Ambientado em Moscou nos anos 1950, Meninas (Liudmila Ulítskaia, publicado no Brasil pela Editora 34) traz seis contos protagonizados por garotas de 9 a 12 anos de idade. A organização das histórias e aparição das mesmas personagens formam o que a autora classificou como um “romance fractal”, uma narrativa romanesca com protagonistas alternados inseridos nos mesmos ambientes.
A escolha de retratar meninas não é por acaso. No posfácio da obra, assinado por Danilo Hora, discute-se a vontade de Ulítskaia em registrar a infância feminina. A intenção da autora parte de sua percepção sobre as diversas obras que recordam a infância masculina na Rússia e na União Soviética.
Essas obras apresentam um forte tom memorialista, o que também é observado em Meninas. De origem judaica, Liudmila nasceu durante a Segunda Guerra Mundial e mudou-se para Moscou com meses de vida, após a evacuação do vilarejo onde vivia sua família.
Lília: a identidade etno-religiosa e a puberdade
Dentre os seis contos, “No dia 2 de março daquele mesmo ano” é o que mais apresenta elementos autobiográficos. Lília, a protagonista, é filha de médicos judeus, semelhante aos pais de Liudmila – seu pai era engenheiro e a mãe, pesquisadora formada em bioquímica. Enfrentando a puberdade no auge de seus 12 anos, Lílietchka ainda precisa lidar com a crescente hostilidade antissemita na escola.
Em um dia de aula, Lília é encurralada por Viktor, que a atormenta com frequência. Os dois brigam fisicamente e, com uma raiva súbita, a garota bate na cabeça do rapaz ao ponto de causar uma concussão. A lesão, tão específica, não é por acaso: oficialmente, Stalin morreu por uma hemorragia cerebral.
Nesse contexto violento, Lília começa a entender sua identidade, tanto como judia quanto como mulher. Na tarde após a briga na escola, ela tem sua primeira menstruação; à noite, seu bisavô morre. Muito distante desse cotidiano juvenil, é no dia 2 de março que a saúde de Stalin se deteriora bruscamente – sua morte acontece dias depois.
As mudanças íntimas de Lília – o amadurecimento, a perda de um ente querido, a compreensão de sua identidade – passam despercebidas pela “grande história”, prestes a ser transformada pela morte do líder soviético. Entretanto, o caráter individual das experiências de Lília dialoga com as experiências particulares dos leitores, além de dialogar com inúmeras garotas da época. Afinal, a “grande história” não passa da socialização de vivências pessoais.
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A descoberta da heterossexualidade…
Ao falar da puberdade, Liudmila não deixou de lado temas espinhosos como a sexualidade. Em “Catapora”, as personagens aparecem reunidas para o aniversário de Aliôna, filha de diplomatas. Sozinhas no apartamento luxuoso, as garotas se dividem entre noivos e noivas e mergulham em um faz-de-conta tipicamente infantil, que logo encontra um obstáculo: de onde vêm os bebês?
Tatiana Kolivânova, a mais pobre entre as meninas e declarada “má aluna”, é quem conhece as “coisas secretas, de adultos”. Ela se encarrega de explicar às amigas como funcionam tais coisas, e o grupo passa a encenar a noite de núpcias dos casais. Apesar de inusitada, a cena não trabalha a sexualidade de forma grotesca. Retratada de forma natural, a brincadeira das meninas é apenas uma etapa da puberdade.
A pobre Kolivânova, entretanto, não pôde aproveitar o resto da brincadeira sobre a qual entendia tanto. Com vergonha de perguntar à Aliôna onde era o banheiro, inventou que deveria voltar para casa mais cedo e saiu em disparada, sentindo vergonha de si mesma. Em casa, não conseguiu conter o choro angustiado.
Eventualmente, as outras garotas deixaram o apartamento de Aliôna. Após o aniversário, quase todas contraíram catapora. Afastadas da escola por algumas semanas, não mencionaram mais a brincadeira, como se tomadas por constrangimento. Apesar disso, Ulítskaia não retrata a sexualidade como naturalmente constrangedora, dando a entender que o sentimento é fruto de convenções sociais.
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… e de outras orientações sexuais
Tatiana é a protagonista de outro conto sobre a percepção da sexualidade na pré-adolescência. Em “A pobre, feliz Kolivânova”, a garota se apaixona pela nova professora de alemão do colégio, Ievguênia Aleksêievna. Após uma mudança instituída pela Seção Regional de Educação Popular, as escolas deveriam adotar o ensino misto, ou seja, não seriam mais divididas por gênero. Assim, a escola frequentada pelas personagens sofreu uma injeção de estudantes do colégio masculino.
Com a mudança escolar, a aproximação entre garotos e garotas não é uma surpresa como a atração de Tatiana pela professora. Mas, apesar do tema inusitado, a autora também trata o assunto com naturalidade, e nunca surgem questionamentos sobre a paixão de Tatiana.
Não interessa a ninguém saber como ou porquê a garota se sente atraída por uma mulher mais velha. Ela simplesmente está apaixonada, e para a narrativa, isso basta. Liudmila trata do amor de Tatiana de forma tão normal que, se Ievguênia fosse substituída por um personagem masculino, o sentido continuaria o mesmo.
A paixão da protagonista é tão forte que Tatiana passa a seguir a professora após as aulas, descobre seu endereço e, além disso, que Ievguênia tem um amante. Mas a personagem, ainda muito jovem, não compreende a proporção de suas descobertas, nem de suas ações, que ficam mais intensas no decorrer do conto.
Quando o Dia Internacional de 8 de Março se aproxima, Tatiana vê a possibilidade de comprar um buquê de flores para a professora, projeto ao qual passa a se dedicar exaustivamente. Sem grande poder aquisitivo, diferente das colegas, a menina tenta juntar os 54 rublos necessários a qualquer custo.
A pobre, feliz Kolivânova
O clímax do conto não acontece durante a jornada de Tatiana em busca de dinheiro para o buquê. Após juntar rublos suficientes e comprar as flores, a jovem as deixa na porta do apartamento da professora; quem descobre o buquê primeiro, entretanto, é Lukin, marido de Ievguênia.
Convencido de que a esposa tem um amante, Lukin desfere um tapa em Ievguênia. Apesar da consequência desastrosa, Tatiana já está bem longe do apartamento e não tem nem ideia do episódio de violência sofrido pela amada.
Mesmo com a agressão, o casal não se separa; a professora recebe um atestado e o marido, militar, é transferido para o exterior, levando Ievguênia consigo. A violência doméstica é o ponto mais extremo da narrativa, que expõe as dificuldades das personagens delicadamente, apesar de não usar eufemismos.
Os dilemas familiares e sociais não objetivam chocar o leitor, mas também não são tratados de forma leniente. Assim, em Meninas, Liudmila Ulítskaia consegue transmitir com clareza o cotidiano formativo das personagens, mostrando que, apesar do contexto social relativamente conturbado, são pequenos acontecimentos que constroem as identidades das meninas, e não os episódios históricos marcantes, como a morte de Stalin.
- Meninas, de Liudmila Ulítskaia
- Editora 34
- Tradução de Irineu Franco Perpetuo
- 168 páginas
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Crédito: colagem em destaque feita por Angélica Cigoli para o Delirium Nerd.