Eugénie Danglars: uma heroína lésbica no cânone literário do século XIX

Eugénie Danglars: uma heroína lésbica no cânone literário do século XIX

O Conde de Monte Cristo, obra-prima de Alexandre Dumas, é um clássico com uma peculiaridade notável. Tendo sido escrito na primeira metade do século XIX, este romance não apenas apresenta uma série de mulheres que – seguindo a tradição de Dumas, que criou personagens femininas célebres como Ana da Áustria, Margarida de Valois e Milady de Winter – rivalizam com personagens femininas modernas em termos de agência, independência e individualidade.

Alexandre Dumas nunca se furtou a escrever sobre mulheres interessantes e, por vezes, más – ou, no mínimo, moralmente ambíguas. Também nunca deixou de criar personagens femininas inteligentes, independentes, que têm poder próprio, vivem sozinhas ou que, de uma maneira ou de outra, são muito diferentes do que se espera de uma heroína do romantismo francês.

Eugénie Danglars: a personagem LGBTQ+ injustiçada nas adaptações de “O Conde de Monte Cristo”

É absolutamente inexplicável que nenhum dos filmes ou séries adaptados da obra tenham feito o menor esforço para representar essas mulheres como tais – frequentemente excluindo-as ou apagando suas personalidades por completo. Eugénie Danglars é uma dessas mulheres.

Eugénie Danglars | Reprodução

Em suas próprias palavras, ela é inteligente, talentosa, bonita, rica e furiosamente apaixonada pela liberdade e por sua independência. Mas Eugénie tem outra particularidade significativa: embora a palavra, por razões óbvias, não seja usada, nada poderia ser mais claro: Eugénie é lésbica – e não numa interpretação moderna que a identifica como tal, como ocorre com alguns outros personagens da literatura clássica que se tornaram ícones da comunidade LGBTQ+ sem, necessariamente, terem sido pensados por seus criadores como tal.

Dumas, sem sombra de dúvida, escreveu Eugénie como uma mulher lésbica – e deu a ela um final feliz com outra mulher.

Diana, a caçadora: uma mulher masculinizada

Na primeira vez em que Eugénie é vista, está num camarote no teatro. Seu então noivo, Albert de Morcerf, acena para onde ela está, mas enquanto sua mãe retribui o cumprimento prontamente, “seus grandes olhos negros mal se dignaram baixar até a orquestra.”

Um dos amigos de Albert, sem perceber a indiferença, menciona que não entende a infelicidade do rapaz, já que sua noiva é belíssima – “esculpida qual Diana Caçadora”. A resposta de Albert é reveladora: “Pois, justamente, eu teria preferido alguma coisa no gênero Vênus de Milo ou de Cápua. Essa Diana Caçadora, sempre no meio de suas ninfas, me assusta um pouco; tenho medo de que ela me julgue um Acteon”.

É interessante que Albert menciona aquilo que falta na beleza de Eugénie, dizendo que embora ela seja, de fato, muito bela, ele preferiria “alguma coisa mais delicada, mais suave, mais feminina”. A partir de então, Dumas continua sua descrição cada vez mais masculinizada de Eugénie.

Edição de "O Conde de Monte Cristo" da Zahar
Edição de “O Conde de Monte Cristo” da Zahar

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Depois de descrever seu rosto – usando termos como decidida e comparando-a a estátuas gregas -, ele parte para falar de seu corpo: “Aliás, todo o resto da pessoa de Eugénie combinava com essa cabeça que acabamos de tentar descrever. Era, como havia dito Château-Renaud, Diana Caçadora, mas com alguma coisa mais firme e musculosa em sua beleza.”

No que diz respeito à sua educação, Dumas é ainda mais explícito: “Quanto à educação que recebera, se havia uma observação a lhe fazer, era que, assim como certos aspectos de sua fisionomia, ela parecia pertencer a outro sexo”.

Características distintas e desprezo pelos homens

Há outras descrições de Eugénie, todas apontando uma masculinidade distinta: “Eugénie era forte como uma Judite ou uma Dalila”; “com aquele aspecto masculino que caracterizava seu gestual e sua fala”; “aquela natureza vigorosa que parecia não ter nenhum dos recatos femininos.”

Uma das características mais marcantes da personagem é o seu profundo desprezo por homens. Isso fica claro inúmeras vezes – tanto pela narração de Dumas quanto pelas falas da própria Eugénie.

Em determinada ocasião, Dumas escreve: “Eugénie detestava Debray não por ele ser um estorvo e um escândalo na casa paterna, mas simplesmente porque ela o enquadrava na categoria daqueles bípedes que Diógenes tentava não chamar mais de homens e que Platão designava com a perífrase ´bípedes deplumados’”.

Mais tarde, a própria Eugénie fala: “Todos os homens são infames, e estou feliz de poder fazer mais que detestá-los. Agora, desprezo-os.”

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Safo de Lesbos: as mulheres de Eugénie Danglars

Eugénie tem uma amiga chamada Louise D’Armilly, que também é sua professora de piano e vive em sua casa. Ao longo de todo o livro, Eugénie e Louise são vistas constantemente juntas, e é a companhia de Louise que Eugénie prefere em relação a qualquer outra pessoa. Louise é descrita como uma mulher definitivamente feminina, loura e pequena.

Em determinado momento, as duas estão se preparando para fugir de casa, e Eugénie pede que Louise feche um baú. O seguinte diálogo acontece:

— Mas não consigo — disse ela —, não tenho força. Feche você.

— Ah, está bem — disse Eugénie rindo —, eu estava esquecendo que sou Hércules e você tão-somente a pálida Ônfala.

Louise expressa sua admiração: “Você é uma autêntica amazona, Eugénie.”

Na mesma ocasião do teatro, Eugénie está com sua mãe, acompanhada pelo amante de sua mãe, o jornalista Lucien Debray, quando a conversa se volta para o Conde de Monte Cristo, a nova sensação da sociedade parisiense. Eugénie está marcadamente desinteressada nele e nas conversas em geral, mas interrompe-os para fazer o seguinte comentário: “E essa mulher, sr. Lucien, reparou como é bonita?”.

Ela se refere a Haydée, a moça que acompanha Monte Cristo. A resposta de Debray é reveladora: “Na verdade, só mesmo a senhorita para ser tão justa com as pessoas do seu sexo.”. Sem receber informações satisfatórias, ela repete a pergunta para Albert, que também não sabe muita coisa sobre Haydée.

A conversa no camarote se volta para a princesa grega, que está coberta em diamantes. Todos os presentes admiram o esplendor de suas joias, mas Eugénie sentencia: “É até um pouco exagerado. Ficaria mais bonita sem eles, pois veríamos seu pescoço e seus braços, que têm uma forma encantadora”. O diálogo que vem depois é o seguinte:

— Oh, a artista! Bastou vê-la para se apaixonar — disse a sra. Danglars.

— Gosto de tudo que é belo — declarou Eugénie.

— Mas que acha do conde, então? — perguntou Debray. — Tampouco ele me parece mal.

 — O conde?! — exclamou Eugénie, como se ainda não tivesse cogitado olhar para ele

Haydée não é a única mulher a chamar a atenção de Eugénie. Os presentes comentam sobre uma certa condessa, que sua mãe não sabia estar de volta em Paris. Eugénie prontamente a identifica, dizendo que “aquela mulher de lindos cabelos louros é ela”. O contraste continua quando é sugerido que Albert convide o Conde para vir ao camarote deles.

— Para quê? — perguntou Eugénie.

— Ora, para falarmos com ele; não está curiosa em conhecê-lo?

— Nem um pouquinho.

— Criança estranha! — murmurou a baronesa

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Em outro momento, Eugénie conversa com a srta. Valentine de Villefort. Embora não seja descrita a conversa, o leitor é informado de seu teor através de uma conversa entre Valentine e Maximillien Morrel, o homem com quem ela gostaria de se casar, se não estivesse noiva de outro. Valentine confessa que a conversa era sobre como ambas estavam infelizes com seus respectivos noivados.

Nesse momento, Maximillien diz que Eugénie é muito bonita, mas que não entende como um homem poderia se apaixonar por ela. Em seguida, ele introduz uma pergunta da seguinte maneira: “Mas cá entre nós… uma questão de simples curiosidade e que emana de certas ideias que formei sobre a srta. Danglars”.

Ele nunca esclarece que ideias são essas, mas prossegue para perguntar se a infelicidade de Eugénie com seu noivado com Albert é motivada por um amor por outro. Valentine esclarece:

– Ela me disse que não amava ninguém — respondeu Valentine. — Disse que tinha horror ao casamento; que sua maior alegria teria sido levar uma vida livre e independente; e que chegava a desejar que seu pai perdesse a fortuna para tornar-se artista, como sua amiga, a srta. Louise d’Armilly.

— Ah, está vendo?!

— Ora! O que isso prova? — perguntou Valentine.

— Nada — respondeu Maximilien sorrindo.

— Então — disse Valentine —, por que está sorrindo?

— Ah — disse Maximilien —, agora é você que está olhando, Valentine.

Albert não é o único pretendente à mão de Eugenie. Outro interessado é o Príncipe Andrea Cavalcanti – na verdade, um criminoso, chamado Benedetto, que está se passando por príncipe como parte de uma das vinganças de um crime.

Benedetto é meio-irmão de Eugenie, filho bastardo de sua mãe, Hermine, com o procurador de justiça Gerard de Villefort. Nenhum dos três, e nem o marido de Hermine e pai de Eugenie, o Barão Danglars, sabem disso, é claro.

Os pretendentes de Eugénie Danglars

Albert não é o único pretendente à mão de Eugénie. Outro interessado é o Príncipe Andrea Cavalcanti – na verdade, um criminoso, chamado Benedetto, que está se passando por príncipe como parte de uma das vinganças de Monte Cristo.

Benedetto é meio-irmão de Eugénie, filho bastardo de sua mãe, Hermine, com o procurador de justiça Gerard de Villefort. Nenhum dos três, e nem o marido de Hermine e pai de Eugénie, o Barão Danglars, sabem disso, é claro.

Andrea está desesperado para casar-se com Eugénie em função de sua imensa fortuna. Ele a corteja de maneira quase exagerada, com Dumas descrevendo-o como “um herói de Goethe”.

Eugénie, por sua vez, “continuava a mesma, isto é, bela, fria e irônica. Nenhum daqueles olhares, nenhum daqueles suspiros de Andrea lhe escapavam; dirse-ia que deslizavam sobre a couraça de Minerva, couraça que alguns filósofos sugerem recobrir às vezes o colo de Safo”.

Eugénie Danglars
Eugénie Danglars | Reprodução

As comparações que Dumas faz entre Eugénie e outras mulheres são reveladoras. São elas a poeta Safo de Lesbos e as deusas greco-romanas Diana (Ártemis) e Minerva (Atena).

Diana, uma deusa caçadora, é eternamente virgem e anda acompanhada apenas de mulheres, as Caçadoras de Ártemis. Ela costuma ser representada como uma deusa essencialmente voltada para as mulheres e para a natureza, com marcado desprezo por homens. Minerva também é uma deusa virgem. Ambas são, na atualidade, ícones da comunidade lésbica.

De maneira semelhante, Safo é uma poetisa tão conhecida por seu amor por mulheres que seu nome originou o termo “sáfico” – outra palavra para lésbica, ou algo relativo a lésbicas. Safo é originária da ilha de Lesbos – lugar que originou a palavra “lésbica”.

Eugénie também é comparada a Judite – que é célebre por ter decapitado Holofernes –, Dalila – que cortou os cabelos de Sansão, tirando dele sua força – e às Virgens Vestais e às Amazonas.

O destino de Eugénie Danglars

Nos últimos capítulos do livro, Eugénie acaba envolvida em uma situação particularmente inusitada: ela está prestes a se casar com Andrea Cavalcanti/Benedetto. Ela despreza a ideia de casamento e está decidida a escapar dessa sina. Assim, pega suas joias e seu dinheiro e, durante a festa para a assinatura do contrato de casamento, se tranca em seu quarto com sua melhor amiga, a pianista Louise.

Lá, Eugénie se veste de homem – “com uma presteza que indicava não ser a primeira vez que se disfarçava com roupas de outro sexo, Eugénie calçou suas botinas, enfiou uma calça comprida, deu um laço na gravata, abotoou até o pescoço um colete com colarinho e rematou com um redingote que desenhava sua cintura fina e redonda”.

Ao vê-la vestida de homem, Louise exclama: “Oh, está ótimo! Na verdade, está excelente”. Eugénie começa a cortar o próprio cabelo “sem deixar escapar o menor arrependimento. Ao contrário, seus olhos brilharam, ainda mais petulantes e alegres que de costume, sob aquelas sobrancelhas negras como o ébano”.

— Oh, as lindas madeixas! — lamentou-se Louise.

— Puxa! Não estou cem vezes melhor assim? — exclamou Eugénie, alisando os esparsos cachos de seu penteado agora todo masculino. — Não gostou do resultado?

— Oh, está linda, continua linda! — exclamou Louise

Ela e Louise fogem de casa: deixarão Paris com passaportes falsos, indicando Eugénie como um rapaz, irmão de Louise. Seu objetivo é viver juntas como artistas. Os diálogos entre Eugénie e Louise são quase românticos, e definitivamente constituem um flerte:

— O que está olhando?

— Estou olhando você. É verdade, está adorável desse jeito. Vão achar que está me raptando.

— Ora essa! E terão razão?

— Oh, você não tinha jurado, Eugénie?

Mais tarde, o assunto volta a ser tema de conversa:

— Ah — exclamou Louise respirando —, finalmente saímos de Paris!

— Sim, minha querida, e o rapto está definitivamente consumado — disse Eugénie.

— Sim, mas sem violência — acrescentou Louise.

— Vou considerar isso como circunstância atenuante — respondeu Eugénie.

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Na última vez que o leitor vê Eugénie e Louise, elas são descobertas numa hospedaria fora de Paris, dormindo na mesma cama. É isso que Dumas tem a dizer sobre seu destino:

“Andrea saiu, deixando as duas fugitivas às voltas com os sofrimentos da vergonha e os comentários dos presentes. Uma hora depois, ambas vestindo roupas femininas, elas embarcavam em sua caleche de viagem.

A porta do hotel havia sido fechada a porta do hotel para evitar os curiosos, mas nem por isso elas se viram livres de passar, quando essa porta foi reaberta, no meio de uma dupla fileira de curiosos, de olhos flamejantes e lábios sussurrantes. Eugénie abaixou as cortinas. Contudo, se não via mais, ainda ouvia, e o rumor das zombarias chegava até ela.

— Oh, por que o mundo não é um deserto? — exclamou, jogando-se nos braços da srta. d’Armilly, os olhos destilando aquela raiva que fazia Nero desejar que o mundo romano tivesse apenas uma cabeça, a fim de decepá-la com um só golpe.

No dia seguinte, hospedavam-se no Hotel de Flandres, em Bruxelas.”

Dumas não deixa de lidar com a homofobia – dessa forma, deixando bastante claro que as duas, de fato, estavam juntas como um casal, e que a reação social foi condizente – e com a frustração de Eugénie a esse respeito e, mesmo assim, confirma para o leitor que, no fim de tudo, as duas estavam vivendo juntas em outro país. Seu pai justifica seu sumiço, perante a sociedade, dizendo que ela entrou para um convento após o choque das revelações sobre seu noivo.

Uma personagem para o século XXI

É uma pena que Eugénie Danglars seja tão esquecida. Ela quase nunca figura em nenhuma adaptação de O Conde de Monte Cristo, algo realmente inexplicável, já que na atualidade adaptações dão mil voltas para tentar incluir personagens LGBTQIA+ em material onde eles não figuram. Enquanto isso, uma personagem canonicamente lésbica – e, além disso, interessantíssima e muito divertida – fica de escanteio.

Eugénie, com seu humor seco e sua paixão feroz pela liberdade, tem todo o necessário para ser uma personagem profundamente amada nos anos 2020 – se for redescoberta.

Escrito por:

Estudante de História na Universidade Federal do Amazonas e dona do instagram @behindherglasses_
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