como essa é uma forma, ainda que pequena, de apoiar as autoras e a comunidade. E de deixar o tema da perseguição a pessoas LGBTQ+ na Rússia em destaque, afinal, é uma questão de direitos humanos.

Capa do livro Verão de lenço vermelho
Capa de Verão de lenço vermelho | Imagem: Editora Seguinte

Diferenças culturais e geracionais

DN) No Ocidente, somos frequentemente expostos à ideia de que não existem pessoas queer no Leste Europeu, ou que todas as pessoas são preconceituosas. Com a popularidade de Verão de Lenço Vermelho, entendemos que essa ideia não corresponde à verdade.

Você acredita que com a publicação do livro no Brasil alguns mitos sobre a União Soviética e a Rússia podem perder força — ao menos entre o público jovem?

Acho que a leitura de Verão de Lenço Vermelho contribui para desfazer alguns estereótipos. Por exemplo, é muito comum associarmos a Rússia ao frio e ao inverno, mas essa história se passa em um verão ensolarado. Ou seja, tem verão lá também, faz calor, dá para nadar em um rio sem ter que quebrar o gelo ou lutar com ursos. Pode parecer meio bobo, mas é um primeiro passo

Temos também a questão da linguagem, que é contemporânea, então desmancha a ideia de que os textos russos têm uma linguagem complexa e difícil de entender — e isso não quer dizer que Verão não tenha passagens mais reflexivas, que se aprofundam na psicologia das personagens.

Por se passar na União Soviética, acho que o livro pode também despertar o interesse em saber mais sobre esse país, que não existe mais, mas teve um papel importantíssimo na história mundial no século 20.

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Acredito que o livro traz uma ampliação de imaginários, afinal, o mercado de literatura jovem é dominado por países de língua inglesa, majoritariamente os EUA. Para quem é fã da literatura russa clássica, é também uma ampliação, pois é uma obra bem contemporânea. Resumindo, com essa história, o público pode conhecer um outro mundo de referências, o que, para mim, é sempre muito positivo.

DN) Além da temática LGBTQ+, Verão de Lenço Vermelho também é atravessado pela chamada nostalgia soviética. Você pensa que esse resgate histórico pode ter contribuído para o sucesso do romance na Rússia?

Eu acho que o livro tem uma nostalgia muito grande sobre “tempos felizes”, mas isso está mais relacionado à juventude das personagens e ao primeiro amor do que à União Soviética propriamente.

Ao longo da história, são feitas críticas ao modo de vida soviético e suas convenções, e isso acabou sendo um dos motivos da perseguição ao livro, inclusive. Para mim, o fato de a história se passar nessa época despertou a curiosidade de uma geração que já nasceu quando a URSS não existia mais.

Uma geração que só tinha acesso a esse universo através de livros da época ou de relatos de seus pais e avós. Verão de Lenço Vermelho tenta recriar esse período trazendo personagens com os quais a geração mais jovem pode se identificar, mostrando, por exemplo, que a descoberta da própria sexualidade, os dilemas do primeiro amor e o sentimento de inadequação com o mundo sempre existiram.

Ao mesmo tempo, Elena Malíssova já comentou que recebeu mensagens de pessoas mais velhas (com a idade que Volódia e Iura teriam hoje, ou seja, em torno de 50 anos) que se identificaram com a descrição do que era a vida na URSS e com as inquietações “sociais”, digamos assim, de Iura. Então, é um livro que fala com diferentes gerações.

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DN) A história da literatura russa é permeada por escritores exilados; as autoras de Verão de lenço vermelho deixaram a Rússia após perseguições. Você pensa que, com os conflitos mais recentes e o endurecimento de leis de teor homofóbico, podemos ter uma nova onda de literatura russófona de exílio?

É uma pergunta complexa! De imediato, me parece que sim, faz sentido que haja uma nova onda de literatura emigrada. As leis homofóbicas não são as únicas que causam consternação, afinal, a legislação russa já foi alterada mais de uma vez pelo atual presidente — que está “democraticamente” no poder desde que assumiu como vice, em 1999.

Ao mesmo tempo, a guerra contra a Ucrânia consolidou muito mais a Rússia como uma “vilã”, tivemos um boicote dos livros de Dostoiévski, mostras de cinema soviético e até contra o estrogonofe e o moscow mule logo no início da invasão, então pode ser que ainda haja um “desinteresse” estrangeiro por narrativas russas, mesmo que sejam contra o regime.

Talvez Verão de Lenço Vermelho mude um pouco isso? Não sei. Acho que existe muita literatura russa emigrada sendo produzida, principalmente na internet, mas é difícil mensurar o quanto disso será traduzido. Ou pode ser como aconteceu com a literatura russa emigrada dos anos 1910-1920: daqui a 100 anos, esses textos serão mais traduzidos do que foram na época — pensando no contexto brasileiro, por exemplo.

Traduzindo um livro banido

DN) O processo de tradução pode ser uma verdadeira montanha-russa de sentimentos, especialmente com textos que abordam temas difíceis, como homofobia internalizada e medo de rejeição.

Durante a tradução do livro, você se sentiu impactado por trechos mais sensíveis? Como você lida com isso sem deixar o trabalho de lado?

Sim, algumas passagens me impactaram. Acho que não esperava que a história abordasse o medo e o sentimento de rejeição de maneira tão profunda, afinal, é um “livro adolescente”. Mas não tem o que fazer, afinal, precisamos traduzir tudo.

O jeito é fazer uma pausa, tomar uma água e voltar ao trabalho já preparado para o que me espera. Isso também vale para a preparação de textos. Recentemente, trabalhei em um livro sobre a guerra da Ucrânia e precisei parar diversas vezes, porque são relatos bem tristes e revoltantes.

Mas temos de continuar. Acho que o próprio leitor passa por isso também. Mas ele tem a opção de abandonar a leitura, né? Quem está traduzindo não… Acho que tem um outro sofrimento para o tradutor, que é, depois de digerir o que se passou, tentar recriar essa sensação de desconforto e tristeza na língua de chegada. E quase sempre achar que o efeito estava melhor no original.

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DN) Na Flipop, você comentou que o livro não poderia ter notas de rodapé, e realmente não tem nenhuma notinha! Sabemos que os livros russos costumam chegar ao Brasil recheados de notas e explicações, pelas diferenças linguísticas, culturais e históricas.

Você poderia contar um pouco sobre essa decisão editorial de não trazer notas e se, enquanto tradutor, isso facilitou ou dificultou o processo de tradução?

Essa questão das notas apareceu logo no início do projeto como uma característica de todos os livros da editora, então fazia parte do escopo do trabalho. Foi um pouco assustador no começo, embora eu já tivesse algumas reservas pessoais em relação a notas de rodapé.

Às vezes, me deparo com notas tão genéricas que poderia dar no mesmo estarem ou não ali. Outras vezes, são notas tão extensas que ocupam mais espaço que o próprio texto, e acabamos perdendo o fio da meada.

No caso de Verão de Lenço Vermelho, foi um pouco radical, porque eu sabia que não haveria nenhuma nota. Assim, recorri às adaptações e inserções textuais, com pequenas explicações. Tentei fazer isso de modo que parecesse parte do texto original, “imitando” o estilo das autoras.

Não sei o quanto isso funcionou. No caso das explicações sobre o mundo soviético, talvez tenha ficado mais orgânico, porque algumas coisas da URSS já são distantes do público russo de hoje, então até faria sentido ter uma mini explicação no original.

O que me preocupou um pouco mais foi a questão dos nomes russos com seus patronímicos e milhares de apelidos. Achei que precisava de uma explicação mais detalhada. Pensando nisso, fiz uma nota introdutória que foi mantida no livro e acho que ajuda o leitor a se localizar um pouco mais.

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DN) Você também falou na Flipop sobre a diferença de estilos que se encontram na narrativa, por conta da coautoria. Além dessa particularidade, quais outros aspectos do livro se destacaram no processo de tradução e que você espera que o público também perceba?

Eu acho que a gente consegue perceber bem no original a mudança de estilo nos trechos mais narrativos e nos diálogos. Talvez não seja propriamente uma questão de estilo, já que o livro é bastante homogêneo nesse sentido, mas há um trabalho atento com registros de linguagem. Achei todos os diálogos muito vivos e naturais.

Já as partes narrativas, as descrições da natureza e os trechos mais reflexivos que abordam questões mais delicadas, por exemplo, são bem sutis e, algumas vezes, usam um registro de linguagem mais “poético”, por assim dizer. Então fiquei preocupado em recriar essa alternância de maneira natural, sem que os diálogos ficassem coloquiais demais e soassem artificiais na escrita, nem que as passagens descritivas ficassem muito “século 19”.

Essa questão de estilo e registro de linguagem eu costumo rever com atenção redobrada na leitura final, antes de enviar para editora. Depois, o texto ainda é preparado por outra pessoa, que ajuda a resolver algumas questões de estilo e de padronização. No fim, acho que conseguimos manter esses registros e entregar um texto que mantém as principais características do original. Espero que o público se divirta e se emocione em igual medida com a história!

  • Verão de lenço vermelho, de Elena Malíssova e Katerina Silvánova
  • Editora Seguinte
  • Tradução de Yuri Martins de Oliveira
  • 464 páginas

Escrito por:

Estudante de Russo na USP, fã de Red Velvet e degustadora profissional de refrigerante de cereja. Acredita piamente que assistir Trainspotting e ler Gógol são as curas para os males do mundo.
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