[OPINIÃO] A cena underground atual está nas mãos das mulheres e os homens não conseguem admitir isso

[OPINIÃO] A cena underground atual está nas mãos das mulheres e os homens não conseguem admitir isso

Dia desses me deparei com uma reportagem na New York Times* intitulada “Rock’s Not Dead, It’s Ruled by Women” (algo como “o rock não morreu, ele é comandado pelas mulheres”, em tradução livre). Na matéria, o jornalista Joe Coscarelli parte da premissa de que o rock tradicional (aquele feito por homens) está em decadência e que o de autoria de mulheres tem seguido o fluxo inverso. Para provar, ele entrevista integrantes das principais bandas femininas do indie rock atual e mostra como elas usaram toda a raiva e angústia como estímulo para criar uma cena própria – e se expressar da forma que lhes convém. Enquanto meus olhos corriam o texto, entretidos por cada palavra, não conseguia deixar de traçar um paralelo ao que acontece na cena brasileira atual.

O motivo dessa identificação foi que, na mesma semana em que encontrei a reportagem, eu tinha acompanhado, meio que silenciosamente, discussões assíduas no Facebook sobre os rumos da cena punk brasileira – que durou dias, e rendeu muitos posts e comentários. (Vou falar nesse texto sobre a cena punk, convicta de que o panorama é o mesmo em outras cenas e “tribos” urbanas). A conclusão muito pessimista a qual quase todos os que comentaram chegavam era a de que a cena underground brasileira está em declínio, já que as pessoas ou não têm dinheiro e tempo para comparecer aos eventos, ou não aguentam mais as hipocrisias, tretas etc.

cena underground

À medida em que lia as opiniões, algumas perguntas se formulavam em minha cabeça: “de que cena eles estão falando?” ou então “será que eles foram a algum rolê feminista atualmente?”. Pensei isso porque recebo convites para shows com bandas de mulheres praticamente todos os finais de semana – e a maioria deles enche.

Também porque tenho visto iniciativas que estavam adormecidas reaparecerem ao passo que novas surgem. Para citar alguns exemplos: Distúrbio Feminino, Maria Bonita, Minas à Frente, Hard Grrrls. Isso sem contar as bandas na ativa, como Charlotte Matou um Cara, Pollyana is Dead, Rakta, e o documentário “Faça Você Mesma” que está sendo produzido sobre a cena riot grrrl brasileira. Como assim as pessoas conseguem ter um olhar tão pessimista com tanta coisa acontecendo?

Foi aí que eu percebi que a questão central não estava em, de fato, a cena alternativa definhar. A dificuldade vem dos caras em admitir que, atualmente, as mulheres dominam o espaço (e grande parte do motivo disso acontecer está nos ombros deles mesmos). Essa atitude não é de agora. As críticas sempre pesam bastante para o lado feminino: ou o som não é bom o suficiente, ou o que é feito é só uma repetição do que os caras fazem, ou então as letras são muito radicais. Claro, né? Foi mulher quem fez.

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Mas quando aparece uma banda que inova, incorpora todo o espírito d.i.y. e punk em um som que é completamente característico delas, como é o Rakta, há quem torça o nariz (lembro de um show delas no Zapata 339 – em meados de 2013, quando o Zapata ainda ficava na Rua Augusta – em que muita gente sequer se deu ao trabalho de ficar no mesmo ambiente em que elas tocavam). E até hoje tem quem questione, entre outras coisas, o valor delas para a cena. Elas tocaram na rádio KEXP de Seattle, fizeram tour pelos EUA, Canadá e até no Japão, caramba!

Acho que o problema é que, por muito tempo, as mulheres tentaram criar um ambiente unificado. Acreditaram nas palavras bonitas de muito cara por aí que se dizia a favor da causa feminista. Até que tropeçaram em vários acontecimentos que comprovavam o contrário; muita hipocrisia e “passação de pano”.

É impossível não lembrar dos episódios recentes de denúncias e cartas abertas, expondo atos machistas de homens de bandas famosas – pela música e pelas letras politizadas. Isso sem nem entrar no mérito de concordar ou não com esse tipo de militância. (Até porque fui autora de uma denúncia há alguns anos e seria desleal da minha parte apenas criticar. É importante compreender o que leva as mulheres a sentirem que a única forma de serem ouvidas é levando aquelas denúncias a público – e o quão problemático isso é).

Independentemente da forma encontrada por elas para extravasar o sofrimento e, principalmente, alertar outras possíveis vítimas, ela é legítima. Se é eficaz ou não, a questão é outra. E é nessa discussão que eles sempre tentam inverter o jogo. Eles dizem que a culpa, na realidade, é das denúncias; que a galera está mais preocupada em boicotar os eventos do que apoiar a cena. Mas aí fica a dúvida: a culpa é de quem aponta os erros ou de quem os comete? Além disso, como muito bem colocado por Amanda Palmer em seu livro “A Arte de Pedir”:

“Pedir é um ato de intimidade e confiança (…) Na rua ou na internet, é isso que faz com que um envolvimento autêntico com o público, de um ser humano ao outro, seja uma parte tão essencial do pedir. A comunicação honesta gera respeito mútuo” (pág. 54-55)

Onde é que existe uma troca justa quando você sabe que aquilo que a pessoa mostra nos palcos não passa de uma ilusão? A contribuição sincera do público depende da honestidade da apresentação do artista; as palavras oferecidas devem, no mínimo, estar em harmonia com as atitudes. E quando não estão, a relação palco-plateia deixa de ser uma via de mão dupla.

Um se doa e o outro não. É óbvio que isso causa desconforto e que, com o tempo, a galera vai parar de apoiar. Seja para participar de outros espaços que vão de encontro com os seus ideais, seja simplesmente porque desencanou de tudo e quer viver uma vida de adulto “tradicional”. O negócio é que ninguém quer passar uma eternidade “dando murro em ponta de faca”. E esperar apoio quando pouco se dá em troca é inocência – quando não picaretagem.

Se não dá mais certo, então, por que não procurar outros caminhos? A resposta é simples: ninguém quer abrir mão do protagonismo. Frequentar rolês punks sempre foi ver um monte de homem na frente dos palcos, “pogando” agressivamente – um cenário pouco convidativo às mulheres.

Tentar participar de uma conversa sobre determinada qualidade técnica de uma banda sempre foi ver um monte de homem – que não raro ouviu a banda apenas uma vez – se sentir no direito de corrigir o que você diz (amém Rebecca Solnit e seu livro “Os Homens Explicam Tudo Para Mim”, em que elucida muito bem essa questão tragicômica da vida das mulheres que se aventuram na arte de possuir opinião própria).

Quando você vai a um festival feminista, em contrapartida, o que observa é exatamente o oposto. Mulheres extravasando sentimentos e se expressando livremente; mulheres opinando e criticando atitudes dos caras; mulheres formando um elo de segurança ali, na frente do palco. Elo esse que só é possível de ser estabelecido se houver a compreensão masculina de que “pela primeira vez na história, aquilo não é sobre vocês”. Só que ouvir isso dói quando você é sempre o centro de tudo, né, mores?

Em julho, compareci ao Distúrbio Feminino Fest, na Associação Cultural Cecília, e fiquei tão deslumbrada com o que presenciei que escrevi uma resenha-crônica do evento. Conversando depois com a Mariângela Carvalho, idealizadora do Distúrbio, ela me disse algo muito interessante sobre um trecho do texto.

Nele, um amigo meu dizia que, apesar de saber que aquele evento não era direcionado a ele, isso não o impediu de curtir os shows e o debate – e refletir sobre o que era dito. E ela ficou muito contente em saber que o evento não repelia os caras que compreendiam o real sentido por trás das ações, palavras e olhares de cada mulher presente ali. Mais que isso: eles se sentiam parte integrante daquele coletivo, e estavam dispostos a apoiar a causa também! Ou seja, as portas não estão fechadas, ao contrário do que falam por aí.

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“Todas as meninas para a frente! Não estou brincando.” – Kathleen Hanna já mandou o recado no início da década de 90

Com isso, digo: a cena alternativa do Brasil não está acabando. O que acontece é que quem procura esses ambientes quer fugir de valores antiquados que nos são vendidos diariamente em revistas, jornais, tv (e reforçados nas relações sociais). E é frustrante perceber que um espaço reservado à troca e à desconstrução desses valores se transformou em mais um reprodutor deles.

As mulheres enxergaram isso e se reinventaram; nada dá mais gosto do que apoiar quem usa a arte para escapar das amarras sociais. Os homens, entretanto, estão presos no tempo: mesmos discursos, mesmas bandas, mesmas brigas. Um looping que cega – tanto que eles não vêem que, logo ao lado, tem um monte de mulher incrível produzindo coisa pra caramba, dentro e fora do país.

Elas sempre estiveram, claro. Mas a diferença é que, agora mais do que nunca, essas mulheres não aceitam as posturas machistas, racistas e homofóbicas de antes. Não abaixam a cabeça quando algum cara corrige algo que elas têm certeza de que está certo. Não esperam ser convidadas para tocar nos eventos; elas os produzem. Elas estão no comando! E por medo de aceitar a mudança e abrir mão de seus privilégios, eles ficam para trás, remoendo o porquê da cena estar morrendo (como se a deles fosse a oficial; a única que importa).

Quanto tempo mais será que eles vão precisar para perceber que o mundo é mais que o umbigo deles e somar com as mina, para construir uma cena realmente inclusiva?

*Além dessa reportagem, a New York Time fez uma matéria lindíssima, multimídia, com entrevistas, vídeos, músicas e fotos, listando as bandas mais influentes do alt-rock feminino atual, coroada por uma playlist incrível no Spotify! Mas se quiser conferir algumas das bandas de terras tupiniquins, é só seguir a nossa playlist:

Capa: Natália Matos, vocalista da banda Condenados, no último Maria Bonita Fest, na Associação Cultural Cecília. Foto por Camila Amores.

Escrito por:

Feminista, bruxa e vegana. Estudante de jornalismo e de bateria. Apaixonada por gatos, filmes de terror, contracultura e roller derby. Cozinheira (e meio piadista) nas horas vagas.
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