Meninas: Liudmila Ulítskaia constrói um retrato da infância feminina na União Soviética

Meninas: Liudmila Ulítskaia constrói um retrato da infância feminina na União Soviética

Ambientado em Moscou nos anos 1950, Meninas (Liudmila Ulítskaia, publicado no Brasil pela Editora 34) traz seis contos protagonizados por garotas de 9 a 12 anos de idade. A organização das histórias e aparição das mesmas personagens formam o que a autora classificou como um “romance fractal”, uma narrativa romanesca com protagonistas alternados inseridos nos mesmos ambientes.

A escolha de retratar meninas não é por acaso. No posfácio da obra, assinado por Danilo Hora, discute-se a vontade de Ulítskaia em registrar a infância feminina. A intenção da autora parte de sua percepção sobre as diversas obras que recordam a infância masculina na Rússia e na União Soviética.

Essas obras apresentam um forte tom memorialista, o que também é observado em Meninas. De origem judaica, Liudmila nasceu durante a Segunda Guerra Mundial e mudou-se para Moscou com meses de vida, após a evacuação do vilarejo onde vivia sua família.

Capa do livro Meninas, de Lidumila Ulítskaia, publicado no Brasil pela Editora 34
Capa brasileira de Meninas, com tradução de Irineu Franco Perpetuo. Publicado originalmente em 2002, chegou ao Brasil em 2021 pela Editora 34| Imagem: divulgação

Lília: a identidade etno-religiosa e a puberdade

Dentre os seis contos, “No dia 2 de março daquele mesmo ano” é o que mais apresenta elementos autobiográficos. Lília, a protagonista, é filha de médicos judeus, semelhante aos pais de Liudmila – seu pai era engenheiro e a mãe, pesquisadora formada em bioquímica. Enfrentando a puberdade no auge de seus 12 anos, Lílietchka ainda precisa lidar com a crescente hostilidade antissemita na escola.

Em um dia de aula, Lília é encurralada por Viktor, que a atormenta com frequência. Os dois brigam fisicamente e, com uma raiva súbita, a garota bate na cabeça do rapaz ao ponto de causar uma concussão. A lesão, tão específica, não é por acaso: oficialmente, Stalin morreu por uma hemorragia cerebral.

Nesse contexto violento, Lília começa a entender sua identidade, tanto como judia quanto como mulher. Na tarde após a briga na escola, ela tem sua primeira menstruação; à noite, seu bisavô morre. Muito distante desse cotidiano juvenil, é no dia 2 de março que a saúde de Stalin se deteriora bruscamente – sua morte acontece dias depois.

As mudanças íntimas de Lília – o amadurecimento, a perda de um ente querido, a compreensão de sua identidade – passam despercebidas pela “grande história”, prestes a ser transformada pela morte do líder soviético. Entretanto, o caráter individual das experiências de Lília dialoga com as experiências particulares dos leitores, além de dialogar com inúmeras garotas da época. Afinal, a “grande história” não passa da socialização de vivências pessoais.

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A descoberta da heterossexualidade…

Ao falar da puberdade, Liudmila não deixou de lado temas espinhosos como a sexualidade. Em “Catapora”, as personagens aparecem reunidas para o aniversário de Aliôna, filha de diplomatas. Sozinhas no apartamento luxuoso, as garotas se dividem entre noivos e noivas e mergulham em um faz-de-conta tipicamente infantil, que logo encontra um obstáculo: de onde vêm os bebês?

Tatiana Kolivânova, a mais pobre entre as meninas e declarada “má aluna”, é quem conhece as “coisas secretas, de adultos”. Ela se encarrega de explicar às amigas como funcionam tais coisas, e o grupo passa a encenar a noite de núpcias dos casais. Apesar de inusitada, a cena não trabalha a sexualidade de forma grotesca. Retratada de forma natural, a brincadeira das meninas é apenas uma etapa da puberdade.

A pobre Kolivânova, entretanto, não pôde aproveitar o resto da brincadeira sobre a qual entendia tanto. Com vergonha de perguntar à Aliôna onde era o banheiro, inventou que deveria voltar para casa mais cedo e saiu em disparada, sentindo vergonha de si mesma. Em casa, não conseguiu conter o choro angustiado.

Eventualmente, as outras garotas deixaram o apartamento de Aliôna. Após o aniversário, quase todas contraíram catapora. Afastadas da escola por algumas semanas, não mencionaram mais a brincadeira, como se tomadas por constrangimento. Apesar disso, Ulítskaia não retrata a sexualidade como naturalmente constrangedora, dando a entender que o sentimento é fruto de convenções sociais.

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… e de outras orientações sexuais

Tatiana é a protagonista de outro conto sobre a percepção da sexualidade na pré-adolescência. Em “A pobre, feliz Kolivânova”, a garota se apaixona pela nova professora de alemão do colégio, Ievguênia Aleksêievna. Após uma mudança instituída pela Seção Regional de Educação Popular, as escolas deveriam adotar o ensino misto, ou seja, não seriam mais divididas por gênero. Assim, a escola frequentada pelas personagens sofreu uma injeção de estudantes do colégio masculino.

Cartão postal soviético
“Baile escolar”, cartão postal soviético de 1956 | Imagem: Soviet Visuals

Com a mudança escolar, a aproximação entre garotos e garotas não é uma surpresa como a atração de Tatiana pela professora. Mas, apesar do tema inusitado, a autora também trata o assunto com naturalidade, e nunca surgem questionamentos sobre a paixão de Tatiana.

Não interessa a ninguém saber como ou porquê a garota se sente atraída por uma mulher mais velha. Ela simplesmente está apaixonada, e para a narrativa, isso basta. Liudmila trata do amor de Tatiana de forma tão normal que, se Ievguênia fosse substituída por um personagem masculino, o sentido continuaria o mesmo.

A paixão da protagonista é tão forte que Tatiana passa a seguir a professora após as aulas, descobre seu endereço e, além disso, que Ievguênia tem um amante. Mas a personagem, ainda muito jovem, não compreende a proporção de suas descobertas, nem de suas ações, que ficam mais intensas no decorrer do conto.

Quando o Dia Internacional de 8 de Março se aproxima, Tatiana vê a possibilidade de comprar um buquê de flores para a professora, projeto ao qual passa a se dedicar exaustivamente. Sem grande poder aquisitivo, diferente das colegas, a menina tenta juntar os 54 rublos necessários a qualquer custo.

A pobre, feliz Kolivânova

O clímax do conto não acontece durante a jornada de Tatiana em busca de dinheiro para o buquê. Após juntar rublos suficientes e comprar as flores, a jovem as deixa na porta do apartamento da professora; quem descobre o buquê primeiro, entretanto, é Lukin, marido de Ievguênia.

Convencido de que a esposa tem um amante, Lukin desfere um tapa em Ievguênia. Apesar da consequência desastrosa, Tatiana já está bem longe do apartamento e não tem nem ideia do episódio de violência sofrido pela amada.

Mesmo com a agressão, o casal não se separa; a professora recebe um atestado e o marido, militar, é transferido para o exterior, levando Ievguênia consigo. A violência doméstica é o ponto mais extremo da narrativa, que expõe as dificuldades das personagens delicadamente, apesar de não usar eufemismos.

Os dilemas familiares e sociais não objetivam chocar o leitor, mas também não são tratados de forma leniente. Assim, em Meninas, Liudmila Ulítskaia consegue transmitir com clareza o cotidiano formativo das personagens, mostrando que, apesar do contexto social relativamente conturbado, são pequenos acontecimentos que constroem as identidades das meninas, e não os episódios históricos marcantes, como a morte de Stalin.

  • Meninas, de Liudmila Ulítskaia
  • Editora 34
  • Tradução de Irineu Franco Perpetuo
  • 168 páginas
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Crédito: colagem em destaque feita por Angélica Cigoli para o Delirium Nerd.

Escrito por:

Estudante de Russo na USP, fã de Red Velvet e degustadora profissional de refrigerante de cereja. Acredita piamente que assistir Trainspotting e ler Gógol são as curas para os males do mundo.
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