[LIVROS] Os Criadores de Coincidências: destino, escolha ou imposição? (Resenha)

[LIVROS] Os Criadores de Coincidências: destino, escolha ou imposição? (Resenha)

Os Criadores de Coincidências apareceu como uma caixa de correios. A prova antecipada da editora Planeta, acompanhada de biscoitos da sorte, surgiu de repente, como se os seres da própria história quisessem que a leitura fosse realizada. Sem expectativas, ela se deu. E, então, a surpresa ao explorar essa história e descobrir um enredo sensível e dominado por reflexões.

A um rápido olhar, Os Criadores de Coincidências, do israelense Yoav Blum (com lançamento marcado para o próximo dia 15/09) parecia repleto de estereótipos e pensamentos clichês. Afinal, não seria o primeiro livro a discutir a casualidade – ou não – do destino, através de um enredo romântico. Um protagonista apaixonado por uma mulher fantástica que deixou no passado; uma personagem que rejeita todos os homens por estar apaixonada há anos por alguém que não a nota; um amigo metido a engraçado. Pareciam elementos de um romance clichê de endeusamento de um fraco protagonista masculino. A reviravolta aos poucos se revela, no entanto.

Os Criadores de Coincidências

Os Criadores de Coincidências

Guy não é qualquer pessoa. Assim como seus amigos Emily e Eric, ele é um criador de coincidências. Sua função é mudar o destino das pessoas para que elas alcancem a máxima felicidade. Não é uma tarefa fácil. Exige um estudo de todas as possibilidades, probabilidades e fatores internos e externos. Um atraso no ônibus. Um xícara que cai. Essas circunstâncias podem ser responsáveis por um casal que se unirá, por um poeta que se desenvolverá, ou até mesmo pela morte de alguém.

E tudo parecia estar bem na sua vida típica. Criador de coincidências do nível 2 – nada de grande impacto no mundo, a não ser que fizesse parte dos planos de um criador mais avançado -, recebia as missões em misteriosos envelopes, desenhava os planos na parede, fazia acontecerem, pintava a parede azul. Até que chega uma missão indecifrável para ele. E tudo parece sair do eixo.

O início de Os Criadores de Coincidências parece perdido. Alguns capítulos parecem sem conexão – inclusive um sobre um assassino profissional, que leva a leitora a pensar que trata-se de um romance policial. Não é possível entender, desde logo, qual a intenção da história. A estratégia do autor, porém, faz parte da magia da narrativa.

A cada capítulo, ainda que a narrativa pareça incoerente, existe a certeza de que há algo mais por vir, talvez em função da forma como o texto é escrito – repleto de questionamentos sutis sobre as escolhas humanas. A incompreensão, assim, é logo substituída pela curiosidade de compreender como os pequenos detalhes farão diferença no destino de personagens que brincam com o destino.

Por meio de personagens fantásticos – criadores de coincidências, iniciadores (que dão vida às pessoas), amigos imaginários – a história desconstrói a ideia de livre arbítrio. O que determina uma escolha? O ser humano é de fato livre para escolher? E o quanto das escolhas não é, na verdade, uma recusa em escolher?

De um lado, há um assassino profissional, em tese, capaz de escolher sobre a vida e a morte mesmo não sendo dotado de poderes especiais; e de outro, três seres que decidem pela vida dos outros, mas parecem presos a certezas e incapazes de decidir seus próprios destinos mesmo diante da infelicidade. 

E junto a essa reflexão, vem a reflexão sobre as expectativas. O ser humano vive em sociedade, divide sua capacidade de escolha com a capacidade de escolha de outros indivíduos. Imagina realidades, da mesma forma que crianças criam amigos imaginários. E faz escolhas com base nas expectativas de uma realidade que pode ser diversa.

A representação feminina

Sobretudo, a partir da personagem Cassandra, a mulher por quem Guy fora apaixonado, Yoav Blum discute a capacidade humana de ignorar todos os elementos à frente por ser ater a uma imagem inexistente. Coloca em foco uma vida cujas decisões são determinadas pelas expectativas (individuais e sociais) e o quanto isto pode machucar alguém.

Cassandra, durante parte da narrativa, parece ser apenas uma memória distante, um acessório na trajetória de Guy, como em tantas histórias. Ao final, contudo, todas as suas falas se unem em uma complexa reflexão. E ela acaba por se tornar a melhor personagem da história, com uma narrativa que sensibiliza. Ela é profunda, ainda que apareça menos. Ela tem a ânsia de ser alguém além da imaginação do outro, de poder decidir conforme sua vontade e não conforme as expectativas alheias, que teimam em defini-la.

Como toda mulher, Cassandra é vista como um espectro da vontade masculina. Ela é um retrato do que se espera dela, e tantas modificações a levam a questionar sua própria essência. Tantos homens, principalmente, a viram como uma boneca para satisfazer seus caprichos. E ela se moldava aos anseios deles, porque esta era a sua função. Quem é ela, como mulher, como pessoa?

“Mudanças? Apoio? Apenas seja linda e nos deixe imaginar você como quisermos. Mas ninguém queria me imaginar como realmente sou, e eu não entendia o motivo disso. Será que eu não era o bastante?
Quando você é imaginada dessa maneira, compreende que o mundo funciona de um modo diferente. Ele funciona sob o sistema ‘eu preciso ter sempre mais’ e não sob o sistema ‘isso é exatamente o que eu preciso’. O que eu tinha a oferecer ninguém queria.”

Quando conhece Guy, tudo parece ser diferente. Guy parece enxergar o que é próprio dela, independentemente dos desejos imaginários. Mas, no fim, talvez tudo seja semelhante, ainda que as máscaras sejam outras. Talvez Guy crie contornos para ela da mesma forma que os outros. Talvez ele esteja apaixonado pela ideia de uma Cassandra que não é ela. Talvez ele nem mesmo seja capaz de enxergá-la ao seu lado.

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Guy, diferentemente do que se imaginava no começo, está longe de ser retratado como um protagonista a quem todos deveriam amar. Ele erra com Cassandra e com Emily, e se mostra como verdadeiro causador de seu martírio, o que é apontado pelo autor. E a construção de sua relação com as duas personagens é o que enriquece a trama.

A conclusão é bem construída. Todos os pequenos detalhes são conectados nesta grande reflexão, em que nem tudo é o que parece ser. Alguns pontos, como a conexão entre Emily e Cassandra – que, para o mérito da história, não são rivalizadas como se poderia esperar no início – e a participação de Eric, acabam sendo presumidos. Outros, porém, são surpreendentes, mas de forma coerente.

O término deixa a sensação de que o livro é mais do que aparenta. Os Criadores de Coincidências é sensível, embora curto. Aborda a ideia do destino de forma muito sutil, mas ainda mais impactante do que palavras diretas. E reverbera, de modo a incutir o pensamento de que é preciso lê-lo novamente para compreender ainda mais de sua complexidade, através da simplicidade narrativa, e absorver suas reflexões.


Os Criadores de CoincidênciasOs Criadores de Coincidências

Autor: Yoav Blum

Editora: Planeta

A prova antecipada foi cedida pela editora para resenha

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136 Textos

Mestra em Teoria e História do Direito e redatora de conteúdo jurídico. Escritora de gaveta. Feminista. Sarcástica por natureza. Crítica por educação. Amante de livros, filmes, séries e tudo o que possa ser convertido em uma grande análise e reflexão.
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