“Detenham aquela mulher!”: controle e misoginia nos filmes dos X-Men

“Detenham aquela mulher!”: controle e misoginia nos filmes dos X-Men

Os X-Men, criados nos anos 60, em meio ao despertar do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos e da segunda onda feminista, foi um dos quadrinhos mais inclusivos daquela época. Contando com uma grande quantidade de personagens, havia mulheres, negros, indígenas, asiáticos, e diversas outras etnias representados nas histórias dos mutantes que lutavam para ter seus direitos reconhecidos numa sociedade excludente e opressora.

Apesar disso, as adaptações cinematográficas decidiram focar nos personagens homens e brancos, e tornaram protagonistas apenas Wolverine, Charles Xavier e Magneto. As mulheres e os outros personagens bem mais diversos tiveram que se contentar com o segundo plano, com vários dos filmes sequer passando no Teste de Bechdel, e alguns até trazendo passagens racistas, como o tratamento que o personagem Darwin recebe em X-Men Primeira Classe, e a trupe do mal de Magneto, que é sempre composta por mutantes racialmente diversos, enquanto a trupe “boa” de Xavier é composta por uma maioria de mutantes brancos.

Examinemos então como se deu a representação feminina nas duas trilogias cinematográficas (excluindo os spin-offs de Wolverine e Deadpool). 

ATENÇÃO: este texto contém alguns pequenos SPOILERS

Na primeira trilogia, Tempestade e Jean Grey são as mulheres com maior autoridade e importância na escola de Xavier para jovens mutantes. Vampira e Kitty Pryde também ganham algum espaço, e Mística aparece como a ajudante de Magneto, roubando as cenas com sua destreza na espionagem, combate físico, e operação de sistemas eletrônicos.

X-Men

É uma pena que nenhuma dessas mulheres troque quase uma palavra sequer com a outra. Há uma cena no X-Men 2 em que Jean e Tempestade vão resgatar o mutante Noturno, mas mesmo assim, incrivelmente, elas trocam poucas palavras entre si.

No geral, as mulheres são representadas como tão capazes de se defender e lutar quanto os homens. A diferença é que, além de não ocuparem o protagonismo em nenhum dos filmes, elas são mostradas como não sendo capazes de lidar com poder demais, o que é uma narrativa bastante nociva sobre mulheres.

Claro que há alguns modelos positivos, como Tempestade, que se torna a figura de liderança na escola quando Xavier não pode assumir esse papel. Jean Grey, nos dois primeiros filmes, é apresentada como uma doutora responsável e ética, apesar de virar alvo do assédio descarado de Wolverine. (No final do segundo filme ele se dirige a Scott como se fosse um par romântico de Jean tanto quanto Scott era. O que é patético, pois ela nunca correspondeu realmente às investidas dele nos filmes. É como se, para que ela se tornasse seu par romântico, bastasse apenas ele querer, e os filmes corroboram essa visão.)

Há algumas coadjuvantes mulheres que trabalham para os vilões e são representadas como tão ou mais fortes que os homens. Yuriko e Mística são capazes de lutar em par de igualdade com Wolverine. Porém, Mística é a personificação da femme fatale: sensual e deceptiva, andando sempre com um rebolado, seduzindo os alvos de espionagem, e sempre nua, com a desculpa de que “tudo bem” porque seu corpo é azul.

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Uma cena do X-Men 2 enfatiza o quanto Mística é inteligente e hábil. Wolverine se candidata a invadir a base secreta do vilão, mas Magneto diz que ele não tem qualificação suficiente para operar os sistemas que controlam a base. “O que você vai fazer? Arranhar tudo com suas garras?”. Wolverine responde: “Eu vou arriscar”, provavelmente pensando em resolver tudo na força bruta, como os filmes o mostram constantemente fazendo. Magneto insiste que Mística vá, para não por em risco toda a missão. E, após o sucesso dela, Wolverine reconhece: “Ela é boa.” Ao que Magneto responde “Você não imagina o quanto.”

É uma pena, portanto, que essas mulheres tão competentes nunca ocupem a posição de protagonismo nos filmes. Os cineastas nos dão apenas algumas migalhas, colocando mulheres como superiores em várias habilidades, mas sem desenvolvê-las realmente como personagens principais. O holofote pertence invariavelmente aos homens menos competentes e seus problemas, e isso não acontece só aqui, mas em inúmeros filmes de Hollywood.

Quando Mística é atingida pela cura, no meio do terceiro filme, Magneto imediatamente a descarta. Na próxima cena, ela delata todos os planos de Magneto para as autoridades como vingança, com o comentário de um homem que diz “nunca duvidem da ira de uma mulher rejeitada”. É a última aparição dela no filme.

Quando os diretores Mathew Vaughn e Bryan Singer tentam dar mais importância e espaço a Mística na segunda trilogia, a colocam em  um relacionamento com Xavier e Magneto, buscando sua identidade a partir da afinidade com as ideias de um dos dois. Esses diretores realmente não sabem como desenvolver uma personagem feminina que não tenha nada a ver com algum homem.

Kitty Pryde, da mesma forma, é introduzida no terceiro filme para formar um triângulo romântico entre Vampira e seu namorado Bobby Drake. Felizmente, Vampira nunca a encara como rival, mas toma a ameaça de perder seu namorado como uma falha de si mesma, por não poder tocá-lo por conta de sua mutação que suga a energia dos outros.

Um vídeo dos Honest Trailers sabiamente notou que ela mantém esse aspecto nocivo de sua mutação nos filmes, mas não tem a capacidade de voar ou de super-força, como nos quadrinhos. Sendo assim, Vampira vê na cura uma chance de finalmente poder ter um relacionamento normal com as pessoas. A mutação dela, tão poderosa, é mostrada como sendo uma maldição. Afinal, pensam os produtores dos filmes: “que bom uso uma mulher faria com poder tão grande?”

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No primeiro filme, esse aspecto da mutação ser uma maldição encontra paralelo com a história de Wolverine, também ostracizado pela sociedade e considerado uma aberração por causar mal aos outros com o poder advindo de sua mutação.

Os quadrinhos exploram bastante o desajuste de Wolverine por seu comportamento bestial, por vezes incontrolável e deveras nocivo a ele próprio e aos outros. Nos filmes, porém, Wolverine perde poucas vezes o controle de si, e sua rebeldia não vai muito além de uma pinta de “bad boy“. Ele não chega a sequer ser considerado um anti-herói nos filmes. Vários de seus atos não tem consequências, como no primeiro filme, quando ele ataca Vampira com suas garras enquanto tinha um pesadelo.

Em vez de repreender Wolverine, todos encaram o ocorrido como um mero acidente, fruto do acaso (mas que acaso perigoso, hein). Vampira só não morreu porque tocou Wolverine e conseguiu absorver sua mutação de cicatrização rápida, cujo efeito colateral foi fazer ele entrar em coma. Vampira é que sai se sentindo mal pelo ocorrido, quando tudo o que fez foi para garantir sua sobrevivência.

Quando acorda, Wolverine diz a Xavier “O que ela fez comigo? Senti como se ela tivesse me matado”, ao que Xavier explica “Se ela tivesse segurado por mais tempo, poderia”. Só que quem é que atacou quem primeiro aqui?

O fato de Wolverine ter enfiado as garras em Vampira é completamente esquecido. Toda essa cena serve para poupar Wolverine de qualquer discussão que seria muito necessária sobre seu comportamento agressivo e as respectivas consequências, e para mostrar o quanto é perigoso Vampira possuir um poder que é grande demais para ela lidar. 

Esse padrão se repete novamente no terceiro filme, quando Jean Grey retorna do acidente na barragem do lago com sua personalidade obscura despertada, a Fênix Negra. Quando era jovem, Jean teve a ajuda de Charles Xavier para domar seus poderes e adormecer essa personalidade, já que a Fênix era uma entidade muito poderosa, e, claro, segundo os homens, mulher e poder não se dão bem juntos.

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Agora que foi despertada, a Fênix não se deixará domar novamente (apesar de que o filme acaba fazendo Jean Grey apenas se juntar a Magneto e esperar quietinha até o ato final, subaproveitando totalmente a personagem).

Tudo então gira em torno de Wolverine ir atrás de Jean e tentar impedi-la de exterminar o mundo inteiro. E ele acaba conseguindo, com o que chamamos de mercy killing, quando a própria personagem pede para morrer, para poder se livrar do mal que a domina. Wolverine, olhem que bonzinho, atende aos pedidos dela, a assassinando com suas garras, e se debulhando de chorar logo em seguida, já que era apaixonado por ela.

Engraçado que o filme não dá a Jean nenhuma autonomia para se tornar uma vilã de verdade. Ela passa do domínio de Xavier, para o de Magneto, e depois para o de Wolverine, sem nem sequer causar mal ao mundo por determinação própria. É muito diferente de como Magneto ou o coronel William Striker são tratados enquanto vilões.

Eles são os vilões dos filmes porque possuem controle do que fazem, tem um objetivo e um plano a cumprir. As mulheres dos filmes dos X-Men causam mal involuntariamente, por sua inabilidade em lidar com o poder que possuem.

Em X-Men – Dias de Um Futuro Esquecido, a mesma coisa acontece com Mística. Buscando justiça, sua tentativa de libertar os mutantes de experimentos militares cruéis acaba levando os mesmos militares a capturá-la e usar seu DNA para criar os Sentinelas, máquinas usadas para perseguir os mutantes, e que em breve acabam por exterminar toda a humanidade. Neste futuro apocalíptico, os X-Men tem que voltar no tempo e impedir que Mística conclua seus planos.

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Muito se falou sobre o quão nocivo era roubar o protagonismo de Kitty Pryde, que era quem voltava no tempo na história original dos quadrinhos, para colocar novamente Wolverine como protagonista. Mas o pior deste filme é que Mística é perseguida por Wolverine, Xavier e Magneto durante a projeção inteira, cada um tentando detê-la à sua maneira. Mais uma vez, uma mulher deve ser controlada, para impedir que ela destrua o mundo com seus atos irresponsáveis.

No fim, somos levadas a crer que Xavier deixa Mística livre para tomar suas próprias decisões. Mas o filme só a permite fazer uma “escolha” porque o roteiro foi escrito para ela escolher o lado de Xavier. Fazendo o que ele a disse para fazer, temos a falsa noção de que Mística escolheu por si própria o lado “certo”, mas na realidade ela apenas acabou fazendo o que Xavier queria. Se ela tomasse outra decisão, o filme ainda continuaria respeitando a escolha dela?

Por exemplo, o filme a deixaria concluir seus planos de matar Trask, o responsável pela criação dos Sentinelas, e ainda assim sair livre sem ser capturada pelos militares, mostrando que ela estava certa, e Xavier errado?

Além do mais, é impressionante que o filme (e os quadrinhos) coloquem a responsabilidade do apocalipse em Mística, e não no próprio Trask, que foi quem inventou os Sentinelas, afinal de contas. Os criadores poderiam ter inventado mil motivos que levariam a esse apocalipse, por que será que escolheram logo um que envolvia uma mulher que falha ao tentar bancar a heroína? Wolverine, em seus filmes solo, assassina um milhão de bandidos genéricos, e também os vilões do filme, e nunca desencadeou nenhum tipo de apocalipse, como os que Jean e Mística despertaram. Essas coisas não são coincidência.

Existe uma outra questão bastante importante de ser observada: a falta de consentimento quando Xavier lida com mulheres. Ele manipula Jean Grey “para o bem dela”, pretensamente ajudando-a a controlar seus poderes e adormecendo sua personalidade “perigosa” sem o seu consentimento. Wolverine até o questiona sobre isso, mas essa discussão não é levada mais a fundo, e Xavier continua fazendo as mesmas coisas na segunda trilogia, como quando entra na mente de Mística para tentar controlá-la sem o consentimento dela.

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Em X-Men Primeira Classe*X-Men Apocalipse, Xavier manipula a memória da agente Moira MacTaggert, primeiro para que ela esqueça dos acontecimentos dos mísseis de Cuba e não os reporte à CIA, e depois para que lembre deles, quando é conveniente para Xavier. Tudo isso com o pretexto de que está fazendo o que “é melhor” para essas mulheres, como se elas fossem incapazes de decidir por conta própria o que é melhor para si mesmas.

Além disso, em X-Men Apocalipse, Moira vai investigar um culto e acidentalmente deixa aberta a porta da tumba do tal Apocalipse, fazendo com que o sol entre e ative o despertar do mutante super poderoso, que se torna o vilão do filme.  É impressionante o quanto os mitos de Pandora, Eva, e todas as mulheres originadoras do mal em sociedades antigas se mantiveram e são reproduzidos com essa mesma estrutura nas histórias contadas hoje.

Claro que mostrar mulheres como vilãs não é a melhor das representações. Mas mostrar mulheres como incapazes e imprudentes é tão ou mais nocivo. Como vilãs, as mulheres ao menos seriam retratadas como detentoras de algum poder, nem que fosse momentâneo. Magneto, Striker, Apocalipse, Sebastian Shaw, são todos vilões poderosos, e que, principalmente, tem o controle sobre o que estão fazendo. Eles não fazem as coisas por acidente. É tudo premeditado, planejado. Mas as mulheres dos filmes dos X-Men jamais são as vilãs, tampouco as protagonistas.

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E Wolverine, o personagem que faz muitas burradas acidentalmente, deveria ser responsabilizado pelas consequências delas nos filmes, mas não é. Além de, claro, os milhares de assassinatos de capangas genéricos que ele comete não terem nenhuma consequência para ele nem para o mundo, as suas ações impetuosas acabam dando certo, como quando ele desobedece a todos na escola e resolve fazer as coisas do seu jeito.

Com isso, os filmes acabam mostrando que ele tem aval para fazer o que quiser, já que sempre obtém sucesso, enquanto que com mulheres é muito diferente, pois elas sim acabam gerando consequências prejudiciais ao mundo. A mensagem que fica é que elas precisam ser detidas, controladas, curadas, ter suas memórias apagadas, ou até mesmo ser mortas para impedir que continuem a causar esse mal. E é exatamente isso que os homens dos filmes fazem com elas. 

*O X-Men Primeira Classe é digno de nota. Tem tanta misoginia nesse filme que foi necessário um outro texto para discuti-la mais a fundo: X-Men Primeira Classe – O filme mais misógino da franquia.

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Cineasta, musicista e apaixonada por astronomia. Formada em Audiovisual, faz de tudo um pouco no cinema, mas sua paixão é direção de atores.
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