Me Diga Quem Eu Sou: a importância de discutirmos saúde mental

Me Diga Quem Eu Sou: a importância de discutirmos saúde mental

Helena Gayer vive em Pelotas, no Rio Grande do Sul. É funcionária pública na prefeitura. Foi diagnosticada como portadora do transtorno bipolar quando tinha 21 anos. Mesmo antes disso ela confessa já ter tipo alguns episódios de depressão. Chegou a cursar um ano de oceanografia, e nessa época rememora a lembrança de ter vários amigos. Sempre preocupada com as causas sociais e depois de batalhar por um longo tempo em movimentos ativistas pelo Brasil inteiro, formou-se em jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Para contar sua trajetória de dor e superação, Helena escreveu seu primeiro livro, chamado Me diga quem eu sou.

Segundo definição de Dr. Drauzio Varella:

Transtorno afetivo bipolar é um distúrbio psiquiátrico complexo. Sua característica mais marcante é a alternância, às vezes súbita, de episódios de depressão com os de euforia (mania e hipomania) e de períodos assintomáticos entre eles. As crises podem variar de intensidade (leve, moderada e grave), frequência e duração. As flutuações de humor têm reflexos negativos sobre o comportamento e atitudes dos pacientes, e a reação que provocam é sempre desproporcional aos fatos que serviram de gatilho ou, até mesmo, independem deles. Em geral, essa perturbação do humor se manifesta tanto nos homens quanto nas mulheres, entre os 15 e os 25 anos, mas pode afetar também as crianças e pessoas mais velhas.

É esse o distúrbio que acomete a autora e personagem principal  do livro Me diga quem eu sou, Helena Gayer. Essa informação não é um spoiler, aliás é o subtítulo na capa do livro. Mas isso nem de longe nos prepara para o que vamos presenciar na leitura dele.

Todo o universo que a autora nos apresenta é, de início, absurdamente comum: ser jovem, estar numa faculdade, frequentar a praia e até mesmo ter que aprender a conviver com o divórcio dos pais. Mas toda essa semelhança se esvai em segundos em todos os cenários de Helena. Exatamente por causa da bipolaridade, situações corriqueiras e sem gravidade tornam-se armadilhas com horríveis consequências. Já seriam suficientemente ruins as situações de estar em perigo de vida, ser levada pela polícia, violentada. No caso dela, somam-se as internações que ocorriam sempre em casos de ápice da mania, um horror que não é, infelizmente, incomum e desconhecido por nós, ainda que teoricamente.

Me diga quem eu sou

Mas o que deixa tudo muito pior é que Helena está lúcida. O transtorno está a conviver com ela sem a dominar totalmente. Enquanto lemos seu relato vemos, por um lado, a rapidez que talvez tenha a ver com um pouco da desorientação de uma mente imaginativa, que está, parece, andando sempre em seu último sopro, com medo do que possa encontrar na próxima curva; por outro lado, porém, vemos também a mente coerente, inteligente e sagaz de uma jornalista, de uma pessoa adulta.

É interessante que Helena tenha escrito um livro, ela mesma, já que em vários momentos de sua história ela aponta que foi sempre influenciada por alguma obra em específico, quase sempre com algum viés espiritual (desde a Bíblia até o Dalai Lama). Segundo ela mesma “Desde a adolescência eu pensava em interferir no mundo , e a espiritualidade sempre foi uma busca constante em minha vida.”

Me diga quem eu sou
A autora, Helena Gayer. (Reprodução)

Entretanto, ao contrário do que se podia esperar as obras, que a princípio serviriam de inspiração para Helena tocavam em um ponto crítico de sua natureza: o quadro de mania. E era a intensificação desse quadro que  residia a razão de vários problemas que ela enfrentou. Nos seus episódios de mania ela ela realmente acreditava que estava aqui por algum motivo especial, que era de algum modo enviada para grandes e inesperados atos. Um pouco por causa disso, um pouco talvez pelo risco inerente à sua situação de limite, ela esteve a vida toda atrelada às causas sociais. Trabalhou por eles, com eles e para eles no Brasil inteiro. Chegou também a fazer parte de ONGs e Movimentos sociais dos quais não só lembra com carinho, como também recorda ter deixado neles, importantes marcas. Tanto que esteve envolvida em vários deles, sendo inclusive convidada a deles participar. Tais participações, bem como todas as viagens resultantes delas, não deixaram de preocupar sua família.

Porém, outro traço que se acentuava em seus episódios de mania e que a fazia sofrer enormemente por isso, era que ela se sentia indestrutível. E isso a prejudicava de várias e tenebrosas formas. Em meios aos surtos, ela chegava a ficar muitas horas, até dias sem se alimentar. Dormia muito pouco e tinha como rotina fazer caminhadas intensas e longas, não se importando sobre seu destino ou mesmo se reconhecida os lugares por onde passava. Essa confiança de que nada poderia lhe atingir, inclusive, fazia com que ela provocasse e enfrentasse as pessoas, fossem mulheres ou homens, mais fracos ou fortes que ela. Isso, aliado às suas andanças, a colocou em lugares estranhos e com pessoas desconhecidas, deixando-a muitas vezes à mercê de abusos físicos e até sexuais.

Quer seja por ausência de auto comiseração ou quem sabe, um tipo de costume por passar por tantas coisas tão duras, o registro que Helena faz de sua vida até hoje é construído com distanciamento  inquietante. Ela não se perde em lamentações, mesmo nas partes em que é evidente a fragilidade e a fatalidade da situação em que ela se encontra, coisas que justificariam completamente que nos compadecêssemos dela.

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Um dos cenários do livro, localizada entre a barra da Lagoa dos Patos, no balneário do Cassino, e o arroio Chuí, na fronteira com o Uruguai, a isolada Praia do Cassino é considerada a maior praia do mundo, segundo o Guinness Book. De um total de 220 km de praia, 180 km são, totalmente, desertos. fonte: Porto Rio Grande

Ao fim da leitura, depois de temer por ela, chorar e até rir um pouco com Helena, entretanto, algo fica potente e incomodando dentro da cabeça, da alma. Helena lutou o tempo todo contra tudo, contra o próprio distúrbio. Lutou para ser tão sã como os que a cercavam. E ela não se eximiu de nada. É possível que a grande sacada talvez, desse tipo de atitude da autora – se ela existiu, como parece – é a de que quem realmente precisa de pena somos nós. Por que diante de uma pessoa acometida por um distúrbio que a deixa tão fragilizada e incapacitada, nós, que estamos lúcidos e no controle, tomamos a atitude de a abandonar, negligenciar e até de a agredir e machucar. Me diga quem eu sou, Helena pede. Entretanto, ao tentar se definir, é a nós que essa pergunta se dirige, no fim das contas.

É uma leitura mais do que necessária, a todos nós. É  a nossa cabeça que precisa urgentemente se abrir para compreender que se a nossa vida comum já é complexa, que dirá a de quem sofre também com um distúrbio mental. E essa compreensão se faz necessária para muito além de apenas admitir que exista o distúrbio: ela é importante para que entendamos o quão despreparados estamos para conviver, com respeito e dignidade perante o outro e a diferença que ele, inexoravelmente, tem em relação a nós.


Me diga quem eu souMe Diga Quem eu Sou

Autora: Helena Gayer

Editora Objetiva / Companhia das Letras

120 páginas

Onde comprar: Amazon

Este livro foi cedido pela editora para resenha.

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12 Textos

Mulher, feminista, formada em Comunicação, pós em Design e Marketing e sonhando com um Mestrado em Cinema. Pinta, borda, lê e pergunta muito, porque resposta acaba, mas pergunta renasce todo dia. Aprendendo a ser mãe. Gosto de gato, de sol e de vinho frisante.
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