[LIVROS] Chapeuzinho Esfarrapado e outros Contos Feministas do Folclore Mundial (Resenha)

[LIVROS] Chapeuzinho Esfarrapado e outros Contos Feministas do Folclore Mundial (Resenha)

Chapeuzinho Esfarrapado e outros Contos Feministas do Folclore Mundial é uma reunião de vinte e cinco contos advindos do folclore de diversos países. O que o torna especial e importante é que diferentemente do que normalmente estamos acostumados a ver, as figuras poderosas, aventureiras e salvadoras são personagens femininas.

O livro já começa contando, sem delongas, a que veio:

 “As histórias deste livro foram escolhidas por uma característica especial que as diferencia dos outros contos  de fadas. Elas têm meninas e mulheres ativas e corajosas nos papéis principais. As protagonistas são heroínas no sentido verdadeiro e original da palavra – mulheres que se destacam por sua coragem e por suas realizações extraordinárias.”

Chapeuzinho Esfarrapado

Infelizmente até hoje os contos de fadas nos trazem modelos pessoais que pouco ou nada têm a contribuir de fato para a igualdade de gênero. Os contos de fada, entretanto, estão presentes desde muito cedo em nossas vidas. Como bem observa Gayle Forman* no prefácio para Chapeuzinho Esfarrapado:

“Histórias são importantes. Elas estão entre as primeiras coisa que escutamos. (…) Durante a infância, nadamos em histórias. Marinamos nelas. Nós as repetimos, as modificamos, as entrelaçamos com as histórias e as identidades que vamos desenvolvendo. Nós as usamos para explorar aventura, perigo, independência, romance. Pegamos personas emprestadas e testamos personalidades – internalizando personagens e todos os códigos que vêm embutidos neles e que indicam o que significa ser um herói, uma heroína, um homem, uma mulher, ser salvo, salvar, ser valorizado.”

Chapeuzinho Esfarrapado
Detalhe da contra capa do livro com a isca criativa e bem humorada sobre seu conteúdo.

O interesse da organizadora Ethel pela escrita de cunho feminista é de tamanha dedicação, a começar pela introdução do livro. Nem sempre lemos as introduções dos livros com a devida atenção, mas é MUITO INDICADO que você leia essa.  Ethel faz um verdadeiro apanhado histórico de contextualização, explicando as possíveis razões pelas quais hoje tenhamos tantos contos folclóricos que ressaltam homens nas posição de heróis e tão poucas mulheres.

É ao mesmo tempo triste e fantástico ir descobrindo como a mulher não só detinha grande parte do folclore, mantido pela tradição oral, como ao longo do tempo em que escritores homens começaram a registrar essas história, as mulheres que ajudavam nesse processo seguiam igualmente apagadas do registro e da história desse registro. Em uma passagem que ilustra isso, Ethel se refere a Andrew Lang, que teve seus contos traduzidos e adaptados aos jovens pela sua esposa e suas parentas, mas que nem por isso se dignou a escrever os nomes delas nas capas de seus livros.

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Dentre as críticas que as feministas fazem aos contos de fadas, uma é a de que de personagens femininas são descritas nos contos como detentoras de uma beleza sem igual, o que é desencorajador para muitas crianças. É fato que desde a infância já tem início muito da opressão da sociedade para que o indivíduo se enquadre num padrão “aceitável”, e esse padrão já começa pelas histórias e pelos personagens que habitam o universo infantil.

Ethel observa que dentre os estereótipos ficcionais femininos é comum ver, por exemplo, que a mulher mais velha seja mostrada como bruxa, e a mulher jovem como passiva e desamparada. Em Chapeuzinho Esfarrapado ocorre muito mais o contrário, havendo personagens femininas de todas as idades e igualmente admiráveis e capazes.

Outro ponto de crítica feminista aos contos de fada é de que o final feliz tenha que ser feito através de um casamento. Em alguns contos de Chapeuzinho Esfarrapado isso ainda acontece, mas muito porque eles são contos folclóricos originais, de uma época em que o casamento simbolizava estabilidade e até salvação para as pessoas.

O que muda em Chapeuzinho esfarrapado, porém, é que as mulheres têm papel ativo antes disso acontecer, e até pra decidir sobre com quem se casar, por exemplo, coisa que antes era quase nula. E em muitos dos contos, mesmo que se mostrem personagens femininas casadas, elas pouco se ajustam ao papel de mulheres submissas e sem vontades.

Apesar de vir a contemplar e alegrar às pessoas que concordam com o feminismo e com a questão da representatividade a que o movimento dá importância, Chapeuzinho Esfarrapado tem a capacidade inegável de agradar a praticamente qualquer leitor ou leitora. O livro também agrada as crianças, porque traz contos de fada e fábulas, em sua maioria.

A fábula é um produto criativo que contém imensa dose de liberdade e imaginação. Sendo livre e acontecendo sob a estrutura da moral básica em que o bem vence o mal, ela é facilmente aceita pelas crianças. Aos adultos, ela não só funciona como uma lembrança doce da infância de cada um, como também funciona como alívio da realidade.

O adulto pode rememorar a infância, mas também pode exercitar algo que para muitos foi se perdendo – que é a apreciação do lúdico, do imaginativo, do impossível como possível e passível dentro de um contexto ficcional. E os adultos com filhos ou que se relacionam com crianças podem elevar isso a um grau ainda maior, quando decidem, por exemplo, compartilhar a leitura entre si.

Adultos e crianças, juntos, podem não só desfrutar das aventuras cheias de imaginação, como também podem construir novos valores, agora com contos que desmistificam a visão patriarcal do homem salvador e da mulher submissa e passiva, transformando o ser que está em crescimento e o próprio adulto, que pode questionar os valores com que ele próprio cresceu.

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É maravilhoso quando começamos a leitura e reconhecemos o cenário sem limites para a imaginação, em que não só as personagens falam e agem, como também estão envolvidos e são confrontados com o sobrenatural, com o mágico e com a fantasia. Fantasia e mágica que permitem que bichos pensem e falem, que animais sejam muito maiores ou muito menores que os que realmente existem; que pessoas e coisas se transmutem em outras; e que o tempo e o espaço sejam relevantes ou completamente irrelevantes para o que de fato a história tem para contar.

Chapeuzinho Esfarrapado
Ilustração de Bárbara Malagoli para o conto “Em busca do lago mágico”

É impressionantemente novo, divertido e empoderador, motivo de muito orgulho e admiração quando lemos que meninas e mulheres (sobretudo as mais velhas) são protagonistas, ativas e  dotadas de tudo aquilo que a gente leu a vida toda na vestimenta de um homem.

A cada conto é muito interessante e novo ver meninas e mulheres e idosas dotadas de senso crítico,  humor, determinação,  coragem e vontade própria. Somos, a cada conto, confrontadas, inclusive, com nossa expectativa e condicionamento ao ler meios e finais de história em que as mulheres não só não dependem de um homem, como muitas vezes salvam eles de situações de perigo ou necessidade.

É lindo e libertador notar que realmente a representatividade importa como um reconhecimento e registro de existência, como marca da presença e da característica do ser. E muito importante perceber que ter mulheres como protagonistas não desmerece nem enfraquece história alguma. Pelo contrário, nos faz nos reconhecermos, nos empoderarmos e nos faz modificar o modo como olhamos todas as mulheres que nos cercam, estejam elas em qualquer estágio da vida, enxergando nelas um potencial de ação e pensamento igualmente potentes e capazes de serem desafiados, como o são no gênero masculino, sobre o qual a maioria absoluta das histórias se concentraram até hoje.

Sobre a autora

Ethel Johnston Phelps nasceu em 1914, em Nova York. Mestre em Literatura Medieval, publicou diversos artigos sobre temas relacionados ao século XV. Além de Chapeuzinho Esfarrapado, organizou outra antologia de contos feministas, “The Maid of the North” (“Holt, Rinehart and Winston”, 1981). Vale repetir: LEIA A INTRODUÇÃO que ela escreveu para Chapeuzinho Esfarrapado, faz toda diferença.

Sobre a ilustradora

Além de desfrutar os contos, ainda temos como presente nessa edição de Chapeuzinho Esfarrapado as maravilhosas ilustrações de Bárbara Malagoli. Bárbara é uma designer e  ilustradora ítalo-brasileira com trabalhos para grandes marcas como Google, Boticário e outras, além de ter contribuído com suas ilustrações para diversas revistas nacionais e internacionais. Confira o apaixonante portfólio dela.

Chapeuzinho Esfarrapado
Ilustração de Bárbara Malagoli, para o conto “A jovem chefe de família”

*O prefácio é escrito por Gayle Forman, premiada autora americana e jornalista. É mais conhecida pela obra “Se eu ficar”, publicada em mais de 35 países e que também foi adaptada para o cinema.


Chapeuzinho Esfarrapado e outros Contos Feministas do Folclore Mundial

Autora: Ethel Johnston Phelps; Ilustração: Bárbara Malagoli; Tradução: Julia Romeu

Editora Seguinte / Companhia das Letras

248 páginas

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Escrito por:

12 Textos

Mulher, feminista, formada em Comunicação, pós em Design e Marketing e sonhando com um Mestrado em Cinema. Pinta, borda, lê e pergunta muito, porque resposta acaba, mas pergunta renasce todo dia. Aprendendo a ser mãe. Gosto de gato, de sol e de vinho frisante.
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