A história da sexóloga Michalina Wislocka além da romantização do filme

A história da sexóloga Michalina Wislocka além da romantização do filme

Dirigido por Maria Sadowska, A Arte de Amar (Sztuka kochania. Historia Michaliny Wislockiej, no original) conta a história da polonesa Michalina Wislocka. A médica ginecologista e primeira sexóloga da Polônia, foi uma mulher à frente do seu tempo. Autora do livro homônimo ao filme, Wislocka viveu uma vida fora dos padrões e se dedicou a disseminar a importância do uso de métodos contraceptivos defendendo o prazer sexual das mulheres, e que o sexo não deveria ser uma obrigação matrimonial. Ela instigava suas pacientes a conhecerem seu próprio corpo ensinando sobre o clitóris, masturbação e orgasmo, assim como a respeitarem seus desejos e individualidades, relacionando tudo isso a uma maior harmonia dentro do casamento.

A Arte de Amar, disponível na Netflix, tem um ritmo gostoso, uma fotografia e direção de arte vibrantes, e mais do que isso, uma protagonista admirável. Ao longo do filme conhecemos Michalina Wislocka (Magdalena Boczarska) em dois tempos paralelos: um no tempo presente, no início dos anos 70 na Polônia comunista, onde a médica tenta de todas as formas publicar seu livro escrito baseado em suas experiências pessoais, o qual ensina sobre o corpo feminino e os prazeres do sexo; e outro no seu passado, seguindo até o momento em que a autora decidiu escrever o livro.

O filme biográfico apresenta uma mulher interessante e destemida, porém ignora, romanceia ou não se aprofunda em questões extremamente relevantes para a construção psicológica da personagem. Pelas entrevistas dadas por sua filha Krysia na época do lançamento do filme, é possível compreender melhor o que o roteiro não deu conta de explorar. Ela apresenta uma mulher mais verdadeira e que, assim como tantas outras, sofreu escancaradamente o machismo e precisou enfrentar dilemas éticos e morais acerca da maternidade.

Antes de problematizar, um breve resumo da história toda. Michalina casou-se aos 18 anos, no fim dos anos 30, com Stach Wislocki (Piotr Adamczyk). Após alguns anos casados, ela convence seu marido a trazer Wanda (Justyna Wasilewska), sua melhor amiga de infância, para viver com eles e assim vivem em um triângulo amoroso. Anos mais tarde as duas engravidam, porém as crianças são registradas como filhos gêmeos de Michalina. O triângulo se desfaz, cada um vai para o seu lado, e Michalina se dedica ferozmente à carreira de médica ginecologista.

Michalina Wislocka

AVISO: O TEXTO A SEGUIR APRESENTA SPOILERS DO FILME

Em um de seus trabalhos, conhece Jurek (Eryk Lubos), professor de ginástica e casado, de quem se torna amante e mantém um relacionamento amoroso por anos. É com ele que Michalina vai aprender a gostar de sexo, a conhecer seu próprio corpo e a partir dessa descoberta, vai passar a disseminar a importância do prazer sexual para suas pacientes. Jurek é também sua principal inspiração para escrever o livro A Arte de Amar.

Isso posto, é hora de desromancear. A começar pela história do triângulo amoroso. O filme se apropria do fetiche masculino e insinua que as duas eram bissexuais, mas na verdade o marido transava com as mulheres (separadamente) e elas não transavam entre si. Aliás, uma coisa que o filme não explora é o quão tóxico sempre foi esse marido. Stach era biólogo e via sua esposa como uma futura assistente para os seus trabalhos, além disso era machista e bastante possessivo não permitindo que Wislocka saísse de casa, tivesse amigos e nem mesmo fosse com a sua mãe ao cinema.

Foi por viver trancafiada e infeliz que ela sugeriu a vinda da melhor amiga da infância para morar com eles. Wanda representava o padrão de mulher ideal para a época. Era bonita, vaidosa e gostava de cuidar da casa. O filme retrata bem essas características e acentua o contraste dos seus vestidos vermelhos e femininos com as roupas terrosas e masculinas de Michalina.

Sabendo da possibilidade do marido e Wanda se atraírem sexualmente (o que realmente acontece), Michalina abriu mão da exclusividade em prol de ter uma vida mais livre. Aliás, ela realmente não fazia questão da exclusividade pois não sentia prazer nenhum transando com o marido; inclusive, segundo as entrevistas de sua filha, Michalina associava o sexo com algo traumático e sentia culpa e dor por isso, via sua relação com Stach apenas em um nível espiritual. Em uma discussão no filme, ela disse ao marido sobre Wanda: “era para você fazer sexo com ela e amar só a mim”.

Michalina Wislocka

Wanda, dentro da casa, não vivia sobre as mesmas regras. Ela tinha um quarto separado (que só quem podia entrar era Michalina) e era a responsável pelas tarefas domésticas enquanto o casal trabalhava e estudava. Quando vieram os filhos, a coisa se agravou ainda mais. Esta história das crianças é bastante triste e foi bem retratada no filme. Após vários anos morando juntos, nenhuma das duas engravidavam, estavam desconfiadas de que Stach fosse estéril. Na vida real, ele usava o coito interrompido como método contraceptivo, mas ao saber que duvidavam sobre sua fertilidade — o que naquela época era bastante ofensivo e vergonhoso — fez questão de ir até o fim e engravidou Wanda.

Como Wanda, para a família e vizinhos, era apenas uma mulher que o casal estava ajudando por um período, não era uma boa ideia que ela aparecesse grávida sem ser casada. Ela quis abortar, mas Michalina a convenceu de que não e logo engravidou também. No filme não mostra, porém para seguirem com as gestações, as duas se mudaram para o interior e ficaram lá até os partos. Wanda teve um menino, Michalina uma menina. Para evitarem os rumores e as explicações desnecessárias, as crianças foram registradas e batizadas como gêmeos nascidos de Michalina e assim foram criados. Wanda era a babá e empregada, Michalina e Stach os pais ausentes.

Michalina Wislocka

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Wanda já estava sobrecarregada por cuidar das duas crianças e da casa quando começou a se afastar da amiga. Segundo a filha Krysia, Wanda gostava do ambiente doméstico porém não dava conta de tudo sozinha, além disso a menina sentia o desprezo da babá que dava mais preferência e atenção ao seu irmão. Stach, ainda atraído por Wanda, a propôs em casamento, mesmo que já fosse oficialmente com Michalina. Ela aceita planejando ir embora com ele e seu filho biológico. O filme não se aprofunda na relação de Wanda e Stach, mas é de se desconfiar que Stach também manipulava e controlava Wanda de modo que ela não percebesse que se encontrava presa em um relacionamento abusivo. Wanda tinha o desejo de ser amada tanto quanto achava que Michalina era, e por se sentir desprezada e apartada da relação, tomou a decisão de se afastar definitivamente da vida da melhor amiga.

Quando Michalina a viu fazendo as malas e percebeu o que estava acontecendo, se sentiu traída e bastante decepcionada, não tanto com Wanda, mas com Stach. Ela então revelou ao marido que sabia dos casos extraconjugais e das mais de trinta fotos guardadas de suas amantes nuas. Wanda desconhecia essa história e, ao saber, desistiu de partir com Stach, mas em seguida seguiu seu próprio caminho. Stach, que foi colocado contra a parede e expulso de casa por Michalina, foi embora naquele momento mesmo, porém antes, em uma cena bastante comovente, reuniu os dois filhos, que já tinham uns sete anos, e disse que de agora em diante eles não teriam mais pai, que não deveriam o procurar ou entrar em contato, e isso tudo, claro, por culpa de Michalina. Ele, de fato, nunca mais apareceu.

Michalina Wislocka

Com o encerramento dessa parte, apesar de ser tudo bastante triste, dá-se início a uma nova etapa na vida de Michalina Wislocka. Após a separação dos filhos com a partida de Wanda, Wislocka, já médica e pós graduada, se concentrou na carreira e viajou para o interior da Polônia em um novo trabalho. Este é um momento em que o filme peca ao ignorar a existência da filha, que fica sem aparecer e nem sequer ser mencionada até a vida adulta.

Nas entrevistas, Krysia conta que cresceu sem a presença constante da mãe, foi deixada aos cuidados de babás e da avó e também passou anos em hospitais pois vivia doente. Ela revela, inclusive, sobre a possibilidade de Wislocka ser autista com Síndrome de Asperger. A suspeita existe porque na época não se pensava nessa hipótese, mas Krysia é diagnosticada com esse espectro do autismo, assim como sua filha e neta. Sabendo que o comportamento e muitos atributos se assemelhavam aos da mãe, se supõe que ela também o tivesse.

Apesar do filme ignorar completamente a hipótese de Wislocka ser autista, a retrata com as características mais comuns do espectro, embora quem não saiba da suspeita, dificilmente faça a relação. Uma das dificuldades é a de se relacionar, de ter intimidade e de criar vínculos; mas uma vez feito, duram para sempre (ou até que algo grave aconteça — como foi com Wanda). Outra característica é a sinceridade extrema e a postura transparente. Wislocka não via o sexo como um tabu, falava dele abertamente e enfrentava de maneira franca e direta qualquer um que fosse de encontro com seus ideais.

Michalina Wislocka

Exposto o apagamento da filha, foi quando Michalina trabalhou como médica ginecologista em um hotel, que conheceu Jurek, um ex marinheiro, colega de trabalho, que havia viajado o mundo todo, se envolvendo com muitas mulheres diferentes, aprendendo, inclusive, sobre sexo tântrico e o prazer feminino. Jurek era casado porém isso não impediu que os dois se relacionassem por anos. Foi com ele que Wislocka descobriu que gostava de sexo sim e que era possível ter prazer nele sim. Faltava conhecer seu corpo, explorar as diversas formas de prazer, buscar atingir o orgasmo, e sobretudo, ter um parceiro com quem pudesse dividir esta intimidade; e Jurek foi esse homem. Em uma resposta inconsciente à alegria descoberta por Michalina após conhecer Jurek, ela passou a usar roupas mais coloridas e fluidas. Abriu mão das calças e camisetas e passou a usar saias de estampas floridas e tecidos esvoaçantes; além disso a personagem ganhou uma leveza e um carisma ainda maior.

Michalina Wislocka foi pioneira no tratamento da infertilidade e se dedicou aos estudos de crescimento assistido e do método in vitro. Durante a pós graduação, quis estudar sobre a citologia hormonal para se aprofundar sobre a menopausa, mas seu professor não se interessou por esse tipo de pesquisa, já que não atingia o interesse da maioria (leia-se: dos homens). Outro fato importantíssimo é que Wislocka também era uma grande defensora do controle reprodutivo com o uso de contraceptivos; e o que o filme ignora é que para conhecer suas eficácias, ela testou em si mesma, resultando em três gestações indesejadas. Duas foram frutos de transas casuais com homens irrelevantes e a terceira com um que até quis assumir o filho, mas tinha a expectativa de que ela se dedicasse às tarefas domésticas e à criação do bebê. Wislocka não tinha interesse em abdicar de sua profissão por conta da maternidade, tinha plena consciência da sua inaptidão para ser mãe, haja vista que sabia não estar fazendo um bom trabalho com a filha que já tinha; e portanto, decidiu pelo aborto nas três gestações.

Ela era ginecologista, e a achava que se uma mulher estivesse grávida, o filho deveria nascer, e por isso mesmo tinha um interesse tão grande em informar a todos sobre os métodos contraceptivos, a fim de que elas pudessem explorar sua sexualidade sem correr o risco de gerar um filho toda vez, tendo controle sobre seus corpos e escolhendo o momento ideal para serem mães, se assim o desejarem.

A ideia de publicar o livro A Arte de Amar já estava quase sendo abandonada mas, segundo é mostrado no filme, foi graças as mulheres que receberam seus conselhos, pacientes ou não, que pressionando seus maridos influentes conseguiram viabilizar a publicação do mesmo. Sua filha não fala nada a respeito disso nas entrevistas, no entanto é coerente acreditar que essa retribuição existiu mesmo. Seu livro foi um sucesso de vendas alcançando mais de 7 milhões de cópias vendidas e 13 edições ao longo de 40 anos; porém infelizmente ainda não foi traduzido para o português.

É fundamental questionar um roteiro que escolheu ignorar tantas partes importantes que construíram a história de Wislocka. Sabe-se que não é possível colocar tudo no filme e que deve-se fazer cortes, mas é interessante pensar que, mesmo sendo baseado no livro biográfico escrito por uma mulher (Violetta Ozminkowski), se o roteiro não tivesse sido assinado por um homem (foi escrito por Krzysztof Rak), talvez algumas das pautas femininas não teriam sido apagadas e o público poderia ter visto mais do controle psicológico e da possessividade do ex marido e menos da sugestão de bissexualidade; acompanhado melhor seus dilemas morais, sobretudo em relação à maternidade e aos abortos.

Michalina Wislocka faleceu em Varsóvia no dia 5 de fevereiro de 2005, aos 83 anos de idade devido a um ataque cardíaco. Deixou sua marca na história polonesa como a primeira sexóloga, autora de best-seller, e porta-voz pelos direitos reprodutivos das mulheres. Agora, com a biografia disponível na maior plataforma de streaming, Wislocka está ao alcance de pessoas que colhem os frutos de sua luta; e tendo contato com sua história de enfrentamento ao status quo e defesa da liberdade sexual da mulher, seu novo público poderá levar à diante sua trajetória e manter vivos seu nome e legado. Em uma fala do filme ela diz: “Eu sou a revolução sexual e eu estou chegando!” Obrigada por isso, Michalina.

Autora convidada: Lígia Maciel Ferraz é taurina com lua em peixes, ama animais descabelados e pessoas esquisitas. Ao longo dos anos, entre tantas variáveis, a escrita sempre se manteve constante.

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