American Gods: 10 motivos para mergulhar na diversidade da série

American Gods: 10 motivos para mergulhar na diversidade da série

O romance homônimo de Neil Gaiman (autor de Sandman), American Gods, deu origem a uma belíssima adaptação televisiva em oito episódios, produzida por Bryan Fuller (Hannibal), Michael Green (Logan) e David Slade (30 Dias de Noite), disponibilizada nos Estados Unidos pelo canal Starz e, no Brasil, pelo serviço de streaming Amazon Prime Video. Na trama, Shadow Moon (Ricky Whittle) é um ex-presidiário que vê sua liberdade sendo presenteada antecipadamente a troco de um grande – e trágico – preço: sua esposa, Laura Moon (Emily Browning), morre em um terrível acidente de carro, deixando Shadow sem rumo. No caminho de volta para casa, ele conhece o misterioso Mr. Wednesday (Ian McShane), um senhor que parece saber muito sobre a vida do homem em poucos minutos de conversa. O estranho lhe oferece um emprego de motorista e, não tendo nada a perder, Shadow aceita, o que faz com que ele mergulhe em uma viagem sem volta pelo território dos Estados Unidos, repleto de deuses – antigos e novos.

Sendo muito bem recebida pela crítica, American Gods estreou em 30 de abril deste ano e, mesmo causando estranheza em alguns espectadores, conseguiu arrebatar milhões de fãs ao redor do mundo, por ser uma série de narrativa plural e fora dos padrões que vemos por aí: Bryan Fuller, já conhecido pelo seu enorme cuidado ao produzir a série Hannibal, não mediu esforços para torná-la visualmente atraente e socialmente importante.

American Gods aborda questões filosóficas, históricas, feministas e LGBT de forma bastante corajosa e artística, e faz com que, em todos os capítulos, haja discussões pertinentes cercadas pelo delicioso toque fantástico presente nas obras de Gaiman. Da abertura aos créditos finais, a série se mostra impecável e digna de se bater palmas. Abaixo, elencamos 10 motivos para que você comece a assistir a série e passe a venerar a deusa Media:

[SEM SPOILERS]

1) A identidade visual de American Gods

American Gods

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Já na abertura, vemos uma sinopse visual do enredo: figuras mitológicas, como Ganesha (deus hindu da sabedoria) e Medusa (uma das três Górgonas na mitologia grega), se unem à tecnologia da contemporaneidade, com seus robôs, cabos de fibra ótica, pílulas e armas químicas. A canção Immigrant Song, da banda inglesa de rock Led Zeppelin, remixada com sintetizadores e evocada como cântico por Shirley Manson (vocalista da Garbage), embala os frames em que os Novos e Velhos deuses tornam-se apenas um.

Ao longo dos capítulos, é possível observar diversas cenas em que o minimalismo fala mais alto e é usado como recurso de diálogo no roteiro. A ambientação e o figuro dos personagens também transportam a espectadora para além de sua imaginação, a situando na grandiosidade artística da trama. Ponto positivo, também, para as referências feitas a filmes clássicos, como Laranja Mecânica e Easter Parade (Desfile de Páscoa).

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Technical Boy, seus capangas e Media, encarnando Fred Astaire e Judy Garland, de “Easter Parade”.
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Os capangas do Technical Boy revivendo a cena de linchamento de “Laranja Mecânica”.

2) A transição do ser humano comum para um mundo de fantasia 

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Desde o primeiro episódio, Shadow se mostra cético e evita qualquer manifestação sobrenatural que, por mais incoerente que pareça, se debruça aos seus pés como verdade absoluta. Ao passo que vai descobrindo um mundo completamente novo, descobre também muito de si: apático e desesperançoso, ao conhecer Wednesday consegue deixar para trás os problemas de seu “mundo real”, focando, assim, seus pensamentos em uma grande busca por autoconhecimento (fator promovido pela fantasia e o nonsense da série). Shadow é cada um de nós, em maior ou menor escala, esquivando dos problemas cotidianos e buscando amparo no intangível, na magia que percorre as artes que consumimos.

3) Pegando a estrada

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Boa parte dos melhores diálogos da série acontecem durante as viagens de carro de Wednesday e Shadow. As paisagens mostradas são belíssimas e fazem qualquer um ter vontade de pegar o carro e por o pé na estrada, procurando ou não por deuses (e, tudo isso, embalado por uma trilha sonora perfeita).

4) A trilha sonora de Deuses Americanos

De Bob Dylan a Creedence Clearwater Revival, a série conta com diversas músicas sensacionais, que dão voz às andanças dos protagonistas. Destaque para a trilha sonora original, composta por Brian Reitzell em parceria com grandes nomes da música, como Shirley Manson, Debbie Harry (Blondie) e Mark Lanegan:

Todas as composições originais que tocam na primeira temporada foram disponibilizadas no Spotify da série.

5) A representatividade feminina de American Gods

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Cada mulher presente na série traz consigo discussões feministas muito marcantes: Bilquis (Yetide Badaki), uma poderosa rainha da Etiópia, personifica a liberdade sexual e a autossuficiência feminina; Laura Moon (Emily Browning), esposa de Shadow, quebra com o estereótipo de que, para uma mulher ser plenamente feliz, precisa encontrar um casamento: os problemas dela parecem piorar, quando ela decide introduzir Shadow em sua vida. Fora isso, é dona de si e não é apresentada como uma personagem fetichizada. É forte, decidida e exalta a condição da mulher comum, não sendo em momento algum idealizada; Ostara (Kristin Chenoweth), ou Páscoa, deusa da primavera e da fertilidade, mostra claramente o apagamento da ancestralidade feminina ao longo dos séculos, por ter seu culto e seus símbolos adaptados pelo cristianismo e voltados para a adoração a Cristo. 

As demais mulheres, humanas ou deusas, como as Zoryas (Erika Kaar, Cloris Leachman e Martha Kelly), Jack (Beth Grant), Ms. Fadil (Jacqueline Antaramian), Essie McGowan (Emily Browning), Gillian Anderson (Media) e Audrey (Betty Gilpin), mesmo aparecendo brevemente, também possuem em si a importância da retratação feminina sem estereótipos de gênero nas mídias. Algumas delas precisam, em algum ponto da história, se submeter aos homens para conseguirem sobreviver – violências físicas e psicológicas, denunciando a misoginia existente ao redor do mundo.

Nota: a série passa no Teste de Bechdel e, como bônus, duas personagens que passam por um processo de traição dupla, decidem conversar civilizadamente sobre o ocorrido (e, no final da cena, uma ajuda a outra a seguir seu caminho).

6) A visibilidade homoafetiva

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Salim (Omid Abtahi) e Jinn (Mousa Kraish) protagonizaram uma das passagens mais tocantes da série, na qual os dois, um muçulmano e uma criatura da mitologia árabe (um gênio), se conhecem no caos de Nova York e encontram um no outro o carinho, a aceitação e um pedaço da amada terra que deixaram no Oriente ao chegarem no território dos Estados Unidos. Salim desperta sexualmente e se empodera, se libertando das doutrinas e das regras que precisava seguir. 

Bilquis, em breves passagens, também se relaciona com mulheres (mesmo não tomando grandes proporções, como a cena de sexo entre Salim e Jinn, a abordagem é muito válida, ainda mais quando não há fetichização do ato).

7) A diversidade étnica

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Muitos atores e atrizes, cuidadosamente escalados, representam na tela suas próprias origens e escapam invictos do embranquecimento (whitewashing) da obra, tornando-a fiel ao seu propósito de ser culturalmente plural. Destaque para o panteão egípcio, interpretado por Demore Barnes (Mr. Ibis, o deus Toth da sabedoria) e Chris Obi (Jacquel, ou Anúbis, o deus da morte), e também para os maravilhosos Ricky Whittle, Orlando Jones e Yetide Badaki. 

8) Contexto histórico e crítica social

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A vinda dos deuses para o Ocidente está intrinsecamente ligada ao expansionismo europeu, à fuga de dominações diversas e condenações à forca e, também, à escravidão. Nos trechos de “Vinda à América”, nos quais Mr. Ibis narra como determinados deuses foram carregados por seus adoradores até o território norte-americano, há sempre a introdução do período em questão. É em uma dessas cenas que Mr. Nancy (Orlando Jones), o deus africano contador de histórias, aparece pela primeira vez a bordo de um navio, cujos ocupantes são escravos vindos do continente africano e, em um discurso inflamado, fala sobre o racismo que os perseguiria ainda centenas de anos depois. Além disso, críticas veladas ao modo de vida americano, ao patriotismo e ao porte de armas também são brilhantemente abordadas.

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9) O Poder do Mito

American Gods
Technical Boy, um dos Novos Deuses, que personifica a tecnologia.

Para o estudioso norte-americano Joseph Campbell, os mitos vivem nas sociedades atuais disfarçados de rituais tão inerentes aos seres humanos, que mal notamos neles a influência de uma voz ancestral (peguemos as festas de fim de ano como exemplo, que nada mais são do que os fechamentos de ciclos, celebrados em tantas culturas pagãs). “Você é o que você cultua” é uma máxima entoada ao longo da temporada, e diz respeito ao que nós, indivíduos sociais, damos atenção. Enquanto outrora a mitologia existia para explicar o que acontecia de mais anormal na natureza, e também para ligar a humanidade ao divino, hoje em dia as adorações são transferidas para smartphones, televisores e, quase que predominantemente, para a Internet. O ato de “venerar” aparatos tecnológicos, por exemplo, e demandar grande energia nisto, fez com que, na obra de Gaiman, todos os aspectos abstratos da vida contemporânea se personificassem, ganhassem força e ameaçassem os Velhos Deuses: eis que surgem os Novos Deuses, cruéis, poderosos e gananciosos, que, na mente de Wednesday, estão sedentos pela morte de tudo o que para eles é ultrapassado.

Na obra, “ser” e “crer” não se dissociam, podendo esta crença pertencer a alguma vertente religiosa ou a algo físico, que se torna vital. A crença é aborda dicotomicamente: o humano só existe se crê em algo, e o objeto de sua crença, deus ou não, também só existe se tiver atenção (tanto que Wednesday menciona o seu medo frente ao esquecimento, capaz de superar até mesmo o medo da morte).

10) Louvado seja Neil Gaiman!

American Gods

O pai de Sandman tem a mão certeira na hora de abordar diversidades em suas obras, e American Gods não existiria se não fosse por ele. Em cada detalhe das inserções de abordagens antropológicas, vemos que o autor pensou com carinho e se dedicou demasiadamente em pesquisas, para que o resultado fosse satisfatório e, acima de tudo, pudesse fazer diferença na vida das espectadoras – fãs de suas obras ou não. Ao trabalhar psicologicamente seus personagens, confrontando os arquétipos de bem e mal que há em cada um deles, o autor transforma até o mais poderoso dos deuses em uma pessoa com problemas comuns. Os escritos de Gaiman transcendem a ficção e versam não somente sobre a historicidade mundial, mas, principalmente, sobre nós mesmos. 

BÔNUS

Gillian Anderson, a eterna Scully de The X-Files, encarna Media, que, como o próprio nome sugere, é a personificação da mídia e todo o seu poder de influência. A personagem aparece em diversos avatares de pessoas marcantes, incluindo David Bowie e Lucy Ricardo, do seriado I Love Lucy

American Gods

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Apesar de a série começar como uma chama branda, entregando aos poucos os acontecimentos marcantes e sem clímax muito complexos antes do último episódio, American Gods empolga e deixa um eco de espera para as próximas temporadas. Mesmo não seguindo linearmente o que acontece no livro, os produtores utilizaram a expansão e a junção do arco de alguns personagens para aumentar a grandiosidade da obra e torná-la dinâmica.

A segunda temporada tem estreia prevista para 2018 e, segundo Neil Gaiman, poderá ter duração de cinco temporadas. Todos os episódios estão disponíveis na Amazon Prime Video

American Gods
Até ano que vem!

 A Murder of Gods Deuses Americanos

Editora Intrínseca

Ano de publicação: 2011.

574 páginas

Onde comprar: Amazon

 

Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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