Gentleman Jack: as pálidas cores sobre uma lésbica futurista

Gentleman Jack: as pálidas cores sobre uma lésbica futurista

Baseada na figura histórica Anne Lister, “Gentleman Jack” aborda a “lésbica moderna” e tropeça na tentativa de fugir dos estereótipos das tramas LGBTQ+, trazendo um romantismo exacerbado sobre personagem e focalizando em demasia suas relações amorosas, que acabam ofuscando os extraordinários feitos de Lister.

Produzida em parceria entre a BBC e a HBO, “Gentleman Jack” estreou em abril desse ano e chegou ao fim em junho, contabilizando oito capítulos, divididos em exaustivos 60 minutos cada. A série já foi renovada para uma segunda temporada. E a seguir vamos analisar como o enredo tem sérios problemas que podem ser superados a partir de agora. 

Os diários de Anne Lister

Ambientada em 1832, a trama de “Gentleman Jack” começa com a volta da personagem principal, Anne Lister, a Halifex, cidade de West Yorkshire, na Inglaterra. Baseada em uma história real, tem como plano de fundo para seu desenvolvimento os 26 volumes de diários criptografados e trazidos à luz, pela primeira vez, através da professora Helena Whitbread.

Em 1988, tal professora lançouI Know My Own Heart(Conheço meu Próprio Coração, em tradução livre), que traz o primeiro volume dos diários de Anne. Outros volumes de suas memórias foram publicados posteriormente, além de um filme produzido em 2010. “Gentleman Jack” é um apelido jocoso atribuído a Anne pelo povo de Halifez, devido seus trejeitos, roupas e modos que eram vistos como “masculinos” e impróprios para uma dama.

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Apesar da personagem central ter uma capacidade de desenvolvimento incrível, o roteiro assinado por Sally Wainwright, não tem a força suficiente para manter a personagem, intitulada pelo site da BBC como a lésbica moderna, em foco absoluto. Sendo assim, acaba utilizando de histórias secundárias para movimentar a trama. Nessa tentativa curiosa, personagens do baixo claro, como empregados e campesinos, têm um destaque que soa forçado. Algumas dessas histórias apresentadas acabam em dois capítulos e outras tem um desenvolvimento maior durante a temporada. Em ambos os casos, roubam a cena e mostram algumas ranhuras sobre a história principal. A comoção e o apego acabam indo para os personagens mais simplórios.

Uma lésbica no século 19

Suranne Jones é quem interpretado Anne, tendo uma atuação de destaque, brilhando com sua performance, mesmo quando não tem nenhuma fala. Jones usa do artificio da quebra da quarta parede, comunicando-se diretamente com a espectadora em certos momentos, tornando a trama mais ágil  e interessante. Porém, esse recurso vai se perdendo com o desenrolar dos capítulos e é até emprestado para outra personagem, o que o torna sem sentido e sua utilidade questionável.

Um dos principais problemas de “Gentleman Jack” é quando Lister tem sua história misturada com a outros personagens. Os núcleos do menininho que perde a perna, ou do camponês que sofre com o alcoolismo do pai, por exemplo, fazem com que a personagem principal perca completamente o seu charme, ressaltando o pior de Lister na série: uma pessoa egoísta, solitária, prepotente e que não tem nenhum interesse com a mudança social galopante do século 19. Contudo, é muito fácil se envolver com os diversos personagens, entretanto, Anne é pintada com cores pálidas, em uma combinação confusa, fazendo com que ela perca seus atrativos. Ela não tem o brilho que poderia ter em sua própria série. 

Suranne Jones como Anne Lister
Surane Jones caracterizada para a série e um quadro da real Anne Lister. (Imagem: Metro News)

O lugar comum do drama LGBTQ+

Representada como alguém que deseja uma companhia acima de tudo, não importa com quem quer que seja, Anne acaba se afastado na série da personagem real. Descrita por seus biógrafos como uma intelectual, com tino para os negócios e atenta para relacionamentos que poderiam melhorar sua posição social, na produção da HBO + BBC, ocorre o senso comum: Lister se aproxima do enredo clichê da lésbica sofrida e não correspondida. 

Podemos observar essa romantização da personagem, por exemplo, na cena que Anne conhece a rainha da Dinamarca e acaba confessando que se veste de preto “em luto por seu coração partido“. Segundo o site Mental Floss, a escolha da cor estava muito mais alinhada à concepção da época de que preto era uma cor masculina, do que de um romantismo cego e piegas. Em tradução livre:

[…]Seu estilo pessoal enfatizava a função sobre a forma. […] Ela ainda desafiou as convenções ao usar várias e várias roupas pretas. Mesmo que fosse vista como uma cor masculina na época, Lister encheu seu guarda-roupa com corpetes pretos e casacos longos. Ela sentiu que as vestes escuras cumprimentavam seu físico magro“.

Anne Lister

Suranne Jones

HBO
Na sequência, o diálogo com a rainha da Dinamarca sobre sua a escolha de seu vestuário. Imagens: Gentleman Jack (HBO / reprodução)

Lister é recriada como uma mulher à merce de suas namoradas, fugido de decepções amorosas e que tem como principal foco seus romances não correspondidos. Contrário a essa “fragilidade” que a personagem é envolta, segundo o site da própria BBC, Anne viveu grandes amores, mas também foi extremamente racional e focada em seus próprios interesses ao escolher seus alvos românticos:

“Ainda que estivesse apaixonada, tinha também um lado calculista e implacável, alimentado pelo sonho de um dia ser rica. O romance com Raine (sua primeira namorada) – que, no futuro, herdaria uma fortuna – também era um investimento, uma possibilidade de ela desfrutar da vida da alta sociedade sem ter de se casar com um homem.”

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Gentleman Jack: entre erros e acertos

A série erra ao não retratar Anne como a mulher pioneira que era, misturando histórias menores com a trama principal e usando o sofrimento das relações LGBTQ+ como pauta dos relacionamentos de Lister. Mas também acerta ao discutir o machismo e trazer personagens femininas com personalidades fortes e mais atuantes no enredo que os do sexo oposto.

Um grande destaque é a excelente Gemma Whelan (a Yara Grejoy, de Game of Thrones) que dá vida a Marian Lister, a irmã mais nova de Anne, que é constantemente inferiorizada pela irmã. Ela acaba tendo um desenvolvimento sufocado em na série, apesar de ser muito mais atenta as mudanças sociais ao seu redor que Gentleman Jack, e ter um grande potencial de ser um contraponto a personagem principal.

Outra personagem de destaque é a tia Anne, interpretada por Gemma Jones, uma senhora amorosa, muito lúcida da sexualidade da sobrinha e acolhedora sobre seus planos e aventuras. Tal personagem é responsável por cenas onde Anne é mais afável, além de representar bem como a família Lister não se contrapunha a sexualidade da herdeira de Shibden.

Gemma Whelan interpreta Marin Lister em Gentleman Jack

Gemma Jones interpreta a Tia Anne em Gentleman Jack
Gemma Whelan e Gemma Jones nas filmagens de “Gentleman Jack”. (Imagens: HBO / reprodução)           
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Renovada para uma segunda temporada, “Gentleman Jack” necessita repensar a uma hora de duração de seus capítulos, o que acaba tornando a história enfadonha. Outro ponto interessante que poderia ser revisto é a construção da história por Wainwright. Anne Lister por si só é uma persona que tem muito a oferecer e a inserção de outras histórias em paralelo com a sua, enfraquece o enrendo e não faz sentido em um olhar macro da série. Por último, seria interessante se na segunda temporada os clichês de sofrimento e dor fossem postos de lado, dando lugar a cientista, empresária e viajante, além de alguém que tem relacionamentos amorosos bem sucedidos.

A título de curiosidade, vale a pena conferir o site oficial sobre a vida de Lister, que traz trechos de seus diários, sua biografia e um mini documentário narrado por Helena Whitbread, além de suas décadas de estudos sobre a aristocrata, empresária e alpinista que ousou questionar a posição da mulher e seus desejos na agitada sociedade inglesa do século 19.


Edição realizada por Isabelle Simões.

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Nasci, passei a infância vendo filmes de princesa até estragar a fita, cresci e fiz um TCC sobre Um Príncipe em Nova York e hoje tenho a Agnès Varda no papel de parede do celular e um processo que prova que na verdade ela e o Scorsese são meus pais biológicos.
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