[LIVROS] A coleção de críticas de Jessica Hopper nos explica por que precisamos de mais mulheres no jornalismo cultural

[LIVROS] A coleção de críticas de Jessica Hopper nos explica por que precisamos de mais mulheres no jornalismo cultural

The First Collection of Criticism by a Living Female Rock Critic* não é, a rigor, a primeira coleção de críticas escritas por uma crítica de rock ainda viva, como diz a tradução do título. Jessica Hopper, a autora do livro, dá o alerta logo de cara, na breve dedicatória que precede a obra. Trata-se de uma homenagem às outras mulheres que se propuseram a fazer o mesmo bem antes dela, que lançou seu exemplar apenas em 2015.

Entre as mencionadas estão Beginning to See the Light, da Ellen Willis, Rock Encyclopedia, da Lillian Roxon, 1988: The New Wave Punk Rock Explosion, da Caroline Coon, e Rock She Wrote, editada por Evelyn McDonnell e Ann Powers. Todas muito bem avaliadas pela crítica em geral, e principalmente por Hopper, que as vê como grandes influências em sua carreira.

O falso pioneirismo é a única informação imprecisa no título. O resto é bem fiel: The First Collection of Criticism by a Living Female Rock Critic é uma seleção de textos de autoria da própria jornalista (que é crítica de rock e ainda está viva, felizmente), retirados de publicações pelas quais passou: Punk Planet, SPIN Magazine, Village Voice, entre outros nomes de peso em conteúdos sobre música alternativa nos EUA.

Para quem ainda não entendeu por que o livro ganhou um título que é desmentido pela própria autora, aí vai a explicação:

“É sobre colocar uma bandeira; é para aquelas cujos sonhos (e manuscritos) esvaíram-se, devido à falta de precedência, suporte e permissão. Esse título não tem o intuito de apagar a nossa história, mas sim de ajudar a pavimentar a nossa trajetória.”

É isso. Na concepção da jornalista, usar o rótulo “primeira coleção de críticas” não é sinal de prepotência. O nome foi usado apenas para oficializar na história que mulheres escreviam e escrevem críticas musicais. Muitas. Tantas que foi preciso escrever um livro para selecionar algumas das melhores. Essa foi a primeira coleção. Mais estão por vir.

O livro é dividido em 8 capítulos: Chicago, Real/Fake, Nostalgia, California, Faith, Bad Reviews, Strictly Business e Females. (Foto/Créditos: Bárbara Alcântara)

Eis que surge uma outra pergunta: por que é tão importante assim que existam mulheres escrevendo críticas culturais? A resposta vem de um texto que circulou no facebook, escrito pela Anwen Crawford para a revista New Yorker, cuja tradução foi lançada pelas mulheres da MADREmag. Intitulado “O mundo precisa de mulheres críticas de rock”, o artigo traça as problemáticas de uma mulher se inserir nos meios intelectual e profissional.

As barreiras já são percebidas nos atributos que costumam tornar um crítico icônico. Tome-se como exemplo Lester Bangs, que morreu em 1982, aos 33 anos: “Seu estilo gonzo de vida imprudente, o uso de drogas e de óculos escuros à noite fez com que ele fosse tão anti-heróico quanto o assunto com que lidava: estrelas do rock”. Características que nas mulheres costumam despertar impressões bem diferentes: “(…)  raramente são consideradas geniais; muitas vezes, são taxadas como vadias”.

Esse princípio perverso não se aplica somente às críticas e escritoras. Como leitoras, a identificação com o texto dificilmente é plena:

“O rock raramente ofereceu a mulheres a mesma promessa tangível de rebelião social e liberdade sexual que ofereceu aos homens — apesar de muitas mulheres, inclusive eu, tentarem as mesmas coisas para encontrar a liberdade que existia nas músicas.

A gente debate muito essa questão da história oficial ser centrada no homem branco-cis-hétero-rico. É claro que é. A maior parte dos textos e das teorias e das análises sociais e das coberturas jornalísticas são escritas por eles. E um texto, por mais objetivo que tente ser, já é subjetivo a partir do momento em que é escrito por alguém. Ou seja: sempre.

Ainda que o autor tente narrar o fato de forma bem isenta, informativa, mostrará apenas o que julga importante, afinal de contas, não tem como a gente analisar um tema em sua totalidade. O que fazemos é escolher alguns pontos e, então, nos aprofundamos no assunto a partir deles.

Imaginem que esse tempo todo quando lemos entrevistas/resenhas de álbuns/biografias de artistas/análises de obras e pinturas (ou seja, tudo o que é produzido pelo jornalismo cultural) escritos por homens, estamos automaticamente enxergando toda uma história sob a ótica deles. A gente vê o que lhes importa, o que eles querem que a gente veja. Independentemente de essa perspectiva ter sido escolhida de forma intencional ou não.

(Fonte/Crédito: Reprodução)

Passamos um tempão sentindo coisas e nos emocionando com características que talvez não tenham tanto a ver conosco quanto pensávamos. Atemo-nos a valores e a opiniões que nem sempre nos completam. E seguimos assim porque essa é a única opção que nos foi dada.

Quando nos deparamos então com textos como o primeiro do livro de Hopper, que se chama “Emo: where the girls aren’t” (tradução livre: “Emo: onde as garotas não estão”), é como se algo se encaixasse. Em um show da banda Strike Anywhere, a autora percebe que a letra de uma música, “Refusal”, aborda um ponto de vista feminino. Ao invés de simplesmente analisar aquela letra específica, ela a usa para traçar uma reflexão bem longa sobre o quanto o ambiente é pouco acolhedor para as mulheres:

“Eu tenho ido a três shows por semana pela última década e o número de vezes em que ouvi a realidade da mulher ser reconhecida ou retratada em uma música cantada por uma banda liderada por um homem foi zero. Essa foi a primeira.

Ela cita muitas outras situações e letras que são ofensivas, e deixa claro que aquele caso foi um ponto fora da curva. Nos mostra o quanto ainda somos pouco representadas. “Não é à toa que garotas que conheço têm se sentido indiferentes ou céticas em relação à música”, afirma.

(Foto/Créditos: Bárbara Alcântara)

Mais adiante, em um texto de 2005, a autora relembra uma história engraçada de sua adolescência – que não deixa de ser uma crítica – para falar da reunião dos integrantes da banda Dinosaur JrHopper conta que na sua cidade o tipo de encontro mais comum entre os casais adolescentes era ir ao bosque e sentar em “uma área cheia de troncos” para ouvir seus álbuns preferidos e conversar sobre eles. Por muito tempo ela ia para esse lugar com um garoto e o ouvia falar sobre o Dinosaur Jr. incansavelmente. Ela escutava, mas não emitia opinião porque precisava ser dócil:

“Eu também sabia mais sobre Dinosaur Jr. (e todas as outras bandas favoritas dele) do que ele, mas eu guardava isso para mim. Se eu o intimidasse, ele não iria mais para a área dos troncos comigo.

A jornalista repete a estratégia narrativa no artigo “Louder Than Love: my teen grunge poserdom” (tradução livre: “Mais barulhento que o amor: minha juventude grunge poser”). Como pano de fundo para a análise do álbum da banda Soundgarden, que dá nome ao ensaio (Louder Than Love), Hopper conta como conheceu a banda enquanto tentava impressionar um garoto. O texto foi incluído no capítulo “Real/Fake” (Real/Falso), porque trata do período da adolescência em que a autora se forçou a gostar de coisas nas quais não via sentido, apenas para agradar alguém.

Por uma ironia do destino, nessa época da vida, enquanto acompanhava as compilações da Sub Pop em busca de informações sobre Soundgarden, Hopper acabou descobrindo a banda Bikini Kill, a gravadora Kill Rock Stars e todo o movimento riot grrrl. Foi a partir daí que sua vida tomou um rumo diferente. Existia, no fim das contas, um tipo de música que a representava por completo! Assim como garotas que passavam pelos mesmos dramas que ela.

A visão particular e feminina, que Hopper tão bem desenvolveria mais tarde, é mais visível em uma entrevista com a banda Hole, à qual foram reservadas 16 páginas. Não funciona no estilo perguntas e respostas; a escritora apenas organiza as falas, criando uma narrativa bem coesa entre os integrantes. O assunto principal é o processo de gravação do Live Through This, segundo álbum de estúdio da banda, entre 1993 e 1994.

A jornalista nos oferece um outro lado da história, sem romantizar nada: durante toda a narrativa, fica clara uma insatisfação dos outros integrantes com Courtney Love, sempre muito rigorosa e ambiciosa nesse período. Era tão difícil lidar com ela que alguns pensaram, muitas vezes, em desistir.

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A razão para a personalidade explosiva de Love seria a pressão que ela vivia por ser mulher, constantemente cobrada pela mídia em relação à maternidade e também por sua capacidade artística. A entrevista desmente não só a influência que Kurt Cobain teve sobre todas as composições, como também o que dizem sobre o nome do álbum se referir à morte dele – que aconteceu um pouco antes de Live Through This ser lançado:

Courney Love: Eu descarreguei muita energia na música porque era onde eu podia descarregar a minha energia. E o título do álbum não é uma previsão do futuro. É tipo, passem por tudo o que eu passei, seus filhos da puta! Não era para ser sobre ninguém morrendo. Era sobre passar por humilhações midiáticas como essas [que passei]. Tentem vocês – porque não é divertido.

Além desses textos, há a cobertura de eventos como a Warped Tour, da Vans, que ela categoriza como “Strictly Business” (Estritamente Negócio), assim como alguns outros shows e festivais. Também traz resenhas de composições de artistas dos mais variados; de Chance the Rapper a Animal Collective, de Kendrick Lamar a Superchunk, de Lana Del Rey a Rickie Lee Jones, de Tyler,  the Creator a The Raincoats… Fala até de uma apresentação burlesca das Suicide Girls!

Está dando pra entender o quanto isso é importante? É mais do que representatividade. É oferecer às pessoas outra forma de enxergar algo que, por anos, foi visto da mesma maneira; é tentar desmistificar valores ou preconceitos tão arraigados na sociedade. Trocar o ângulo só um pouquinho – o suficiente para abrir um infinito de outras possibilidades de interpretação. Indiretamente, em seu livro, Hopper mostra que o jornalismo cultural, quando com pluralidade de vozes, é essencial para isso.

Hopper e as integrantes do Sleater-Kinney! (Foto/Créditos: Reprodução)
*Infelizmente, The First Collection of Criticism by a Living Female Rock Critic ainda não tem tradução para o português, mas a versão importada pode ser adquirida no site da Amazon.

Escrito por:

Feminista, bruxa e vegana. Estudante de jornalismo e de bateria. Apaixonada por gatos, filmes de terror, contracultura e roller derby. Cozinheira (e meio piadista) nas horas vagas.
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