Mulheres nos Quadrinhos: Joëlle Jones

Mulheres nos Quadrinhos: Joëlle Jones

A quadrinista Joëlle Jones nasceu em Boise, no estado de Idaho, em 1980. Como em vários outros casos de quadrinistas e ilustradoras, a imaginação artística de Jones começou na infância quando, aos 8 anos, ela teve contato com exemplares de “Punisher Comics” roubados do irmão e dos amigos dele. A partir daquele primeiro contato, passou a mergulhar no universo quadrinístico e, por conseguinte, a projetar sua carreira como ilustradora: “desde então eu me viciei [em quadrinhos] e não desenhei nada além de quadrinhos depois disso”.

Joëlle Jones se mudou para Portland, Oregon, no intuito de cursar Belas Artes no Pacific Northwest College of Art. Para se manter durante esse período, trabalhou como bartender e em nightclubs, mas, por questões financeiras, acabou abandonando o curso no terceiro ano e conciliado sua carreira como ilustradora freelancer à de bartender. Em entrevista concedida à Tara Bennett, da SYFY WIRE, a artista afirma que conseguiu seu primeiro trabalho ao apresentar seu portfólio para David Mack (trabalhou em publicações como “Kabuki”, “Demolidor” e “Alias”) numa convenção local, em Portland.

Joelle Jones
Joëlle Jones. Imagem: reprodução

Satisfeito com as ilustrações de Joëlle Jones, Mack intermediou o contato entre ela e Diana Schutz, editora da Dark Horse Comics na época, o que resultou em sucessivas propostas de trabalho para a jovem artista. Esse foi o primeiro passo para que Jones ascendesse à condição de quadrinista profissional.

Joëlle debutou na Dark Horse Comics ao ilustrar a antologia “Sexy Chix” (2006). Logo em seguida, ela ofertou seus traços para o romance em quadrinhos “12 Reasons Why I Love Her” (2006), escrito por Jamie S. Rich. A parceria com Rich se revelou importante em seu itinerário artístico. Nestes 13 anos de carreira, a quadrinista se consagrou através de ilustrações marcantes para outras editoras, como ONI Press, DC Comics, Vertigo, Marvel Comics e New York Times.

12 Reasons Why I Love Her
Cena de “12 Reasons Why I Love Her” (Imagem: reprodução)

Os trabalhos em destaque de Joëlle Jones

A arte de Joëlle Jones é límpida e o cuidado com a ilustração de mulheres é evidente. Entre os trabalhos mais marcantes da artista, é possível destacar as ilustrações de personagens como Superman, Batman, Mulher-Gato, as capas de “Mockingbird” e seu projeto pessoal como escritora e ilustradora de “Lady Killer“, lançado nos EUA em 2015 e no Brasil em 2019.

Joëlle Jones desenhou “Superman: American Alien #3, Parrot” (2016), de Max Landis. No referido volume, ela ilustrou a aventura do jovem Clark Kent que, após um acidente de avião no meio do oceano, encontrou abrigo num navio cujos jovens tripulantes preparavam uma festa surpresa para Bruce Wayne. Confundido com o aniversariante, Clark aproveita um dia com muitas bebidas, sexo e reflexões sobre a vida.

“Eu amo desenhar mulheres mais do que qualquer coisa. Roupas. E eu amo desenhar veículos como carros e armas – coisas mecânicas. Há um monte de coisas que eu adoro desenhar. Há coisas específicas que eu odeio desenhar.”

Joëlle Jones (Via: street roots)

Superman: American Alien, Joëlle Jones
“Superman: American Alien #3, Parrot” (Imagem: DC / reprodução)

Joëlle Jones participou como ilustradora de capa das oito edições da série “Mockingbird, que foi escrita por Chelsea Cain e ilustrada por Kate Niemczyk. As edições são desdobramentos do projeto All New, All different Marvel idealizado pela Marvel. Trata-se do capítulo marcante do renascimento do universo Marvel.

Batman, o super-herói criado por Bob Kane e Bill Finger em 1939, também recebeu contribuições da artista. Joëlle Jones é celebrada por ser a primeira mulher a ilustrar a capa e a conteúdo da octogenária saga do Homem Morcego. Seu trabalho, em 2018, foi realizado em parceria com o escritor Tom King. Anteriormente, em 2014, Jones havia colaborado com a ilustração de “Batman ’66 #10”, “Cleo-Bat-Ra”, escrito por Jeff Parker.

Para alegrar os corações dos fãs de Batman e da quadrinista Joëlle Jones, a CCXP anunciou formalmente a participação da artista no evento em comemoração aos 80 anos do personagem mais sombrio do universo da DC – bem, talvez o segundo, se considerarmos Rorschach. Na ocasião, Joëlle Jones participará, no dia 5 de dezembro (quinta-feira), de um painel comemorativo intitulado “Batman especial 80 anos” ao lado de outros participantes. No sábado, dia 7 de dezembro, ela integrará o painel “Batman 80 anos a Celebração” e da “Master Class roteiro e arte”.

Mockingbird, Chelsea Cain
Capa de “Mockingbird” feita por Joëlle Jones. Imagem: Marvel / divulgação

A Mulher-Gato é provavelmente uma das personagens mais populares das histórias em quadrinhos. Desde seu debute em Batman #1 (1940), Joëlle Jones foi a primeira mulher a desempenhar a dupla função de escrever e ilustrar uma série em 2018 – a produção é colorida por Laura Allred.

A narrativa produzida por Joëlle Jones, um spin-off de Batman, apresenta a Mulher-Gato como uma personagem imperfeita e conflituosa, uma tendência interessante do universo DC contemporâneo. Além de escrever e ilustrar Mulher-Gato, Jones também criou o design da estátua da personagem para a linha de colecionáveis da DC (a escultura ficou por conta de Jack Mathews).  

Estátua da Mulher-Gato feita por Joëlle Jones
Estátua da Mulher-Gato feita por Joëlle Jones. Imagem: DC / divulgação

Outra informação digna de nota é que Joëlle Jones é a primeira mulher a assumir o comando da DC Cover Girls Statue, uma série de colecionáveis. Entre as personagens projetadas por Joëlle estão “Harley Quinn” (2018), “Supergirl” (2018), “Mulher Maravilha” (2019) e “Huntress”, que será lançada em dezembro de 2019.

Catwoman de Joëlle Jones
Catwoman por Joëlle Jones. Imagem: divulgação

Lady Killer: uma assassina de aluguel que incomoda muitos homens

Entre suas produções até o momento, talvez seja “Lady Killer” (2015 – 2017) a mais interessante do ponto de vista das representações sobre as mulheres. Publicada originalmente pela Dark Horse Comics e lançada no Brasil em julho de 2019, com tradução de Raquel Moritz pela Darkside Books, “Lady Killer” é o terceiro trabalho de Jones em parceria com Jamie S. Rich. De forma sucinta, é uma produção ambientada na década de 1950/1960 que brinca com o estereótipo da mulher mãe/esposa. 

Josie Schuller, a personagem protagonista da HQ, é uma trabalhadora do lar e uma revendedora de produtos destinados, segundo os estereótipos, a outras mulheres. Contudo, ela esconde outro ofício que dissolve as costumeiras representações de doçura maternal e do cuidado do lar que aquela sociedade atribuía às mulheres: Schuller é uma formidável assassina de aluguel.

Jamie S. Rich e Joëlle Jones
Jamie S. Rich e Joëlle Jones. Imagem: reprodução

“Lady Killer” foi um projeto idealizado por Joëlle Jones, que desejava histórias com mais ação, tal qual ela experimentava em “Punisher” em sua juventude. Segundo a quadrinista, ela intentava escrever algo diferente daquilo que era feito até então. Para tanto, aproveitou de sua própria experiência como mulher em uma família cujos papéis eram bastante definidos, e do seu interesse por publicidade e ilustração vintage da década de 1940 até 1960.

Esta experiência estética cria uma ambientação subversiva na medida em que procura reimaginar a sociedade americana que esperava das mulheres a condição de seres dóceis. Schuller, a assassina, é duplamente astuta: assassina perfeita e manipuladora das representações que garantem que seu cruel ofício não seja descoberto por um mundo que esperava dela, uma mulher, a suavidade de uma mãe e a submissão de uma esposa.

O fato de representar uma mulher que rompe com os estereótipos atrelados a uma mãe de família fez com que ela fosse chamada nas redes sociais e convenções como “inimiga dos homens”. Em convenções, ela foi questionada por homens fãs de quadrinhos: “Então, onde estão as ilustrações do cara matando a garota?”. 

Lady Killer, Joëlle Jones, Darkside Books
Cena de “Lady Killer”, lançada no Brasil pela Darkside Books

Considerações desse tipo, comuns em um ambiente conservador – o que é bastante bizarro, já que parte da história das HQs foi marcada pela censura e pelo preconceito –, expressam a vontade de normatizar a imaginação artística das mulheres, uma recorrência histórica que, em nossos dias, se alimenta da saudade do passado idealizado e de formas cridas como fixas, isto é, tradicionais, de mundo.

Leia também:
» [LITERATURA] Úrsula: literatura brasileira, romance, escravidão e abordagem sensível
» [QUADRINHOS] Mulheres nos Quadrinhos: Nair de Teffé
» [QUADRINHOS] Por que o trabalho feminino nos quadrinhos é tão desvalorizado?

Certamente esses episódios são emblemáticos de uma época que ainda não tolera a possibilidade de personagens femininas distintas das heroínas em sua forma mais “tradicional”. Talvez uma mulher assassina incomode mais do que um homem, menos pelo ofício do que pelo gênero. “Lady Killer” subverte porque sua personagem transita entre mundos que rompem com a representação unidimensional da mulher que historicamente foi imposta, mas que, no cotidiano das mulheres, nunca foi uma realidade, já que – é bom dizer – ninguém é unidimensional.

Os detratores de Joëlle Jones, certamente um grupo pequeno diante daqueles que reconhecem sua imaginação artística, muitas vezes são sujeitos homens de um mundo geek que espera que as personagens das histórias em quadrinhos se enquadrem nas rotas mais tradicionais, o que, certamente, significa um horizonte de expectativas artisticamente reduzido na medida em que a arte, de maneira geral, prescinde da provocação, da problematização da vida, das contradições e das crises para que seu tecido, em nosso caso páginas de quadrinhos, se expresse de forma rica.

“Lady Killer” não é apenas uma narrativa escrita por uma mulher e que tem uma personagem feminina que destoa do imaginário tradicional. Isso não seria suficiente para fazer da obra algo digno de nota. Trata-se também de uma produção feita por uma mulher dotada de uma imaginação artística sofisticada e que é capaz, a partir de seu lugar social e de suas experiências de vida, de tecer uma narrativa inteligente e uma estética surpreendente.


Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

Jaqueline Cunha é Pesquisadora de Histórias em Quadrinhos de autoria feminina, Mestra em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás, graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual de Goiás e membro da Associação de Pesquisadores de Arte Sequencial (ASPAS). Jaqueline também se interessa por temas relacionados a Literatura, cinema e estudos acerca dos feminismos, identidades de gênero e sexualidade.
Veja todos os textos
Follow Me :