O Outro Lado do Paraíso: a representação feminina na novela

O Outro Lado do Paraíso: a representação feminina na novela

A novela das 21h, O Outro Lado do Paraíso, tem aberto discussões sobre temas polêmicos, como o racismo, pedofilia e agressão contra mulheres. Na trama de Walcyr Carrasco, Clara (Bianca Bin) é a protagonista que se casa com Gael (Sérgio Guizé), sendo abusada física e psicologicamente pelo marido.

Pouco tempo após pedir o divórcio, Clara é interditada e mandada para um hospício pela sogra Sofia (Marieta Severo), onde passa dez anos até conseguir fugir. Paralelo a isso há a história de Raquel (Erika Januza), negra moradora do Quilombo que se apaixona por Bruno (Caio Paduan), filho de sua empregadora que não poupa comentários racistas.

A novela também aborda a relação de Laura (Bella Pietro) com o padrasto Vinícius (Flávio Tolezani), delegado que será acusado de abusar da enteada, além de outros temas, como o machismo e questões sociais. O que todas as mulheres vítimas dessa novela têm em comum é a banalização e até silenciamento do que elas sofrem.

O Outro Lado do Paraíso
Érika Januza como Raquel (Divulgação/TV Globo)

Nádia é racista e carrega consigo também preconceito de classe. Raquel trabalhou como doméstica na casa da família e seu relacionamento com Bruno foi visto pelo estereótipo da empregada que vai para a cama com o filho do patrão, afinal ela é “apenas diversão” para o garoto. “Ele é homem”, “eu também era assim na idade dele”, é o que o pai, com orgulho, dizia. Nádia desde aquela época destilava preconceito sobre Raquel, seu trabalho e sua origem.

O casal se separou por pressão da família e se reencontrou anos depois, ele delegado e ela juíza. Raquel continua vítima dos mesmos comentários racistas da sogra que não aceita o relacionamento do filho com “aquela negra do Quilombo”. Anos se passaram e Nádia em momento algum sofre consequências pelo que diz, o máximo que a personagem escuta é o apontamento “você pode ser presa, isso é racismo”, que ela própria desconsidera por se sentir muito segura de si para dizer o que bem entender, afinal ela é mulher do juiz então nada acontecerá com ela.

O Outro Lado do Paraíso
Da esq. para dir.: Sandra Coverloni,Bella Pietro, Caio Paduan, Luis Melo, Érika Januza, Eliane Giardini e Patrícia Elizardo (Divulgação/TV Globo)

Nádia também utiliza discurso machista – o que é incomodamente presente na novela – e em momento algum essa fala é contrariada, mesmo pelas mulheres mais empoderadas. Ela aconselhou diversas vezes Tônia (Patrícia Elizardo), ex-mulher de Bruno, a como manter o marido no casamento, como uma mulher deve se comportar, entre outras personagens que fazem o mesmo discurso sobre como os homens de sua família são “viris”.

Isso também acontece com Lorena (Sandra Corveloni), esposa de Vinícius. Por ser tirada por ele de uma situação de pobreza com sua filha Laura ainda pequena, a dona de casa põe o marido em um pedestal, ignorando o pânico que a própria filha tem quando está próxima dele e ignorando comentários pejorativos que ele faz.

Pouco foi mostrado até agora sobre os abusos passados pela menina que agora já tem 18 anos. Apenas é possível ver pequenas nuances dos acontecimentos, como por exemplo o pânico da menina por tartarugas, o incômodo dela perto de Vinícius e o desconforto de se aproximar de qualquer homem, como o atual noivo Rafael (Igor Angelkorte).

O Outro Lado do Paraíso
Marieta Severo como Sofia (Divulgação/TV Globo)

A principal trama de O Outro Lado do Paraíso se passa entre Clara, Gael e Sofia. Sofia era contra a união do casal, afinal, eles eram de uma classe social superior e Clara vivia com o avô e seu sustento vinha principalmente do bar que tinham, até descobrir que a terra ficava em uma mina de esmeraldas. Sofia passa a fazer de tudo para explorá-las, inclusive internar a ex-nora em um hospício para ter o controle de suas terras e expulsar o avô da própria casa.

Gael talvez seja o mais problemático de toda a novela. Por contradizer as próprias ações o tempo todo, a explicação para o que o personagem faz é rasa e minimiza um problema real em vários lares brasileiros. Logo na noite de núpcias ele mostra seu comportamento agressivo após beber, brigar com um convidado por ciúmes e estuprar a mulher. A cena visualmente foi pesada mostrando em paralelo cenas de Clara como se afogando no rio enquanto acontecia, para logo depois um simples pedido de desculpas silenciar todo o resto, como se não houvesse trauma algum.

O Outro Lado do Paraíso
Sérgio Guizé e Bianca Bin como Gael e Clara na primeira fase da novela (Divulgação/TV Globo)

Ele diz sentir “dois dentro dele”, dando vazão à essa personalidade principalmente após doses de uísque. É abusivo, ciumento e agressivo. Após espancar Clara, fazia cara de bom moço, dizia que a amava e que nunca mais faria isso – até a próxima crise de ciúmes, é claro. Não queria que a mulher tivesse celular ou acesso à internet. Achou desnecessário ela ter amigas – como quando na lua de mel ela conheceu Duda (Glória Pires) e ele rasgou o cartão com o telefone da nova conhecida. Acreditava em cada insinuação que Sofia fazia para desacreditar na palavra da esposa.

Na segunda fase da novela o autor pareceu decidir inventar uma justificativa, afinal, Gael não era ruim, ele era “bom” com suas irmãs. Vamos dizer que há uma espécie de demônio ou encosto dentro dele. Essa justificativa se confirmou quando, pedindo ajuda espiritual para Mercedes (Fernanda Montenegro), Gael ficou transtornado no meio da oração e quase agrediu também a senhora.

Para quem acompanha O Outro Lado do Paraíso pareceu contraditório toda a comoção da agressão contra a mulher. O capítulo que colocou o número do disque denúncia, dizendo para as vítimas não se calarem (o que elas realmente não devem fazer) é muito importante para mostrar que não estão sozinhas -, para, no final, justificar todos os abusos com uma “questão espiritual”.

É preciso mostrar que há homem agressor, sim, porque há machismo e sensação de que a mulher pertence a alguém e não a si mesma. Gael dizia que “mulher dele” não agiria de várias maneiras que o desagradam. Minimizar isso com um “encosto” é falho tanto para mulheres que passam por essa situação, quanto para quem acredita que questão espiritual vai além dessa explicação simplista.

Não contente, Gael ainda culpabiliza a mãe pelo seu comportamento agressivo. Sofia é a grande vilã da novela e realmente causou problemas entre o casal enquanto ainda estavam juntos, mas ela não pode ser considerada culpada pelas ações do filho, que agrediu até a atual namorada Aura (Tainá Muller). Seu grande erro, nesse caso, é justificar essa violência como se de alguma forma Clara tivesse merecido.

O Outro Lado do Paraíso
Estela (Juliana Caldas) e a mãe Sofia (Marieta Severo). (Divulgação/TV Globo)

Um ponto positivo é o protagonismo feminino. Todos os núcleos têm mulheres fortes que guiam a história. Em contrapartida, elas são vistas de um ponto de vista machista que incomoda e as diminui. Por exemplo, Lívia (Grazi Massafera), criticada por sua liberdade sexual e por se relacionar com homens de classe social inferior à sua, é a única que fala sobre seu irmão Gael ser agressor de mulheres. A problemática da personagem é ter ajudado a mãe a praticamente roubar o filho da Clara para criar como se fosse seu, tendo um comportamento quase obsessivo com o menino.

Também vemos Diego (Arthur Aguiar), filho de Nádia, que se encontra regularmente com a prostituta Karina (Malu Rodrigues) e não leva seus sentimentos a sério, porque não a considera digna e quer uma moça “pura” para se relacionar.

Outro ponto positivo é abordar a história de Estela, a anã filha de Sofia que sofre por ser rejeitada pela própria mãe, e mesmo sua história fica muito aquém do que poderia ser abordado. Estela é mandada para Pedra Santa, porque a mãe não a queria na sociedade de Palmas, tem sua trama resumida a um triângulo amoroso que se arrasta por semanas com Juvenal (Anderson Di Rizzi) e Amaro (Pedro Carvalho).

O Outro Lado do Paraíso
Grazi Massafera faz o papel de Lívia, irmã de Gael e Estela e filha de Sofia (Divulgação/TV Globo)

É interessante e válido abordar assuntos relevantes, afinal, a principal novela do horário nobre tem tudo para chamar mais atenção dos telespectadores, porém a construção do enredo se faz cada vez mais torpe ao longo dos capítulos. A abordagem se torna superficial, devido ao tema principal ser a vingança da protagonista e como a lei do retorno existe – teoria que basicamente tem se baseado entre se vingar ou aceitar os abusos que acontecem.

Há muito a ser explicado e talvez, exatamente por isso, não haja tempo de se aprofundar nem na trama principal. Há várias mulheres com potencial que têm suas histórias e conquistas diminuídas pelo clichê que banaliza e dá aquela sensação que “tudo agora é preconceito” – frase dita por uma das personagens e que incomoda quem reconhece minimamente os absurdos que acontecem durante o capítulo-, seguindo um discurso em que o homem tem que ser forte e viril, enquanto as mulheres apenas aceitam esse comportamento e se adequam.

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Por um lado, em O Outro Lado do Paraíso temos a representatividade feminina em grande parte da novela, para do outro, vermos as mulheres passarem pelos mesmos problemas, com as mesmas explicações que quase conseguem anular todo o protagonismo e conquistas das personagens. Um apontamento válido é ver também quem são essas mulheres representadas. Raquel é a única negra com história relevante em todo o roteiro, e mesmo assim caiu no estereótipo da empregada doméstica no início. Ainda que sua vida tenha mudado, ela é a única negra entre várias mulheres brancas, tendo pouca representatividade, porque até então seu papel de juíza foi apenas colocado à prova pelos colegas de trabalho pelo seu gênero e cor. Até agora, a evolução de nenhuma das mulheres foi capaz de mudar a realidade delas, ou seja, todas seguem com os mesmos problemas: o racismo de Raquel, os abusos de Laura, as perdas de Clara e Duda.

O Outro Lado do Paraíso poderá se redimir apenas se passar a transformar a realidade dessas pessoas, mostrando que atos realmente têm consequências e pensamentos retrógrados não serão mais aceitos. Do contrário, terminará por não acrescentar nada além de justificativas tão antigas que já estão difíceis de engolir sobre a realidade das mulheres.

Autora convidada: Gabriela Santarosa é formada em Jornalismo e sonha em viver de literatura numa casa com cinco cães e a despensa cheia de coxinhas. Ama MPB, romances de época e maratona séries com a Força de um Jedi.

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