Era uma noite de domingo quando Rosenilda, uma jovem mulher grávida de Cutias do Aguari, no Amapá, teve sua residência invadida por três conhecidos da vizinhança. Em uma tentativa de estupro, Rosenilda, que morava sozinha, perdeu seu bebê após ter a mão esquerda decepada e os dedos da mão direita mutilados com golpes de faca. Em março de 2016, seis meses depois do ocorrido, as bandas paulistas Lâmina e In Venus se reuniram no Centro Cultural Zapata, em São Paulo, para um evento beneficente em prol da situação de Rosenilda – todo o dinheiro arrecadado fora doado para a mulher, que era pobre e estava impossibilitada de trabalhar.
“Foi nesse momento em que entendi o quão válido é usar o meu trabalho para apoiar uma causa”, conta Camila Ribeiro, baterista da In Venus. “Toda produção cultural tem uma responsabilidade social, mesmo que seja feita em nome apenas do entretenimento. É desperdício produzir sem a intenção de passar uma mensagem”, finaliza.
Recentemente, no dia 26 de maio, a In Venus lançou “Ruína” – o primeiro álbum da banda – pelos selos PWR Records (do Recife), Efusiva (do Rio de Janeiro), Hérnia de Discos e Howlin’ Records (ambos de São Paulo). Gravado, mixado e masterizado por Billy Comodoro no Estúdio Aurora, o disco conta com a produção de Lucas Lippaus, que toca guitarra em bandas como Herod e Dolphins On Drugs e fez as linhas de baixo de oito das nove canções – com exceção do primeiro single, “Mother Nature”, que conta com a participação da ex-baixista Priscila Lopes e fora lançado em 2016.
De setembro de 2016 a maio de 2017, as faixas, que já estavam finalizadas desde o início, passaram por um processo de reconfiguração após a vocalista e tecladista Cintia Ferreira, também conhecida por Cint, voltar de uma viagem à Barcelona com um sintetizador em mãos. “No começo não dava muito certo, pois as músicas ainda estavam muito cruas”, conta Cint, “então tivemos que trazer novas referências para acrescentar um novo instrumento à nossa sonoridade”, conclui.
Ouça e faça o download de “Ruína” AQUI.
“Ruína” tem influências que transitam entre punk, pós-punk e shoegaze. As canções – que poderiam facilmente servir de trilha sonora para um filme distópico do Steven Spielberg – foram todas compostas por Cint, que trabalha com gerenciamento de projetos na Envisioning Technology, uma empresa que pesquisa tendências relacionadas à tecnologia e futurismo. Para o lançamento do single “Mother Nature”, as meninas confeccionaram um fanzine com ilustrações feitas pela artista Carol Serrano e textos sobre xamanismo e bruxaria retirados de grupos do Facebook. A diagramação ficou por conta da Camila, que também fez a arte de capa de “Ruína”.
Você pode ler o fanzine “Mother Nature” AQUI.
A In Venus se declara abertamente uma banda feminista e anti-capitalista. Cint é militante, teve os princípios do punk como sua escola e hoje integra o coletivo Chega De Assédio, que luta pelo direito das mulheres de transitarem pelos espaços públicos e tem foco nos transportes coletivos. A grande fonte de inspiração para a vocalista é a indignação perante o egocentrismo e a hipocrisia da sociedade, as injustiças cotidianas. “Eu não consigo escrever sobre outros assuntos”, diz. “Eu não consigo fugir da contestação social, pois é o que eu vivo e penso diariamente”, desabafa.
Formada em 2015, a formação da In Venus ainda conta com Rodrigo Lima na guitarra e com uma nova baixista, Patrícia Saltara, que não participou das gravações e integrou o grupo oficialmente durante o processo de mixagem do álbum. Por conta de um problema na coluna, Patrícia ficou de repouso por alguns meses e nunca viu um show da banda – a primeira em que ela participa como baixista – antes de sua entrada.
A multi-instrumentista é conhecida na cena local por tocar guitarra em bandas como Hidra, Baby Scream e Las Dirces, além de tocar bateria na banda The Dealers. “Eu me lembro de assistir à MTV, ver bandas formadas por homens e achar que, por ser mulher, não poderia ter uma também”, conta Patrícia, ativa no cenário paulista de punk feminista desde o final da década de 90. “Comecei ouvindo bandas de formação completamente masculina como Ramones, mas então conheci L7 e Babes In Toyland e descobri que também posso tocar”, diz.
Além de guitarrista, recentemente baixista e por vezes baterista, Patrícia é também produtora audiovisual e atualmente participa da realização de dois documentários – um deles é o “Faça Você Mesma”, um longa-metragem sobre o riot grrrl brasileiro na perspectiva de mulheres que participaram ativamente do cenário. Entre as bandas envolvidas com o projeto, estão Dominatrix, Mercenárias e Pin Ups. Enfim, só coisa fina. Você pode ajudar na produção do documentário apoiando um financiamento coletivo criado para suprir gastos com alimentação, transporte e hospedagem da equipe AQUI.
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DN – Quais são as influências da banda?
CAMILA – Nós temos gostos muito individuais. Começamos com um som mais cru, com influências de punk, grunge e garage rock, mas depois que a Cint comprou um sintetizador, decidimos acrescentar novas influências à banda para encaixá-lo no nosso som. Todos nós gostamos muito de pós-punk e riot grrrl, eu tenho mais influências de bandas de pós-punk atuais, como Savages e Cold Showers. Gosto muito de funk e soul, mas esses gêneros não me influenciam tanto no meu trabalho como baterista da In Venus. Também adoro Blondie, Joy Division, Yeah Yeah Yeahs e indie dos anos 2000.
PATRÍCIA – Também gosto muito de música dos anos 80, de pós-punk e garage rock, mas o que me influencia mesmo é a produção feminina – adoro descobrir mulheres que tocam, principalmente em bandas de rock, que é o gênero que mais ouço. Ultimamente tenho ouvido muito Chasitity Belt e Canyon Spree, também estou bem viciada em Sunflower Bean.
CINT – Nossas referências são diversas – como disse a Camila, cada um de nós acrescentou peculiaridades próprias à banda. O Rodrigo, por exemplo, tem muita influência do shoegaze. Eu tenho mais influência do riot grrrl dos anos 90, do pós-punk e do próprio punk, pois sempre fui muito ligada a esse movimento aqui em São Paulo. São muitas referências, nenhuma banda nos influenciou completamente, nós mesclamos todas essas coisas e a mistura resultou em nossa sonoridade. Eu só discordo da Camila quando ela fala que nós começamos como uma banda punk, acho que nosso som era mais indie do que punk. Mas depois do sintetizador, nosso som ficou sim bem mais ambiental e menos cru.
DN – Essa transição para a nova sonoridade demorou, foi muito complicada?
CINT – Sim, demorou, foi tudo muito complicado e complexo, principalmente o processo de aceitação em relação a essa mudança. Tivemos que reformular todas as músicas, começamos a reformulação em setembro de 2016 e só concluímos o disco agora, em maio. Por isso o álbum se chama “Ruína”, pois tivemos que destruir nossas músicas e recomeçar tudo do início. Nós tínhamos uma linha, estávamos acostumados com o som que fazíamos, e de repente tínhamos um novo elemento que não se encaixava em nada.
PATRÍCIA – Eu não participei do processo criativo do disco. Quando entrei na In Venus, a banda já estava terminando a mixagem. No entanto, além do talento e das boas influências, acho que a força do grupo vem justamente do ato de parar, dar atenção ao que está sendo feito e reformular tudo. Não é qualquer um que sobrevive a isso – ou o processo resulta no fim da banda, ou resulta em um disco foda.
DN – Desde o lançamento de “Mother Nature”, nota-se que a banda tem uma visibilidade bem interessante. Como está sendo a recepção ao disco?
CAMILA – Está sendo incrível, estamos todos bem satisfeitos. O álbum deu muito, muito trabalho para ser feito – como a Cint falou, nós tivemos que recomeçar tudo do zero. Tivemos uma ajuda crucial do Lippaus, nossa relação com ele é ótima e ele é bem compreensivo. Por enquanto, a repercussão tem sido muito boa, as pessoas entenderam a mensagem que queríamos passar com o disco – tanto em relação às letras, quando em relação à sonoridade. Eu estou muito orgulhosa, eu nunca tinha gravado nada na vida.
CINT – Às vezes eu escuto nosso disco e tenho a impressão de que não fomos nós que gravamos. Eu gostei muito do trabalho que a banda fez, é exatamente o que eu estava querendo fazer desde o começo. Inclusive, minha decisão de acrescentar o sintetizador teve relação com a minha insatisfação com o som que fazíamos inicialmente. Recentemente, tocaram uma música nossa na XRAY.fm, uma rádio de pós-punk e darkwave de Portland, e nós ficamos muito surpresos. Ninguém esperava por repercussão na gringa. Ainda não nos fizeram críticas negativas – o que eu até gostaria que acontecesse, para incentivar meu crescimento como artista.
CAMILA – Eu não, prefiro que continuem falando bem.
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DN – A tracklist de “Ruína” é majoritariamente em inglês, mas contém duas faixas em português. Como vocês escolhem os idiomas das composições?
CINT – É algo bem aleatório. É mais difícil compor em português e fazer a composição se encaixar esteticamente na música, mas no final ficou bom, a gente gostou bastante.
DN – Apesar dos elementos eletrônicos e das melodias bem elaboradas, o som de vocês soa muito orgânico e espontâneo. Como funciona o processo de composição da banda? Vocês demoram para finalizar as canções?
CINT – Nem um pouco. Nosso processo de composição é muito rápido, normalmente nossas músicas surgem organicamente, em dois ou três ensaios. A reconstrução das músicas foi um processo mais demorado por estarmos acostumados com o que já havíamos criado.
CAMILA – Nós sempre compomos em estúdio, criamos nossas músicas a partir de improvisos nos ensaios. Uma vez ou outra, Cint ou Rodrigo mostram criações prontas, ou eu trago novas ideias. Mas nossas decisões finais são sempre feitas em conjunto.
DN – Posso estar errada, mas de alguma maneira, “Ruína” me remete aos filmes de ficção científica, aos dramas e suspenses pós-apocalípticos. Vocês gostam de cinema?
CAMILA – Meu pai me disse exatamente a mesma coisa! Gosto muito de Tarantino e Wes Anderson, também gosto muito da estética do Almodóvar. Adoro dramas e não sou fã de comédias. Acho que o clima de tensão e suspense das faixas de “Ruína” vem das nossas referências oitentistas. Elas poderiam ser trilha sonora do “Alien”! Amo essas ficções científicas de Sessão da Tarde, tipo “E.T.”. A gente podia tentar fazer uma trilha de filme. Por falar nisso, a banda precisa de patrocínio para fazer um videoclipe legal.
PATRÍCIA – Sou fã de ficção científica! Que bom que você fez essa associação. Fico muito feliz, pois eu também fiz. As guitarras do Rodrigo também me lembram alguns filmes de terror. Gosto muito de cinema, trabalho como produtora audiovisual e já fiz direção de arte em alguns curtas-metragens, mas agora trabalho mais com documentários.
Meu diretor preferido é o David Lynch, gosto de todos os filmes dele, apesar de estar bem decepcionada com a nova temporada de “Twin Peaks” – o meu longa preferido é a prequela “Fire Walk With Me”, sobre os últimos dias da Laura Palmer.
Outro que eu adoro é “Donnie Darko”, amo! Adoro filmes de terror dos anos 80, a exemplo de “Nightbreed”, que tem atuação do Cronenberg e foi dirigido por Clive Barker. Amo um filme de vampiro chamado “Near Dark”, dirigido pela Kathryn Bigelow. Busco apoiar produções femininas e assistir obras femininas e feministas, acho que o cinema ainda é bem mais atrasado do que a música em relação à participação feminina.
Gosto muito dos filmes da Miranda July. Amo filme de vingança feminista! “Lady Vingança”, do Park Chan-wook, é muito foda. “Deathproof”, do Tarantino, também é muito bom. Tem o “Miss 45”, que é dos anos 80 e é sobre uma mulher que resolve matar os caras que a violentaram na rua. Adoro!
CINT – Minha principal inspiração profissional é a ficção científica. Tenho muitas referências de filmes e o Rodrigo – por ser meu namorado – sempre assiste comigo, então as trilhas acabam ficando na nossa cabeça. Também gosto muito de séries, “Black Mirror” é uma das minhas preferidas atualmente.
PATRÍCIA – Amei “Black Mirror”. Amo essas loucuras futuristas! Sou fã de “Blade Runner”, assisti bem nova e estou com medo da continuação. Quanto a filmes mais novos, gostei de “Ex Machina”. Recomendo muito “The Fall”, uma série de três temporadas com atuação da Gillian Anderson, que fez “Arquivo X”. Se passa na Irlanda e é sobre um serial killer, discute muitas questões relativas ao machismo. Também curti “3%”, achei bem louca!
CAMILA – Tem “Stranger Things”, que tem uma trilha fodida! É uma série muito boa, faz muitas referências aos anos 80, desde “ET” a “Clube dos Cinco”. Piro muito em trilhas sonoras. A de “Tron”, que foi toda feita pelo Daft Punk, é uma das minhas preferidas.
PATRÍCIA – Velho, a gente tem que fazer uma trilha. Fiquei pirada quando descobri que o Danny Elfmann, do Oingo Boingo, fez várias trilhas para o Tim Burton!
DN – O Brasil está vivendo um contexto sociopolítico bastante decadente. Na opinião de vocês, a decadência mais inspira ou atrapalha a produção cultural?
CINT – O Brasil está uma merda. A decadência me inspira, com certeza. Quando vou compor, penso muito nas instâncias políticas. Produções em contextos sociopolíticos decadentes exigem mais esforço e criatividade.
CAMILA – Pessoalmente, eu acredito que as pessoas se sentem mais inspiradas quando estão na merda. A merda nos deixa sim mais criativos e esforçados, nos sugere inquietações que precisam ser externadas, e então as externamos através da arte. Nos Estados Unidos, a produção cultural atingiu o seu auge nos anos 60 – juntamente com a libertação sexual e a descoberta das drogas, em plena Guerra do Vietnã. A relação entre decadência e efervescência da produção cultural também foi muito perceptível no Brasil, durante a Ditadura Militar.
PATRÍCIA – Com certeza, as maiores manifestações de contracultura surgiram em momentos políticos sombrios. O Brasil está uma merda, mas já foi bem pior.
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DN – O que vocês andam lendo?
CINT – Estou lendo muitos artigos científicos, por conta do meu trabalho. Não é uma leitura muito interessante, é bem técnica.
CAMILA – Estou lendo a biografia do David Bowie. Ele é bem inspirador.
PATRÍCIA – Os últimos livros que li foram as autobiografias da Kim Gordon e da Carrie Brownstein. Gosto muito das literaturas da Simone de Beauvoir, ela tem um livro excelente chamado “Todos Os Homens São Mortais”. Adoro quadrinhos alternativos, como Black Hole e Love and Rockets. As editoras Fantagraphics e Drawn & Quaterly têm quadrinhos muito bons. Eu lia muito antes da internet, trabalhei nas livrarias Saraiva, Cultura e Music Hall – foi uma época em que li muito também por estar cursando Filosofia, que não cheguei a concluir. Resisti ter computador por muito tempo, preferi usar meu dinheiro para comprar uma guitarra e só fui ter acesso à internet em 2010. Quando o computador entrou na minha vida, acabou a leitura, o que é muito triste.