[MÚSICA] Como o feminejo representa as demandas feministas?

[MÚSICA] Como o feminejo representa as demandas feministas?

“Iê Iê Iê Infiel, eu quero ver você morar num motel, estou te expulsando do meu coração, assuma as consequências dessa traição…” Esses versos são familiares a vocês? Quem nunca se pegou cantando letras da Marília Mendonça ou das “coleguinhas” Simone e Simaria? Pois bem, as letras das “feminejas” grudaram em nossas cabeças e invadiram com tudo as paradas musicais brasileiras. Em tempos de debates sobre o empoderamento feminino e a liberdade da mulher, as músicas cantadas por mulheres e para mulheres proporcionaram uma abertura para interpretações feministas de suas letras. Antes de avançarmos nas discussões sobre o feminismo, precisamos saber como se deu a origem do feminejo.

Nascimento do Feminejo

Elas surgem em 2011, quando a cantora Naiara Azevedo gravou “Coitado”, do álbum “Ao vivo”, em resposta ao conteúdo considerado machista da música “Sou foda” de Carlos e Jader. De lá para cá, despontaram diversas mulheres que fazem sucesso com músicas que exaltam o poder feminino, clamam pela igualdade de gênero e desconstroem padrões denominados masculinos. O time composto por nomes como Marília Mendonça, Maiara e Maraísa, Simone e Simaria e Naiara Azevedo tem dominado o topo das músicas mais ouvidas no Brasil. Em 2016, “Infiel” de Marília Mendonça e “10%” de Maiara e Maraísa, ocuparam respectivamente o 1º e o 3º lugar das mais músicas mais ouvidas no Brasil, segundo levantamento do G1.

De onde veio o termo feminejo?

Apesar de tamanho sucesso conquistado pelas cantoras, o termo feminejo surge a partir não só do aumento de mulheres que cantam a música sertaneja, mas também de uma nova imagem das mulheres representadas nas músicas, que passam a ser mostradas como protagonistas e empoderadas nas relações de trabalho ou afetivas. O termo alcançou notoriedade na mídia e passou a ser usado para referenciar as cantoras em reportagens. Com discursos que podem ser atrelados ao feminismo, as músicas apresentam temas como o direito da mulher ao próprio corpo, emancipação sentimental, sororidade e igualdade de direitos. Esses discursos extrapolam as letras das músicas e podem ser vistos em entrevistas das cantoras, nas quais as temáticas sobre representação das mulheres estão sempre em voga.

Representatividade no Sertanejo

Além da pouca representatividade nas esferas políticas, a mulher no sertanejo foi muitas vezes relegada ao papel de coadjuvante/compositora, com o discurso de que na música sertaneja “mulher não vai pra frente”. Em um ambiente predominantemente machista, poucas ao longo dos anos conseguiram dar voz às próprias composições. Entre as que conseguiram estão as precursoras Irmãs Galvão, que despontaram em 1947 e estão ainda hoje no mercado, Roberta Miranda, e na década de 2000 Paula Fernandes, Maria Cecília (da dupla Maria Cecília e Rodolfo), entre outras.

Apesar dessa presença anterior das mulheres, as músicas eram diferentes das atuais e na maior parte românticas. São conhecidas as letras de “Beijinho doce”, de As Galvão, e “Pra você”, de Paula Fernandes (“Eu quero ser pra você/A lua iluminando o sol/Quero acordar todo dia/Pra te fazer todo o meu amor”). Em tempos de feminejo é mais comum vermos letras como as de Simone e Simaria em “Chora boy”, na qual a mulher se coloca como detentora de sua vida e felicidade; e Maiara e Maraísa em “10%”, em que a protagonista se embriaga num bar, situação na qual anteriormente só era cantada por homens: “Tá pra nascer/ Alguém que manda em mim/ Que possa me impedir de ser feliz/ Tá pra nascer/ E não vai ser você/ Sou vacinada e mando em meu nariz” .

Se tratando das cantoras atuais da música sertaneja, as temáticas feministas não ficam apenas nas letras das músicas; vemos indícios de empoderamento de todas as formas. É possível observar nesse gênero musical discussões que interpelam o feminismo serem colocadas em pauta, como as questões ligadas aos estereótipos de beleza, divisão sexual do trabalho e empoderamento.

Quais aspectos do Feminismo são encontrados no Feminejo?

De forma transgressora, as “feminejas” subvertem padrões de beleza difundidos pela mídia e pelo ambiente em que estão inseridas, o meio musical. Alguns autores do feminismo argumentam que esses padrões pré-estabelecidos incidem de forma negativa na autoaceitação da mulher, subordinando-as à busca por um corpo socialmente aceito o que leva muitas à autoestima negativa, inferiorização e opressão. O movimento feminista busca a autonomia e o direito das mulheres decidirem sobre o próprio corpo, essa liberdade de ser dona de si pode ser vista em trechos de entrevistas das cantoras:

“Nada na minha vida é imposto! Não sou obrigada a ser magra, me render a modinhas para ser feliz. Eu canto, não subo na passarela. Inventam um padrão e as pessoas têm de seguir. Isso é um absurdo. Você tem de fazer e ser como quiser.” (Marília Mendonça – Revista Marie Claire, 2016)

“Eu não sou nenhum estereótipo de beleza, que parece uma Barbie, que parece uma boneca, uma gostosona do funk, uma mulher fruta. Eu sou uma mulher normal e eu acho que a partir disso as mulheres colocaram em mim uma certa confiança, um certo carinho.” (Naiara Azevedo – Uol, 2013)

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Fonte: Reprodução/Internet

Outro ponto debatido entre o movimento e que as cantoras com seu sucesso desconstroem é a divisão sexual do trabalho. Alguns autores indicam que essa divisão tem relação direta com a autonomia de homens e mulheres, pois opera na atribuição de papéis desiguais para o sexo masculino e o feminino. Enquanto os homens são delegados à esfera produtiva, as mulheres são condicionadas à esfera doméstica e do cuidado. O feminismo critica a naturalização de que a mulher é condicionada ao lar e reivindica maior participação nas esferas do trabalho ou políticas.

“Garotas-propaganda de duas marcas, uma de produtos para cabelo (Niely Gold) e outra de cosméticos (Avon), as irmãs lucraram meio milhão de reais para cada campanha. E tem mais: o cachê delas para os shows é considerado um dos mais altos do mundo sertanejo.” (Pure People, 2017)

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Fonte: Reprodução/Internet

Ao fazerem sucesso com suas músicas e conquistarem a cada dia mais seu espaço na mídia, as cantoras do sertanejo vão na contramão desse papel social atribuído ao gênero feminino, quebram também a naturalização de que a música sertaneja é cantada apenas por homens, rompendo tabus enraizados no gênero.

O ponto mais evidente a ser mencionado nessa análise é o empoderamento: notamos mulheres autoconfiantes, seguras e autônomas, “uma mudança na dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, garantindo-lhes a autonomia no que se refere ao controle dos seus corpos, da sua sexualidade, do seu direito de ir e vir, bem como um rechaço ao abuso físico e as violações” (Lisboa, 2008). Todos esses aspectos podem ser descritos no conceito que alguns autores intitulam como “empoderamento psicológico” e estão ligados a uma maior reivindicação de equidade entre os gêneros.

“Você pode fazer onde você quiser, mas no meu show você não bate em mulher não, seu covarde. Gente, é sério, uma pessoa que tem coragem de fazer isso em um show, de mulher ainda. A gente está aqui para se divertir, exaltar as mulheres.” (Maiara e Maraísa – Site Ondda, 2016)

“…cantamos o que sentimos e mostramos que temos direitos iguais aos dos homens. Se agradamos as meninas do movimento feminista, ficamos felizes. Temos uma parceria total e vamos defender as mulheres. Vai ter bebedeira, sim.” (Maiara e Maraísa – RedeTV, 2017)

As letras das canções realmente são feministas?

As músicas das cantoras do feminejo são marcadas por temáticas que colocam em pauta demandas antes nunca observadas nesse gênero musical. Emancipação sentimental, sororidade, igualdade entre gêneros e subversão de padrões qualificados como masculinos são vistos em parte das canções das feminejas.

Por emancipação sentimental, entende-se que são as letras em que é possível notar mulheres que quebram com a dominação masculina que dá livre acesso sexual aos seus corpos. Notamos que as personagens das canções dão um fim a relacionamentos abusivos, empoderam-se, colocando sua vida e felicidade em primeiro lugar.

Pegue suas coisas que estão aqui/ Nesse apartamento você não entra mais/ Olha o que me fez, você foi me trair/ Agora arrependido quer voltar atrás/ Já deu/ Cansei das suas mentiras mal contadas/ Cresci, não acredito mais em conto de fada/ Não adianta vir com baixaria” – Alô Porteiro, Marília Mendonça.

“Você não vai mais me fazer de palhaça/ Agora te esqueço / Nem que seja na raça/ Se bater saudade/ Por favor, me esquece/ Vai apagar seu fogo lá no disk sexy” – Disk Sexy, Maiara e Maraisa.

Sororidade pode ser definida como a aliança entre mulheres. O conceito vem sendo usado pelo feminismo para encorajar relações mais saudáveis entre mulheres. Ao criar laços intrínsecos pretende-se quebrar com as rivalidades que desde cedo são ensinadas às meninas. A sororidade é um dos elementos que pode ser encontrado nas letras das cantoras, mostrando uma solidariedade entre o sexo feminino que extrapola a lógica do relacionamento amoroso.

Ela precisa saber que ele não presta/ E que é infiel/ Eu já sofri nas mãos desse homem/ Meu Deus do céu/ Preciso avisar que ela corre perigo/ Que mais cedo ou mais tarde/ Vai fazer com ela o que fez comigo” – Ex do seu atual, Naiara Azevedo.

“Deixa esse cara de lado/ Você apenas escolheu o cara errado/ Sofre no presente por causa do seu passado/ Do que adianta chorar pelo leite derramado/ Põe aquela roupa e o batom/ Entra no carro, amiga, aumenta o som” – Loka, Simone e Simaria.

As temáticas sobre igualdade entre gêneros e subversão de padrões qualificados como masculino andam de mãos dadas nas canções, pois as personagens das histórias querem estar em pé de igualdade com os homens em todas as suas ações. É muito comum vermos as feminejas cantando músicas sobre se embriagar e sobre situações antes vividas apenas pelo sexo masculino, no gênero musical.

Cheguei nas pontas dos pés/ Contando as notas de dez que tinham sobrado/ E meu marido fingiu que tava dormindo/ Virado pro outro lado/ Me ferrei, exalou as pingas que eu tomei/ Nem passou três, dois, um e começou/ Onde cê tava?/ Com quem andava?/ O que é que eu faço/ Por que é que eu não te largo?” – Mexidinho, Maiara e Maraisa.

Acho melhor a gente terminar/ Agora é tarde para de chorar/ Não sou do tipo que procura amante/ Mas aconteceu e foi interessante.” – Melhor terminar, Maiara e Maraisa.

Ao analisarmos as temáticas das músicas, vemos que parte delas representam as demandas feministas, mas não se pode ignorar o fato que reivindicações empoderadas e machismo são coexistentes nas canções do feminejo.

É possível observar os mecanismos do machismo na maneira como as letras de algumas das canções são escritas. O machismo estrutura as relações de poder da sociedade, define os papéis sexuais, símbolos e imagens que homens e mulheres são representados, criando assim visões masculinas e femininas sobre determinados assuntos. A partir disso, vemos letras em que as definições de comportamento feminino, são estruturados em cima das visões que homens têm das mulheres. Podemos destacar o puritanismo atribuído às mulheres, em que existe um padrão de comportamento que essa deve seguir, que não é obrigatório ao sexo masculino.

Não sei se dou na cara dela ou bato em você/ Mas eu não vim atrapalhar sua noite de prazer/E pra ajudar pagar a dama que lhe satisfaz/ Toma aqui uns 50 reais” – 50 reais, Naiara Azevedo.

Ele te ama de verdade/ E a culpa foi minha/ Minha responsabilidade eu vou resolver/ Não quero atrapalhar você/ E o preço que eu pago/ É nunca ser amada de verdade/ Ninguém me respeita nessa cidade/ Amante não tem lar/ Amante nunca vai casar” – Amante não tem lar, Marília Mendonça.

O papel feminino em uma traição é representado em trechos das músicas acima, ora a índole da mulher é colocada à prova – levantando a hipótese da amante ser prostituta – ora verifica-se a descrença em que a mulher (amante) conseguirá um amor verdadeiro, baseado em suas ações. Ambos os questionamentos não são atribuídos aos homens quando esses são pegos em adultério, sendo até mesmo nomeado como natural ao sexo masculino . Em uma sociedade em que o patriarcalismo representa a sujeição política e sexual das mulheres perante os homens, a mulher é levada como culpada em ambos os casos pela traição, sendo que essa não possui compromisso/casamento com ninguém.

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Quais conclusões podemos fazer da representação “feminista” feita pelo Feminejo?

Apesar dessa dicotomia empoderamento/machismo encontrado nas letras do feminejo, não podemos ignorar esse fenômeno que vem dizer de uma tentativa de mudança estrutural no sertanejo: dar voz às mulheres e suas realidades. A maior participação feminina em um dos gêneros musicais mais machistas que temos no Brasil é um importante avanço na luta de nós mulheres para romper com tabus de gêneros enraizados na música em geral.

O Feminejo, apesar de ser um fenômeno do sertanejo, abre um leque de leituras e possibilidades para cantoras em todas as áreas musicais, pois reflete o momento atual em que vivemos, no qual as discussões sobre desigualdades e feminismo alcançam os mais diversos ambientes. Portanto, é possível concluir que as cantoras “feminejas” representam, em partes, as demandas feministas, mas ainda é necessário muitas mudanças para se ter uma representação mais fidedigna do movimento.

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Estudante de jornalismo, feminista e mineira. Entrou pro Jornalismo para conhecer o mundo e se descobriu pesquisadora estudando o feminejo. É fã de séries, principalmente as de super heroínas, gosta de Oasis e ama documentários.
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