Mulher de Barro: a cegueira decorrente do sistema

Mulher de Barro: a cegueira decorrente do sistema

É curioso ler o novo romance de Joyce Carol Oates, Mulher de Barro. Infelizmente, tal sentimento vem não de surpresas quanto ao enredo, mas pela triste repetição daquilo que nos deparamos diversas vezes no mundo real: a cegueira que algumas – para não dizermos a maioria – mulheres estão à mercê em razão de um sistema que trabalha insistentemente para controlá-las.

Primeiro, sobre a escrita: a forma que Oates trata o enredo do livro é uma forma que, positivamente, poderíamos chamar de dinâmica e, negativamente, de confusa. A história de M.R. Neukirchen não é contada de uma forma linear, mas sim com fusão de tempos e épocas em meio ao emaranhado mental da protagonista, isto, porém, faz parte e é justamente o objetivo da autora.

Mulher de Barro | Resenha: a cegueira decorrente do sistema

M.R. Neukirchen já é apresentada como alguém intensa, em razão não apenas de seu passado extremamente traumático, mas também de todas as experiencias que se seguiram em sua vida. Os pulos e voltas e costuras temporais feitos pela autora servem para nos inserir na história e na mente da protagonista, de forma que, por vezes, não sabemos dizer se algo realmente aconteceu ou se é uma imaginação da personagem.

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É exatamente nesses traumas e vivências que está inclusive a raiz das concepções da protagonista em relação a condição social do ser mulher. Com a experiencia traumática de seu passado, M.R. Neukirchen se tornou uma pessoa com tanto medo de, ao mesmo tempo, ser atacada e decepcionar, que durante toda a sua vida adulta agiu de forma a não criar grandes conflitos.

“Sempre afirmavam isso sobre ela, ela era forte, e ela era competente.”

Seja em relacionamentos profissionais ou amorosos, a atuação de Neukirchen é extremamente calculada e neutra, toda a sua carreira foi construída em cima disso. Mesmo assim, ela não parece perceber que o fato de pensar ser necessário agir da forma que age para ter sucesso é uma consequência do sistema patriarcal em que está inserida.

É aqui, nessa contradição da protagonista, que o livro fica interessante. Por um lado, M. R. Neukirchen sabe, e reconhece, que precisa agir de uma certa forma para obter sucesso em sua empreitada. Ela também sabe, como vemos pelas suas divagações constantes, que precisa agir dessa forma por ser mulher, que os poderosos da universidade em que trabalha – homens brancos de famílias de elite – têm uma concepção do que é ser mulher, a qual ela observa para imitar em razão de querer manter sua posição. Sobre aborto, em uma conversa com um colega homem da Universidade:

“(…) se você encara isso como um ideal, é difícil você ser a favor da escolha porque você iria querer, no seu próprio caso, ter nascido – e não ter sido abortada. Concorda?’

‘Mas eu não encaro como um ideal – só como uma proposição filosófica.’

‘Você já engravidou, Meredith?’

‘N-não.’

‘Não? Bom. Então você não tem capacidade de avaliar. Vai ver por isso que  está tão indecisa.’.”

Ainda assim, a protagonista afirma com todas as letras que não sofre e nunca sofreu por ser mulher. Que não vivencia ou vivenciou opressões relativas ao seu gênero, mesmo quando tais opressões se traduzem em casos de assédio profissional e sexual em relação a mesma.

M.R. Neukirchen está, na verdade, em um estado tamanho de refém do sistema patriarcal que não apenas ignora a real razão de precisar agir (externamente) da maneira que age, mas também se culpa por toda e qualquer coisa que ocorre contra ela, mesmo quando tal situação aconteceu enquanto ainda era uma criança e, portanto, incapaz de decidir seu próprio destino quando em face de um adulto.

Isso gera uma vulnerabilidade à personagem difícil de ser lida, pois há um inegável reconhecimento de nossas próprias situações na história da mesma, de forma que ao mesmo tempo em que ficamos com uma certa raiva pela inércia da protagonista, nos perguntamos como agiríamos se estivéssemos em seu lugar ou, até, sem nem mesmo percebermos, não agimos da mesma forma.

Tal vulnerabilidade e inércia, porém, vão se modificando ao longo do livro – e dos flashbacks da protagonista – de forma que ao nos aproximarmos do fim, acreditamos estar perto tanto da redenção de M.R. Neukirchen, quanto da nossa.

“Uma pessoa não é amada por ser forte e competente se ela for mulher, mas caso seja mulher e seja forte e competente, ela traça seu caminho sem amor.

Esse reconhecimento da luta feminina, entretanto, não exclui o fato de um dos dois únicos personagens negros do livro, que inclusive tem 499 páginas, ser um homem que é representado entre um ladrão e um estuprador, sendo a caracterização do outro claramente feita de forma a representá-lo de forma (no mínimo) superficial.

Claro que a condição intrínseca de homem do dito personagem o torna, assim como os demais, um opressor, no sentido do gênero sobre a personagem, mas a sua representação pela autora com um dos estereótipos mais recorrentes da raça não pode ser deixada de lado com uma representação racista e, ousamos dizer, típica de um tipo de feminismo elitista e não inclusivo.

Há, porém, críticas contundentes no livro quanto à religião, o absurdo que foi a guerra ao Iraque no pós 11 de setembro – época em que a história se passa – bem como críticas a falta de representação de grupos minoritários, como mulheres e negros, no corpo discente e docente da Universidade. Tais críticas da protagonista e da autora se confundem com a falta das mesmas representações no próprio livro, sendo mais uma das contradições presentes na narrativa.

Joyce Carol Oates
Joyce Carol Oates. Foto: Reprodução.
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Em suma, o livro retrata o pior da condição feminina, isto é, aquele pedaço da construção do sistema que trabalha para as mulheres (mesmo que não uma com as outras) serem suas próprias inimigas, agindo inconscientemente de acordo com o desejado para elas e se responsabilizando pelas ações de seus colegas masculinos.

Ainda assim, o fim, embora não típico nem tampouco claramente feliz, nos dá uma esperança quanto a personagem e quanto a condição de aliada inerte que algumas mulheres de nossa sociedade ocupam, de as mesmas pegarem as rédeas de suas vidas e agirem livremente, sem medo das possíveis consequências que essa “revolta” pode gerar.

“Não era algo pessoal, que um homem abominasse uma mulher.”

Claro que esse desejo ainda está um pouco longe, afinal a força do sistema é extrema e seus métodos de coerção e controle são extremos e diversos, porém, em uma época banhada por retrocessos, livros como Mulher de Barro, que mostra o mal – físico e psicológico – que tal condição faz à uma mulher nos servem de alerta tanto para a nossa própria atuação quanto para a atuação dos outros, sejam eles homens ou mulheres.

Enquanto isso, o romance psicológico de Oates faz seu papel de wake up call entre nós, mulheres, de uma forma sutil o bastante para nos atingir com um profundo reconhecimento de nós mesmas e nos fazer temer caso não aconteçam mudanças, mesmo que pequenas e internas, como as da própria protagonista.


Mulher de Barro

Mulher de Barro

Autora: Joyce Carol Oates

504 páginas

Editora Alfaguara

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