BATMAN – A Piada Mortal: repetindo os mesmos erros do passado

BATMAN – A Piada Mortal: repetindo os mesmos erros do passado

Com a notícia de que fariam uma animação de “A Piada Mortal“, surgiu na internet um texto antigo de Alan Moore comentando seu arrependimento de ter escrito a graphic novel de sessenta e poucas páginas que deu origem ao longa. Nessa entrevista, Moore cita o fato de que super-heróis não possuem profundidade o suficiente para aguentar todo o drama de uma história como aquela. Mas será esse o verdadeiro problema da obra?

Para quem não conhece a HQ original, em “A Piada Mortal” (1988) Alan Moore e Brian Bolland mostram o derradeiro encontro entre Batman e o Coringa. No livro vemos o Palhaço tentar provar que qualquer pessoa pode enlouquecer após um dia ruim e escolhe como cobaia desse experimento cruel o bom e velho Comissário Gordon.

Apesar do ótimo texto de Moore e a arte memorável de Bolland, a história se utiliza de um recurso narrativo fraco que é causar dano a uma mulher que nada tem a ver com a história para atacar o herói em questão. Nesse caso, Bárbara Gordon, filha do comissário Gordon e ex-combatente do crime como Batgirl. Na HQ, o Coringa vai até a casa dos Gordon e alveja Bárbara, causando sua paralisia, tira suas roupas e a fotografa nua em sua agonia. Depois ele expõe o Comissário a esse horror, testando os limites de sua sanidade.

A quadrinista Kelly Sue DeConnick (Bitch Planet) certa vez foi questionada sobre suas técnicas de criação de personagens complexas. Ela respondeu com a seguinte proposta: Se você conseguir trocar a mulher em sua história por uma lâmpada sexy e isso não fizer nenhuma diferença para sua narrativa, você tem um problema.

Se usarmos o teste da lâmpada sexy proposto por DeConnick, podemos identificar o maior dos problemas com “A Piada Mortal”: Bárbara Gordon é apenas a lâmpada sexy e cara do Batman e do Comissário a qual o Coringa ousou quebrar. Nós não vemos o lado de Bárbara, nós mal sentimos o seu sofrimento, sua agonia não tem importância alguma, ela é apenas a coisa querida ao herói que foi estragada para motivar sua agência. 

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Agora vamos falar da animação da WB Animated, que foi lançada em DVD e Blu-Ray na semana passada. Fica claro que Brian Azzarello (100 Balas) estava ciente desse problema na HQ original, e como sua função era estender a história para gerar material suficiente que rendesse 1:20 de filme, ele deve ter pensado que poderia consertar essa cagada dando background mais encorpado para a Batgirl, mas como de boas intenções o inferno está cheio, Azzarello não foi capaz de realizar essa tarefa e ainda conseguiu torná-la pior.

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A partir daqui o texto contém spoilers da animação

Os primeiros 30 minutos de “Batman: A Piada Mortal” têm a função de mostrar a Batgirl combatendo o crime ao lado do morcegão. Aqui vemos uma garota impulsiva que precisa se provar o tempo todo. Os vilões não a respeitam, mandam beijinho e fazem piadinhas sexistas durante toda a abordagem da heroína e, como se isso não bastasse, nem mesmo o Batman parece levar a garota a sério.

A Batgirl do longa não se parece nem um pouco com a detetive que vemos nos quadrinhos, em um momento de particular estupidez, Bárbara é atraída em uma óbvia armadilha pelo primeiro vilão do filme, o mafioso e sociopata Paris Franz, e precisa ser salva pelo Batman que a repreende por ter ignorado ordens prévias para se afastar do caso. Tudo isso, de alguma forma, culmina numa cena de sexo entre o Batman e a Batgirl e nessa hora eu senti que estava assistindo a um acidente entre uma carreta, um monomotor e um ônibus escolar de tão horrível que foi.

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HQ que deu origem ao manifesto “Women in Refrigerator”

Durante todo o prólogo vemos Batman assumir uma postura superprotetora com sua pupila e de repente eles se tornam amantes? Como se isso não fosse terrível o bastante, ainda somos obrigados a ver Bárbara se diminuir esperando uma ligação pós-sexo do Batman, que age de forma bem cretina ao dar um gelo na moça disfarçado de preocupação.

No fim do caso, Batgirl que já está fora da casinha há várias cenas, espanca violentamente Franz e acaba desistindo de seu posto como Batgirl. A partir desse ponto, o filme começa a contar a história que vemos na Graphic Novel, mas com o pequeno detalhe de que agora o Batman vai vingar a agressão a uma amante, o velho argumento da Mulher no Congelador desenvolvido por Gail Simone.

Fim dos Spoilers

 Então, quando Alan Moore diz que super-heróis não possuem profundidade para aguentar tanto drama, talvez ele se refira a pobreza narrativa a qual os quadrinhos do gênero parecem estar presos há 30 anos. Azzarello tinha todas as oportunidades de corrigir os erros de Moore, mas faltou coragem a ele e ao resto da equipe para admitir essas falhas na história original e mudá-las para algo mais condizente com as críticas sociais da atualidade.

Uma boa parcela dessa culpa talvez caiba aos fãs, que não admitem problematizar obras clássicas como essa, consideradas intocáveis. Não tem mais cabimento vermos uma mulher ser brutalizada em prol de um arco narrativo masculino e não é o papinho forçado de garota liberal e violenta que salvaria a Batgirl de seu papel de lâmpada sexy não importa a mídia em que esteja inserida.

O plot ainda seria fraco em um livro ou num filme de época, o problema não está nos super-heróis e sua suposta falta de profundidade, mas sim na naturalização desse tipo de artifício narrativo. Portanto, qual é a necessidade desse filme? Repetir os mesmos erros do passado? 

Mas o longa não é ruim apenas por causa do plot misógino. É preciso também mencionar a parte técnica bem ruim da animação, muito aquém aos últimos lançamentos da DC, como “Liga da Justiça vs Jovens Titãs”, que saiu no começo do ano, ou até mesmo às séries animadas para a TV. Aqui temos muitos quadros estáticos, pouco cenário e traço bem inferior ao da Graphic Novel, um ritmo lento e desconexo que nos dá a impressão de que as duas partes se tratam de dois filmes diferentes. Os vilões do primeiro ato são tão irrelevantes, que eu precisei procurar os nomes deles no Google antes de escrever esse texto, minutos depois do filme acabar. 

Podem marcar no contador, não foi dessa vez que a DC deixou de fazer merda.

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Capa alternativa de Batgirl #41 fazia uma homenagem à Piada Mortal (Nunca publicada)

Escrito por:

46 Textos

Formada em Comunicação Social, mãe de um rebelde de cabelos cor de fogo e cinco gatos. Apaixonou-se por arte sequencial ainda na infância quando colocou as mãos em uma revista do Batman nos anos 90. Gosta de filmes, mas prefere os seriados. Caso encontrasse uma máquina do tempo, voltaria ao passado e ganharia a vida escrevendo histórias de terror para revistas Pulp. Holden Caulfield é o melhor dos seus amigos imaginários.
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