Flores Raras: um filme costurado pela poesia de Elizabeth Bishop

Flores Raras: um filme costurado pela poesia de Elizabeth Bishop

Flores Raras é um longa-metragem dirigido por Bruno Barreto, baseado no livro “Flores Raras e banalíssimas”(1995), de Carmen L. Oliveira, sobre o romance de Lota de Macedo Soares (Glória Pires), influente arquiteta brasileira na década de 60, período conturbado da política brasileira, e a reconhecida poeta americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto). O filme assume uma força maior com personagens femininas marcantes, para além de estereótipos, ganhando um tom filosófico quando traz dramas pessoais comuns a qualquer pessoa. 

Lota vivia com sua companheira em um cenário exuberante na cidade de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Elizabeth, em Nova Iorque. E é justamente à beira de um lago no Central Park que o longa começa. 

A primeira cena de Flores Raras tem uma função essencial para a trama. Não à toa ela acompanha a memória da espectadora ao longo de todo o filme, servindo como uma espécie de pista para o tom misterioso da personalidade da poeta. Ali se revelam doses de melancolia, fragilidade e uma autocrítica em excesso. Além disso, e aqui, principalmente, os primeiros versos de um (não qualquer) poema. 

A finalização do poema A arte de perder ocorre aos olhos da espectadora, cujas linhas são capazes de fazê-lo mergulhar no íntimo de Bishop. Ali mora a grande ferida da poeta, partilhada em diferentes proporções por qualquer pessoa viva — a iminência da perda.

Flores Raras

A necessidade de viajar, revelada em uma conversa com seu amigo, o escritor Robert Lowell (Treat Williams), torna-se um elemento de transição para o Brasil. Elizabeth era amiga de faculdade da companheira de Lota, a também americana Mary (Tracy Middendorf). Na casa do casal, enquanto Mary lava os cabelos de Lota, em um ritual íntimo, as duas conversam sobre Elizabeth. Lota, incomodada com o jeito soberba da poeta, questiona Mary sobre a relação das duas, demonstrando interesse e até mesmo ciúmes em relação a essa amizade.

Para a Psicanálise, há um tipo de ciúme que pode ser resultado de projeção. No caso de Lota, aparece como elemento indicativo de projeção do próprio desejo, quando o ego o transfere para o outro a fim de aliviar o sentimento de culpa. É nessa cena que se revela um dos principais temas da trama. Mary descreve a amiga da seguinte forma: tímida, brilhante, ilusoriamente engraçada e perigosa.

Lota, diante do último adjetivo, ri incrédula sobre a capacidade de Elizabeth oferecer algum perigo. Nesse momento, a espectadora mais atenta consegue captar uma certa demora do diretor no rosto da personagem, que assume um semblante enigmático e ainda mais curioso. O motivo: o suicídio de um antigo caso amoroso da poeta. Aqui, os primeiros versos do poema de Elizabeth começam a fazer sentido para os que assistem Flores Raras, bem como seu alcoolismo, explorado em diferentes cenas. O vazio daquela que se intitulou “a pessoa mais solitária do mundo” ganha cada vez mais significados.

Flores Raras

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Mas o jogo virou a partir de uma brecha na personalidade contida de Elizabeth. Brecha essa que o diretor faz questão de deixar aparente em diferentes momentos do filme: o desejo. O desejo grita nos seus olhos e gestos, como na cena do caju. Ironicamente o caju que quase a matou foi o que a conectou com esse desejo e a possibilidade de vivê-lo. O que era para ser uma viagem de férias se torna então o começo de um romance peculiar entre Lota e a poeta.

Lota, Elizabeth e Mary passam a viver um triângulo em que à última fica reservado o papel de antigo amor. Lota não era uma mulher comum em seu tempo. Destemida, independente, a figura de uma mulher ousada em uma sociedade em que esse lugar era cativo dos homens. Uma personagem aparentemente forte, movida por paixões pela arquitetura e pelas mulheres de sua vida. Seus cabelos pretos e lisos, lavados agora por Elizabeth, inspiraram um grande poema da americana, chamado O banho de xampu, tradução de Paulo Henrique Britto.

Acontece que como todos Lota também tinha suas fraquezas, demonstrando uma exagerada necessidade de controle que a fez apostar tudo em um terreno instável. E o tudo é demais para alguém acostumado à liberdade da solidão como a poeta estrangeira. Lota apertou Elizabeth e ela escapou entre os seus dedos.

Flores Raras
Lota e Elizabeth. Imagem: reprodução

Flores Raras reconta o romance entre a arquiteta e a poeta. Entretanto, é a arte de perder que evoca a espectadora quando traz à tona o tema das feridas psicológicas e o seu poder sobre a capacidade de entrega. O poema “A arte de perder” serve então de inúmeras formas para a trama. Uma pista, uma profecia, um alívio diante da morte.

O poderoso poema de Bishop costura a obra e revela a dor e a impotência diante da finitude, nos convidando a aceitar a efemeridade da vida. Nas palavras da poeta, pois é evidente/ que a arte de perder não chega a ser um mistério / por mais que pareça / (escreve!) muito sério.

Autora convidada: Eduarda Vidal é redatora com formação em Psicologia e pós-graduanda em Cinema. Escreve poesia, crônica e crítica. Gosta de lembrar que crítica não é falar mal (ou bem) e acredita na igualdade como justiça. 

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