Quando pegamos o encadernado suntuoso do quadrinho “Aurora nas Sombras“, nos deparamos com belas ilustrações em tons papéis, com a prevalência das cores azul e verde. A capa da edição, lançada no Brasil pela Darkside Books, traz uma pequena garota que parece perdida diante das folhagens de uma grande floresta.
Assim como a pequenina Arrietty, da animação “O Mundo dos Pequeninos”, do estúdio Ghibli, neste quadrinho temos uma protagonista que precisará aprender a sobreviver neste mundo gigante, estranho e assustador. Numa espécie de coming of age, a inocente e ingênua Aurora enfrentará traições, desafios e situações muito bizarras e nada convencionais! Não se engane pelos traços delicados do casal Marie Pommepuy e Sébastien Cosset – que assina como Kerascoët -, pois nesta fábula, escrita por Fabien Vehlmann e Marie Pommepuy, há uma mistura do universo onírico de “Alice no País das Maravilhas” com o nonsense dos filmes de David Lynch – e um aviso: a obra não é indicada para crianças devido o teor grotesco e violento retratado ao longo das páginas.
A história de “Aurora nas Sombras”
Logo no início da história de “Aurora nas Sombras“, temos um vislumbre da nossa doce e sonhadora protagonista: Aurora está sentada com seu amigo (e crush) Hector, tomando tranquilamente um chazinho, numa cena que remete à famosa passagem de Alice, de Lewis Carroll, com seu amigo Coelho. No entanto, um evento estranho e acidental começa a ocorrer: o mundo ao redor de Aurora parece estar desmoronando e dissolvendo.
Assustada, descobrimos, junto com Aurora, que ela e seus amigos viviam dentro do corpo de uma menina morta na floresta. Em outras palavras, o corpo da menina estava em um estado tão avançado de putrefação que os “convidados” foram obrigados a se retirarem. Creepy, não? Mas essa bizarrice não para por aí. Como resultado, Aurora e seus amigos se veem livres e perdidos numa floresta gigante e cercada de seres predadores e famintos e a partir deste momento que a jornada da nossa heroína começa. Será que Aurora, tão ingênua e inocente, conseguirá sobreviver diante de um mundo violento, obscuro e cruel?
Acreditando veemente em seus amigos, ela passa a procurar por uma nova residência e tentará, de todas as formas, mantê-los unidos e protegidos. No entanto, essa união não ocorre como planejado e a situação sai de seu controle. O que nós vemos a seguir são diversos acontecimentos bizarros e cenas que evocam as passagens nonsense dos filmes de David Lynch, despertando o pior entre seus amigos, como a inveja, o egoísmo, o rancor e a ganância – um despertar dos piores sentimentos que uma pessoa pode vivenciar e exteriorizar.
As mortes grotescas e as situações surreais que ocorrem em “Aurora nas Sombras” simbolizam o fim da infância e da inocência da protagonista, refletindo o pesadelo dela estar sozinha diante de num mundo inóspito e diferente dos finais felizes dos contos de fadas que ela almejava antes de ser expulsa do corpo da menina morta. A história nos faz lembrar da aterrorizante animação “Cat Soup” (original “Nekojiru-sou”), que, em poucos minutos, é capaz de dar um nó em sua mente por toda a bizarrice da jornada de dois gatinhos irmãos “fofos e inofensivos”.
A arte de Marie Pommepuy e Sébastien Cosset e a origem de “Aurora nas Sombras”
Os responsáveis pelos traços delicados que contrastam com o universo grotesco e excêntrico de “Aurora nas Sombras” é o casal de desenhistas conhecido como Kerascoët, composto por Marie Pommepuy e Sébastien Cosset. Sébastien Cosset nasceu em Paris e formou-se na faculdade de Artes Aplicadas, com a conclusão do curso técnico de “artista plástico do ambiente arquitetural”, com tal curso possibilitando o início da jornada profissional de sua grande paixão: as histórias em quadrinhos.
Já Marie Pommepuy nasceu em Brest e formou-se em Artes Gráficas em Paris. Concluiu seus estudos em ilustração médica e científica em Estienne e, ao conhecer Sébastien, ambos passaram a partilhar a vida e o sonho em comum, reunindo suas criações no mesmo ateliê. O casal adotou o nome Kerascoët e os dois começaram a trabalhar em diversos projetos. Além de ilustradora, Marie Pommepuy é a responsável pela ideia original de “Aurora nas Sombras“.
Em entrevista ao site The Comics Journal, ao ser questionada sobre a ideia da história de “Aurora nas Sombras“, Marie Pommepuy afirma: “Fiz muitos esboços. Eu sabia como começar a história. As primeiras dez páginas estavam bem claras na minha mente. Então, eu conheci Fabien Vehlmann e conversamos muito a respeito e isso ecoou no trabalho. É muito engraçado. Trata-se de uma história sobre depressão, mas de uma maneira engraçada. Ele [Fabien] é um cara muito divertido. Quando conversei com ele sobre a minha história, disse que não poderia desenhar, pois é muito deprimente. Mas quando mostrei os meus esboços e ele olhou, vi que estava rindo. E fiquei surpresa. Então, nós três começamos a trabalhar juntos“.
Sobre o estilo artístico evidenciado pelas cores da natureza, Marie afirma que o casal pesquisou muito, pois ambos queriam retratar as mudanças das estações do ano no decorrer da história.
Durante a mesma entrevista, o casal disse que não tem receio de desenhar histórias obscuras e que escolheram trabalhar com Fabien porque ele compartilhava várias ideias em comum. A respeito do significado da história de “Aurora nas Sombras“, Sébastien comenta que “é uma história sobre a infância, morte e muitas coisas. E inocência, eu acho”, e Marie diz logo em seguida “mas tem uma parte cômica. E você pode rir disso também“. Sébastien conclui: “É o nosso estranho senso de humor“.
A princesa em busca do resgate e as barreiras do patriarcado
No decorrer do quadrinho, o amadurecimento de Aurora é refletido diante de suas ações imprevisíveis. Se antes víamos a personificação de uma princesa – delicada, ingênua, previsível, solidária e preocupada com o bem-estar de todos os seus amigos -, agora Aurora canalizará todas as atrocidades que passarão diante de seus olhos e passa a proteger a si mesma, tornando-se cada vez mais mais consciente do amargo pesadelo da realidade.
Assim, ela deixa de acreditar nas pessoas e em todas as promessas que lhe são feitas, compreendendo sentimentos como egoísmo e rancor. Dessa forma, o “castelo de princesa” de Aurora vai se desmoronando nesta gigante floresta, que representa os medos que cada um carrega dentro de si, como já vimos no quadrinho “Floresta dos Medos“, de Emilly Carroll.
A história de “Aurora nas Sombras” remete ao processo de amadurecimento pelo qual todas pessoas vivenciam, através da vulnerabilidade e do aprendizado diante de perdas, traições e mentiras, mas o quadrinho gera uma reflexão, especialmente às garotas que crescem associando a imagem da mulher como frágil, delicada e que precisa da proteção e do amparo de um homem.
No início da narrativa, Aurora enxerga Hector como seu “príncipe”, que seria o responsável por assegurar sua proteção. Contudo, diante dos acontecimento que enfrentará, ela parece finalmente compreender que não adianta esperar pela proteção de ninguém. Entretanto, como é demonstrado ao final da história, parece que Aurora não consegue quebrar totalmente essa barreira patriarcal da proteção masculina, e após a leitura ficamos com as seguintes perguntas: será que algum dia Aurora reconhecerá sua própria força? Será que o final da história traz a motivação para o início de sua verdadeira libertação?
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A edição da Darkside Books
Com o título original “Jolies Ténèbres”, também conhecida internacionalmente como “Beautiful Darkness”, a graphic novel foi lançada pela primeira vez em 2009 e chegou ao Brasil somente neste ano, com edição da Darkside Books. A edição nacional possui capa dura e um formato maior que o convencional dos quadrinhos publicados pela editora (21,2 cm x 27,6 cm).
Com 96 páginas, a tradução ficou por conta de Maria Clara Carneiro e ao ser adquirido diretamente na loja da Darkside Books você leva de brinde um caderno de anotações exclusivo. Confira abaixo o vídeo mostrando detalhes da edição:
Indicada ao prêmio Eisner em 2015, “Aurora nas Sombras” é uma obra que vai encantar os apaixonados pelos verdadeiros e macabros contos de fadas, aqueles onde os finais felizes e as situações açucaradas passavam longe; é uma fábula bela e bizarra que proporciona reflexões sobre o amadurecimento diante de um mundo marcado pela crueldade e egoísmo, mas de uma forma completamente engraçada.
Aurora nas Sombras
Roteiro: Marie Pommepuy e Fabien Vehlmann
Arte: Kerascoët (Marie Pommepuy e Sébastien Cosset)
144 páginas
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Edição realizada por Gabriela Prado.