Todos aqueles que consomem cultura já se perguntaram: “a vida imita a arte ou a arte imita a vida?” Nesse processo de entender quem se inspirou em quem é que surgem as diversas produções baseadas, mas nem sempre, nas histórias reais, ou melhor, nas brechas de uma linha do tempo em que os acontecimentos históricos, por mais precisos que sejam, não conseguem responder.
Esse é o caso da série The Great, uma produção estadunidense que mistura comédia com as revoluções mais sangrentas de uma monarquia absolutista. Nessa tragicomédia perfeita, o espectador acompanha Catarina (Elle Fanning), uma estrangeira recém-casada com Peter III (Nicholas Hoult), que ascende ao trono do Império Russo, tornando-se a imperatriz e uma governante feminina.
O golpe político e a tomada de poder por uma mulher fascinam além da história biográfica. Catarina foi uma das mulheres mais brilhantes de seu século, a única e última déspota esclarecida do império Russo. Por isso, sua história tão incomum chama a atenção e propicia diversas adaptações para o audiovisual ao longo do tempo.
A figura enigmática da imperatriz figurou em algumas séries e filmes famosos, cada um remodelando a história à sua forma. A produção de The Great não ficou de fora disso e escolheu trazer, através de escolhas pouco tradicionais, um novo olhar para a imperatriz e suas relações na corte em 1762. O olhar cômico e completamente original.
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Catarina, a Grande e a história por trás da ficção
Antes de se tornar Catarina, a Grande, ela era Sofia von Anhalt-Zerbst, uma jovem alemã nascida no seio de uma família germânica abastada. Ao contrário da série, que a retrata com duas irmãs, Catarina era a irmã mais velha e a menos desejada pela mãe. Joana, sua mãe, nunca se recuperou do impacto de ter como primogênita uma filha que nunca poderia ser herdeira. Além disso, seu filho caçula e mais amado veio a falecer aos 12 anos, deixando um legado amargo para Catarina.
Desde a juventude, ela sabia que a única forma de se livrar de sua mãe e do destino de permanecer solteira era por meio do casamento. Criada em um ambiente de cultura, arte e pensamentos filosóficos iluministas, a maior virtude de Sofia, depois conhecida como Catarina, era sua inteligência e sagacidade. Assim, ela nunca desprezou a ideia do casamento; ao contrário, via nele um caminho para a liberdade, a qual lhe foi concedida mais tarde pelo Império Russo.
Catarina chega à corte russa como uma estrangeira, sem conhecimento daquele ambiente e das dinâmicas de um império russo, mas não lhe falta obstinação. Em pouco tempo, ela aprendeu o idioma local, converteu-se ao cristianismo ortodoxo e deixou de ser Sofia, renascendo como Catarina. Apesar de casada com o príncipe Peter III, ela manteve suas próprias ambições.
Quando Peter assumiu o império, não recebeu tanto apoio da nobreza, e em apenas seis meses Catarina conseguiu reunir apoio e tomar o trono para si. Na história nua e crua, há pouco espaço para invenção, especialmente em uma época obscura como o século XVIII. Após um golpe, não há harmonia entre as partes, mas sim conflito e desconfiança, temas que recorrentemente protagonizam a série estadunidense. Assim, três dias após o golpe de estado, Peter III é considerado morto.
Coroada como Catarina II, sucederam-se muitos boatos em relação ao seu reinado, principalmente sobre sua tomada de poder. As fofocas da corte atribuíam a Catarina e seu amante a autoria do golpe. Além disso, os escândalos envolvendo sua corte e sua pessoa eram incontáveis, o que não se apresenta apenas na história biográfica, mas também nas diversas adaptações para o audiovisual, especialmente em The Great.
A ficção por ela mesma
Pensar no termo ficção é pensar em possibilidades, não em verdade nem em mentira, mas na possibilidade de existir entre as duas versões. Dessa forma, não é válido deslegitimar uma adaptação por sua falta de veracidade aos fatos históricos, afinal, toda adaptação existe em um tempo e contexto específicos, juntamente com os fatos que os antecederam. É assim que a série se torna original.
Em The Great, a mais recente produção da história polêmica de Catarina II, é possível perceber as diferenças, pois a liberdade criativa é proporcionada pela liberdade da ficção. Atualmente, a série conta com três temporadas completas, sendo a última realizada há pouco tempo.
Em sua estreia (2020), somos apresentados a uma Catarina inocente, pura e que idealizava a vida, especialmente a ideia de se casar com um imperador. Isso se assemelha um pouco ao desejo real da imperatriz de se casar.
O espectador é apresentado a uma Catarina em tons pastel, rodeada por flores, com um olhar de pureza e um desejo ardente por um amor compartilhado que ela acredita existir entre um casal.
Logo no primeiro episódio, nossa protagonista é enviada para a Rússia e, em seu primeiro encontro com seu futuro esposo, ela percebe, assim como o espectador, que seu marido é um imperador fútil, egoísta e repugnante. Além disso, ele mantém uma relação nada convencional com sua corte. Catarina se sente desolada e seu único apoio é sua criada, uma ex-nobre rebaixada para a diversão da corte.
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As semelhanças e as diferenças
Uma das primeiras coisas que chamam a atenção é a abertura da série, uma colagem que sempre apresenta um integrante da narrativa, o título e um pequeno asterisco que altera toda a dinâmica: “uma série ocasionalmente verídica”. Esse pequeno adendo alerta o espectador e mostra que no terreno da ficção e da história não é preciso seguir tudo ao pé da letra.
Assim, muitos eventos são extrapolados, alguns personagens são exageradamente caricatos e, o mais interessante, é que a torcida por Peter III, um homem ocasionalmente brutal e também amável, surge a partir dos diálogos mais cômicos e absurdos.
Ao contrário dos fatos históricos, Catarina II, ao assumir o poder, não consegue transformar Peter em um homem morto, o que, por mais cruel que possa parecer, era a opção mais segura. A protagonista é retratada como uma figura iluminada, influenciada pelos pensamentos de Voltaire, grávida de seu primeiro filho e completamente contra a barbárie. Assim, ela decide manter Peter em uma espécie de prisão domiciliar, reduzindo sua presença na corte em uma tentativa de puni-lo.
Uma história nada romântica
É nessa troca que os papéis se invertem: Catarina passa a ocupar o papel considerado masculino nessa dinâmica de poder, e Peter, ainda carregado de comportamentos repugnantes, começa a enxergar-se como indivíduo. Ele cuida do filho e luta pela reconciliação com sua esposa, a imperatriz.
Nesse jogo de amor e ódio, envolto em situações cômicas e grotescas, a história real é distorcida em favor da série. Isso não desmerece a obra, mas demonstra a capacidade ficcional de possibilidades. No final, um dos momentos mais marcantes na vida de Catarina, a Grande; sua tomada de poder e a morte de seu esposo Peter III, não são os mesmos retratados em Catarina.
Catarina se torna uma imperatriz cheia de conflitos em seu reinado. Um deles é em relação a si mesma e ao amor que nutre, secretamente, por aquele a quem jurou nunca demonstrar afeto ou gratidão: Peter. Vivendo uma vida de casal que parecia impossível no início, a morte de Peter II chega de forma natural, ao acaso, como tudo na vida. Ele cai de seu cavalo no profundo gelo de uma região isolada em sua pátria.
No fim, dilacerada pelo luto, Catarina se vê sozinha, e é a partir desse momento que ocorre sua transformação mais significativa. Sua maior libertação como imperatriz não ocorre ao tomar o poder. O dia 1 não é o que segue após a tomada da coroa, mas sim quando ela percebe seu entorno e suas relações, quando compreende o jogo e quase o perde. Com seu reinado em ruínas, Catarina, a Grande, renasce como a imperatriz russa mais duradoura.
Diante de tudo isso, a pergunta que fica é a mesma que nomeia o texto: “O audiovisual deve repetir a história?” Considerando os pontos destacados, talvez o melhor caminho não seja a mera reprodução, mas sim a inovação, a originalidade. Afinal, a ficção é uma possibilidade que se realiza nas lacunas da história, e no audiovisual, explorar é permitido.
Referências: