Aquela musiquinha fica na cabeça: Batman! A série de TV do homem morcego (William Dozer e Lorenzo Semple Jr., 1966-1968) é hoje considerada um clássico. E olha que a produção deixa muito a desejar: os efeitos são ridículos, as ações irreais, os personagens de fazer rir e os roteiros de matar de vergonha. Batman bebe do conceito acadêmico chamado camp, o que simplificando poderia ser: é tão ruim, mas, tão ruim que é bom.
A escritora e pensadora americana Susan Sontag diria que o exagero e a superficialidade seriam feitos de propósito justamente pra dar um maior efeito cômico. Quem nasceu nas últimas duas décadas e vê a série por qualquer motivo que seja não acredita em seus próprios olhos. Não importa. A série ainda é cultuada pelos mesmos motivos que deveria ser rejeitada. Santa confusão, Batman!
Muita coisa mudou dos anos sessenta até hoje, especialmente na representação do herói de Gotham City. O diretor Tim Burton deixou sua marca na batcinematografia criando um homem morcego contrário ao da série de televisão, em Batman (1989) e em Batman: o Retorno (1992). Tudo que era leve ficou carregado e tenso.
Depois, veio Joel Schumacher que tentou fazer uma homenagem à série sessentona, criando personagens cômicos e artificiais do que já era bastante artificial, com dois filmes: Batman Forever (1995) e o fracasso de bilheteria Batman & Robin (1997). O último a encarar o homem morcego é Christopher Nolan, com a trilogia Cavaleiro das Trevas: Batman Begins (2005), Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) e Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012). Nolan nem pensa em dialogar com a série e ignora por completo a vocação cômica que o personagem poderia ter. Batman é escuro, pesado, violento.
Tantas representações diferentes, tantas possibilidades, tanta diversidade explorada no personagem. Mas, um “detalhe” nunca foi diferente desde a série de TV até os dias atuais: a representação das mulheres que rodeiam o mais rico e poderoso homem de Gothan City. Elas nunca deixaram de ser sensuais, usar roupas ousadas e depender dos outros homens da trama.
Como podemos notar nos links dos sete filmes citados, apenas dois passam no teste de Bechdel-Wallace (ter duas mulheres com nomes nos filmes, que conversem entre elas sobre algo que não seja homens), assim mesmo, há controvérsias. Tudo isso significa, pelo menos, que o universo de Batman é essencialmente masculino. As mulheres são praticamente um acessório, algo que poderia ser substituído por qualquer gadget do cinto de utilidade do homem morcego. O pior é que essa masculinização do super herói também se reproduz nos quadrinhos.
A representação da Batgirl na animação A Piada Mortal (Sam Liu e Bruce Timm, 2016), baseada na novela gráfica do escritor Alan Moore, é um desastre cruel. Mas, vamos voltar um pouco no tempo. A Mulher Gato (Michelle Pfeiffer) de Batman Returns, por exemplo, é bastante parecida à Mulher Gato do seriado da década de 60, interpretada por Julie Newmar. Tem um ar camp que só é diluído pelo apelo que vem de sua sexualidade escancarada e exagerada.
Outra personagem feminina resgatada das histórias em quadrinhos e apresentada em Batman (1989) é a jornalista Vicki Vale (Kim Basinger), que tem um caso com o homem morcego. Mas, sua participação é bastante restrita a ser a namorada do Batman que é raptada pelo Coringa (Jack Nicholson) e precisa ser salva pelo mocinho. Este é um tema clássico e batido na representação feminina. Outra missão da personagem de Vale foi tirar um pouco da força das insinuações latentes sobre a homossexualidade de Batman que eram perceptíveis na série infantil da TV para quem tinha um pouco mais de malícia.
Nessa série, as mulheres representavam o perigo e a mentira, especialmente porque muitas delas eram apenas as ajudantes dos vilões. Não havia nenhum relacionamento amoroso entre elas e o homem morcego e de aí derivavam as especulações sobre a homossexualidade do herói.
No entanto, a Mulher Gato era vista como um símbolo sexual e Julie Newmar, mais tarde, como ícone gay. A Mulher Gato poder ser vista tanto como uma afirmação feminina em um mundo masculino através de estereótipos sexistas de mulher objeto quanto a personificação de fantasias machistas da submissão das mulheres.
Por exemplo, na série de TV e em todos os filmes sobre o homem morcego, o próprio uniforme utilizado por ela revela um corpo atraente e sexy enquanto o Batman (Adam West, por exemplo), deixa parecer até uma leve pancinha, em um uniforme bastante infantil. A vilã funciona como um contra ponto no cansativo joguinho de pega-pega entre o homem morcego e seus arqui-inimigos. Ou seja, numa série onde praticamente não existe nada de sexual, a representação da feminina apela a esse fator. Parece ser que, definitivamente, as mulheres não conseguem ser mostradas de outra forma, além da objetificação sexual.
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No mundo fictício criado para a série de TV, a mulher não existe ou é um objeto usado pelos vilões. No episódio “O Coringa Está Solto” (1966), por exemplo, o vilão perde a paciência com a pouca inteligência de sua ajudante Queenie (Nancy Kovack), que por sua vez, tenta escapar da prisão seduzindo Batman, no episódio Batman Está Irritado (1966) e o herói fica numa situação difícil por não poder usar a violência e os socos para se livrar da moça.
É verdade que no último filme de Nolan, O Cavalheiro das Trevas Ressurge, a Mulher Gato de Anne Hathaway, ainda que muito sexualizada, tem um papel mais ativo e fundamental. [SPOILER] E também surpreende o fato de descobrirmos que o grande vilão do filme era, em realidade, uma mulher: Miranda Tate ou Talia al Ghul (Marion Cotillard). [FIM DO SPOILER]
Além disso, está claro que a grande presença do filme Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Zack Snyder, 2016) é a Mulher Maravilha (Gal Gadot), que impede que o longa metragem seja uma desastrosa chatice. No entanto, o que ainda faz falta e já há mais de 40 anos é que os personagens femininos sejam mostradas com tantas possibilidades como os masculinos e que um dia possamos dizer: Santa diversidade, Batman!
Fontes:
1. Leite, Pedro de Araújo (2011). Adorno e Horkheimer versus Batman e Robin: da estética camp como possibilidade de superação de alguma coisa. Dissertação de Mestrado. Campinas, SP: Unicamp.
2. Sontag, Susan (2009). Against interpretation and other essays. Londres: Penguin.