A representação feminina em Doctor Who: a causa das garotas impossíveis

A representação feminina em Doctor Who: a causa das garotas impossíveis

É quase um denominador comum nos enredos que conhecemos, sejam eles televisivos, cinematográficos ou literários, a personagem feminina presente como coadjuvante, em geral sem tridimensionalidade, sem história e desenvolvimento ou mesmo personalidade desvencilhados do conflito do protagonista. Muitas vezes, a mulher está presente na história só para dar apoio a mais uma faceta da personalidade do herói, ser seu par romântico, uma metáfora para algum aspecto de sua vida, um objeto a ser salvo, ou sua perdição. Na série Doctor Who, que está no ar desde 1963, as mulheres, sempre coadjuvantes e em geral companheiras de viagem do Doutor pelo tempo e espaço, chamadas companions, são desde o início estereotipadas, rasas, frágeis ou simples acessórios da narrativa principal: as viagens e aventuras do sempre homem e inteligente Doutor.

Mas ainda assim, é possível observar uma certa evolução da representação feminina dentro da série, ainda que não seja pensando-a como uma linha contínua e crescente, pelo contrário, ainda hoje descrevendo altos e baixos, avanços e recuos, ora caindo em estereótipos e reducionismos, ora empreendendo esforços para entender cada vez mais suas personagens femininas para além do enredo do Doutor.

É difícil encontrar nas companions do Doutor, tanto na Era Clássica quanto na atual, aspectos de suas histórias ou personalidades que não estejam diretamente relacionadas a ele. Suas vidas são em grande medida, quando não inteiramente, definidas e desenvolvidas pela relação e convívio que essas personagens tem com ele, girando em torno de suas viagens e aventuras com pouco ou nenhum desenvolvimento pessoal independente.

Não é com grande surpresa que observamos as companions da Era Clássica, principalmente durante os primeiros dez anos da série, retratadas invariavelmente como frágeis, ingênuas e necessitadas sempre dos conhecimentos e explicações do Doutor para entenderem o que acontecia à sua volta. Susan Foreman e Barbara Wright, companions das primeira e segunda temporadas, além de se encaixarem perfeitamente nos estereótipos femininos citados, raramente mantinham diálogos entre si.

Doctor Who
Da esquerda para direita: Ian Chesterton, o Doutor, Barbara Wright e Susan Foreman

Até os dias atuais, vemos continuamente o Doutor tomando decisões por suas companions, decidindo diversos aspectos de suas vidas, numa clássica atitude patriarcal, sob a justificativa de proteção ou de possuir maior conhecimento do que qualquer uma delas.

No que tange às suas personalidades, estas abrangem apenas dois lados do espectro: ou se apaixonam pelo homem louco numa caixa, como Rose Tyler, Martha Jones ou River Song, ou são autoritárias e controladoras demais, funcionando como alívio cômico, enquanto é perpetuada a visão da mulher que fala rápido, alto e é viciada em dar ordens, como Donna Noble, Amy Pond e Clara Oswald.

Não obstante, com Clara Oswald e Bill Potts, as coisas têm mudado um pouco de figura, embora a passos curtos. Clara, quando foi apresentada à nós na oitava temporada, era quase como mais uma face de Amélia Pond, com a mesma obsessão de controle, ou seja, mais uma control freak, o que faz com que suas opiniões, quando diferentes das do Doutor, soem apenas como vontades mimadas de uma mulher que, como todas, querem ter a palavra final em tudo e pouco sabem realmente de coisa alguma.

Doctor Who

Entretanto, no seu desenvolvimento, Clara vai se tornando independente, essa face deixa de ser apresentada como uma obsessão por controle e se transformando, não ingenuamente, numa espécie de voz própria, com a qual ela vai contrapor, discutir e questionar as decisões do Doutor, mostrando sua voz, visão das coisas e as suas soluções para os problemas. E mesmo que eternamente vinculada ao Doutor por afinal “ter nascido para salvá-lo”, Clara anda com seus próprios pés, sua vida não gira em torno somente das viagens na TARDIS, é professora, tem família, problemas, esperanças, dores e frustrações próprias para lidar.

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Em Clara Oswald encontramos uma tridimensionalidade inédita até mesmo na série: observamos sua vida que existe para além do Doutor, suas opiniões e seus conflitos com ele próprio, seja para expressar suas ideias ou se impor nas situações, não mais aceitando um mundo exclusivamente explicado por ele, nem a visão das coisas através de seus olhos. Mas o nosso questionamento continua, sempre procurando saber se, afinal, as personagens femininas possuirão história de fundo próprias, diversas, desvinculadas e desenvolvidas para além da odisseia do Doutor.

Doctor Who

Contudo, os rumos tomados no final da oitava temporada, exibida em 2016, como demonstrado por Joanna Robson num artigo para a Vanity Fair; a história de Bill Potts, uma personagem inteligente, independente e lésbica; e finalmente, uma Doutora, nos dá afinal um horizonte de expectativa para dias e enredos melhores, mais representativos, menos patriarcais e que nos lembre que uma personagem feminina, protagonista ou coadjuvante, tridimensional e multifacetada não é uma questão impossível.

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Historiadora e escrevedora de frases longas. Entusiasta de diálogos. Fala de literatura e de história até na mesa do café.
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