Inteligência Artificial, Estúdio Ghibli e cultura pop: vamos conversar?

Inteligência Artificial, Estúdio Ghibli e cultura pop: vamos conversar?

Dias atrás, o uso de Inteligência Artificial Generativa entrou mais uma vez em pautas e polêmicas. Isso porque, durante dias, nossas redes sociais foram tomadas por imagens emulando o estilo do famoso Studio Ghibli, geradas por essa ferramenta. Talvez você mesma tenha entrado na trend, para logo em seguida ser impactada por prints do próprio Hayao Miyazaki (co-fundador da Ghibli) em um vídeo de 2016 chamando o uso de IA de “desrespeito à própria vida“.

Quem é fã dos filmes de Miyazaki e outros do estúdio, não ficou surpreso pelo posicionamento do cineasta. Uma das marcas registradas das animações Ghibli é o seu caráter “artesanal” e minucioso, com o mínimo possível de intervenção digital, por assim dizer. Por isso, a febre em gerar imagens que tentam imitar uma estética que se baseia nesses valores foi, no mínimo, irônico.

“Eu sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida”

No entanto, basear as críticas a essa trend e ao uso de IAs Generativas unicamente nos sentimentos de Miyazaki enfraquece o debate, já que, sejamos honestas: 1) nem todo mundo liga para o que ele pensa; 2) os problemas vão muito (MUITO) além de indivíduos que, no final das contas, só querem se ver no estilo anime. E acredite, se você é fã de cultura pop e ainda é latina-americana, esses problemas te atingem diretamente.

Por isso, aqui vão alguns tópicos introdutórios para criticar o uso anti-ético da IA com propriedade!

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Você, artista ou não, está trabalhando de graça para uma empresa trilionária

Como se já não bastasse o absurdo de existirem empresas cujo valor de mercado ultrapassa o trilhão de dólares, essas mesmas empresas sabem (quase) tudo a seu respeito e vendem o seu comportamento online para outras marcas.

Essa informação por si só já é bem assustadora, mas se você conhece um pouco sobre algoritmo, talvez já até tenha se acostumado com essa realidade. O que talvez você não saiba, porém, é que além de ceder gratuitamente seus dados, você também ajuda – gratuitamente – essas empresas trilionárias a melhorarem suas próprias tecnologias.

Essas empresas são as chamadas Big Techs, responsáveis por todo essa coleta e processamento de dados digitais. Muitos especialistas vão chamar esse seleto grupo de Big Five (“Cinco grandes”), sendo os seus integrantes: Amazon, Meta, Google, Apple e Microsoft.

Essa lista, no entanto, pode se expandir um pouco mais a depender dos critérios de cada especialista. Pietra Vaz, por exemplo, no seu livro Irregulável Mundo Novo, inclui nessa lista o Tik Tok, por entender a influência da plataforma no mercado on-line.

Irregulável mundo novo – Pietra Vaz | Imagem: acervo pessoal

Ok, mas e nós com isso?

Ocorre que, para que o anúncio certo chegue até você, seus dados foram não apenas coletados, mas também vendidos para os anunciantes. Sem o seu consentimento direto, muito menos sua participação nos ganhos dessa venda.

Além disso, através das suas interações com IAs Generativas, você contribui para a otimização dessas ferramentas, seja através do feedback direto (clicando no botãozinho de like ou deslike) ou coisas mais subjetivas como o modelo das suas perguntas, palavras-chave utilizadas, tempo de interação etc.

Assim, podemos dizer que todo o funcionamento das Big Techs é baseada na exploração da nossa privacidade e ignorância (proposital, diga-se de passagem).

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E falando em exploração…

Além de nós, usuárias cronicamente online, as Big Techs também se utilizam de outras formas de exploração que nos impactam diretamente. Uma das mais preocupantes diz respeito à coleta de matéria-prima em países do Sul Global¹.

Espalhadas pelo mundo todo (mas principalmente na Europa e América do Norte), existem as máquinas responsáveis pelo funcionamento das IAs como o Chat GPT. Para que essas enormes e refinadas estruturas sejam possíveis, são necessários diversos elementos como o cobre, silício e lítio, dentre muitos outros. E de onde se extrai esses materiais? Claro, do nosso quintal!

Chile, Argentina, Bolívia e claro, o Brasil são apenas alguns dos territórios envenenados pela prática da mineração e extração, que também ocorre intensamente em diversos países africanos e asiáticos. Essa extração gera poluição da água e do solo, desmatamento, emissão de gazes e morte das populações indígenas. Ah, e com frequência também está ligada a mão de obra infantil e escravizada.

Parte do porquê os filmes do Studio Ghibli demoram a ser lançados é que cada parte do processo é revisado pelo próprio Miyazaki
Parte do porquê os filmes do Studio Ghibli demoram a ser lançados é que cada parte do processo é revisado pelo próprio Miyazaki | Imagem: reprodução

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Nerds pela regulamentação das Big Techs!

A lista de problemáticas envolvendo o atual funcionamento das IAs e suas respectivas empresas investidoras, poderia se estender longamente: o roubo dos artistas que expõem suas artes na internet, como as Big Techs formam opiniões e elegem presidentes, o vazamento da privacidade de crianças e outras populações vulneráveis, como nosso senso do que é verdade está comprometido para sempre.

O fato é que as IAs são ferramentas que merece um debate mais amplo, principalmente por parte de quem se importa com as produções culturais. Se você gosta de livros, HQs, música, cinema, televisão ou mesmo é uma artista: procure se informar sobre o impacto das IAs no que está consumindo, converse com pessoas, leia sobre o assunto. Enquanto silenciamos sobre o elefante na sala, novas formas mais sofisticadas de exploração são criadas.

Antes de qualquer produção artística que amamos, existe a vida. E muitas vidas – nossas vidas! – estão sendo afetadas, quando não, destruídas pelas ações nocivas dessas empresas. Debater cultura também é participar de debates políticos.

Por isso, acima de tudo, é necessário cobrar nossas lideranças sobre a regulação das Big Techs. Isso significa elaborar e aplicar leis que definam os limites dessas empresas na nossa atuação on-line, e que essas decisões não estejam nas mãos do setor privado. Nós e nossas comunidades, merecemos um ambiente virtual seguro e com mais autonomia.

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[1] Termo que substitui antigos conceitos políticos-econômicos como “terceiro-mundo”. Abarca países que estão à margem das grandes potências mundiais, como o próprio Brasil e toda a América-Latina.

Referências: 

  • Ética na inteligência artificial – Mark Coeckelbergh
  • Irregulável mundo novo – Pietra Vaz
  • Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista – Jonathan Crary

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Criança dos anos 2000, filha do cerrado mato-grossense, historiadora, pesquisadora da cultura e aspirante a crítica.
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