Ayako: o lado sombrio de Osamu Tezuka

Ayako: o lado sombrio de Osamu Tezuka

Muitas vezes lembrado como o pai do mangá moderno, Osamu Tezuka não somente transformou a maneira de se fazer mangás, mas também foi um dos grandes responsáveis pela popularização dos quadrinhos japoneses no ocidente, com títulos como “Astroboy”;  “A princesa e o Cavaleiro”; “Kimba”, “O leão branco”, entre outros.

As obras mais adultas de Tezuka são menos conhecidas pelo público em geral, como é o caso de “Adolf”, na qual ele reconta os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, sob três pontos de vistas, de três homens chamados Adolf; um deles sendo o próprio Hitler. Em “Buda” temos a versão de Tezuka sobre a vida de Siddhartha até se transformar no Buda. Já em “Ayako” vemos o retrato do estado de confusão do Japão pós-Segunda Guerra e o choque entre o velho e novo mundo que se ergueu das cinzas das bombas. Talvez seja necessário um breve contexto da história do Japão pré-Hiroshima e Nagasaki, para que a leitora entenda o que Tezuka quis representar com sua história.

Desde o final do século XIX, o Japão Imperial foi responsável pela invasão e colonização de diversos territórios na Ásia, como Coreia, China, Vietnã, Filipinas, Taiwan, entre outros, sendo suas políticas responsáveis por genocídios étnicos e pela extrema violência imposta em suas colônias, sempre justificadas como um bem maior para os povos colonizados, que através da liderança japonesa alcançariam um novo status no mundo. Com o fim do conflito, o Japão se viu obrigado a aceitar os termos dos vencedores aliados e se submeter ao controle político e cultural dos americanos, e esse é o mundo que encontramos em Ayako.

Ayako

Originalmente publicado em três volumes, de 1972-1973, Ayako chega ao Brasil em um belíssimo volume único, publicado pela Editora Veneta e traduzido diretamente do original em japonês. Ayako é a tentativa de Tezuka de criar um épico realista do seu país, por meio de um drama de espionagem.

O tom da história pode causar estranhamento a uma leitora esporádica de Tezuka, por várias razões, principalmente por causa da famosa afinidade do autor com os desenhos animados ao estilo Disney, e a tendência de suavizar o impacto de trabalhos mais pessimistas. Entretanto, o conflito gerado pelo contraste entre momentos tensos e escapistas do mangá é o que torna inesquecível a experiência de ler a obra. Os heróis de Tezuka são ingênuos, esforçados e, como é evidente no caso de Ayako, chegam muito perto de justificar suas ações complexas através da lógica cinzenta que predomina na história.

Ao longo de Ayako conhecemos o clã Tenge, uma família tradicional muito antiga no Japão – que também serve como caricatura do Estado japonês pós-Segunda Guerra – e as dificuldades de aceitar o declínio de tradições e a ascensão de novos impérios que impõem seus costumes em solo japonês.

Em Ayako, Jiro Tenge, um soldado que é apresentado a leitora como um colaborador americano, após ficar confinado em um campo de concentração para soldados do eixo, é o mais nobre de seu clã, contudo até ele mesmo acaba sendo corrompido pelo legado podre de sua família.

A história começa com Jiro voltando para casa após seu período de confinamento, encontrando sua família totalmente mudada pela chegada de um novo membro. Não demora muito para Jiro descobrir que seu pai estuprou a esposa de seu irmão e gerou uma filha, a quem chamaram de Ayako, cujos caracteres usados para compor seu nome podem ser traduzidos como “Estranha”. Todos na casa sabem da verdade, mas, por alguma razão, manter o histórico de Ayako como um segredo mal guardado continua sendo motivo de orgulho para os Tenge.

Ayako

A partir daí, as tênues condições de vida dos Tenge são desenvolvidas pelo autor, assim como são expostos os esqueletos no armário da família, muitos deles, literais e justificados pela ganância sobre as posses da família, que detém terras e poder em sua região desde os tempos dos primeiros samurais.

Ayako, o mártir de Tezuka, acaba vivendo por mais de 20 anos em um porão, eventualmente vendo apenas seres humanos abaixando um balde com comida, água, roupas e outros suprimentos, através de um buraco no teto.

Os valores familiares, neste contexto, são apenas um ideal pervertido que Jiro tenta desesperadamente defender mais tarde, quando Ayako atinge a maioridade e se torna uma mulher sexualmente ativa. O fato de seu corpo ter amadurecido é uma grande parte do que faz de Ayako uma figura tão fascinante no cânone de Tezuka.

Ayako acaba se tornando uma mulher adulta e presa em uma mentalidade de criança, sem saber em quem confiar e como lidar com as interações sociais das quais foi privada, ainda muito cedo na infância. Em Ayako, Tezuka não poupa nenhum dos personagens da corrupção inerente ao sangue dos Tenge. Até mesmo um personagem de coração puro, como o caso de Shiro – o irmão mais novo de Jiro, que começa a história como um valente e sábio garoto de 12 anos – eventualmente se alinha com o resto de sua família e começa a se aproveitar de Ayako.

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Conforme cresce em seu porão, Ayako está alheia a toda a transformação que ocorre a sua volta, desde o desmembramento de sua família, pela ganância de seu Irmão mais Velho/Padrasto, até as mudanças políticas e estruturais que tomam todo o país. Tezuka usa as décadas vividas por Ayako em sua prisão, como simples pano de fundo para os acontecimentos posteriores à Segunda Guerra que afetaram o Japão. Como a Guerra da Coreia, o embate entre ideologias políticas e o nascimento da moderna Yakuza, todos os acontecimentos são entrelaçados em uma trama com ares de romance de espionagem.

Ao concluir sua história, Tezuka não permite que ninguém saia com boa aparência, nem mesmo Jiro, que ao longo da história procura quitar sua dívida com Ayako, devido a seus erros do passado e por sua parcela de culpa pelo sofrimento da garota. No final, Jiro, como qualquer homem que entra em contato com ela, acaba se deixando levar por seus desejos egoístas. Até mesmo Ayako é jogada cada vez mais em direção à insanidade, sendo incapaz de sobreviver em meio à sociedade, preferindo a segurança de porões ou baús. 

Ayako é um trabalho sombrio e ideologicamente complexo. Pelo desenlace sombrio da história, é aparente que nem mesmo o mais nobre ou mais justo de seus protagonistas é suficiente para superar a podridão que se instaurou em sua linhagem e ao seu sentimento de romantismo frustrado.


Ayako

Osamu Tezuka

Editora Veneta

720 páginas

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Escrito por:

46 Textos

Formada em Comunicação Social, mãe de um rebelde de cabelos cor de fogo e cinco gatos. Apaixonou-se por arte sequencial ainda na infância quando colocou as mãos em uma revista do Batman nos anos 90. Gosta de filmes, mas prefere os seriados. Caso encontrasse uma máquina do tempo, voltaria ao passado e ganharia a vida escrevendo histórias de terror para revistas Pulp. Holden Caulfield é o melhor dos seus amigos imaginários.
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