Um mundo distópico em que as máquinas superaram a humanidade e agora somos perseguidos por elas sem misericórdia. Parece familiar? Este é o cenário do mangá cyberpunk Blame!, disponível na Netflix. A princípio, evocando uma mistura de Matrix com Blade Runner, seu mundo distópico, sombrio e insalubre pode não parecer exatamente original para uma plateia ocidental. Mas antes de julgá-lo pelo critério de originalidade, é mais o timing do lançamento desta adaptação que parece atrasado.
Lançado no final dos anos 90, o mangá original de Tsutomu Nihei com certeza teria se beneficiado se tivesse sido adaptada na mesma época da trilogia das irmãs Wachowski. Mas para além do conflito homem versus máquina, este mangá adiciona alguns elementos interessantes ao seu mundo, que valem a conferida.
Leia também >> Diretoras Japonesas: protagonismo feminino e cotidianidade
A começar pela Cidade, uma estrutura urbana que, ao que tudo indica, teria sido planejada e construída por humanos muitos anos atrás. Totalmente automatizada, a Cidade produzia tudo que era necessário para seus habitantes. No entanto, graças a um vírus, os processos automatizados fugiram do controle e seus algoritmos começaram a replicar e a expandir sua infraestrutura indefinidamente.
Nessa expansão urbana sem fim, os humanos perderam a capacidade de interagir e de controlar sua tecnologia. Pior ainda, todos os humanos foram considerados residentes ilegais, entidades a serem caçadas e erradicadas. Mas tudo isso ocorreu séculos, milênios, eras atrás. Ninguém sabe ao certo.
Muito além da Matrix
Em meio a esse mundo inóspito e sombrio de Blame!, a humanidade se refugia em “vilas” pequenas que permanecem à margem da fiscalização das máquinas – grandes construções, esquecidas em subníveis dessa estrutura urbana infinita. Entre os grupos de humanos que restam, não se sabe muita coisa além do fato de que se aventurar para além das vilas é extremamente perigoso.
Os recursos são escassos, a tecnologia à disposição já é antiquada (limitada a poucos trajes que auxiliam exploradores quando alguma expedição extra-vila se faz necessária). A fome paira como uma ameaça à espreita. E é isso que motiva a jovem Zuru e seu grupo de amigos a sair escondido dos mais velhos, em busca de comida e suprimentos.
Leia também >> 25 anos de Evangelion: o que mudou e o que continua igual?
No meio da empreitada, eles são atacados pelos guardas de segurança – máquinas de caçar e matar humanos – e são salvos por Killy, um humano solitário e um tanto peculiar. Ele vaga em busca de um humano portador do gene Net Terminal. O portador deste gene seria capaz de se conectar à super inteligência que gerencia a Cidade e devolvê-la ao controle humano. Mas aparentemente este gene está quase extinto e quase não há mais ninguém que o carregue – ou mesmo que saiba ou lembre o que ele é.
Humanidade sem memória
Este é essencialmente o ponto-chave de Blame!. Para além de um cenário pós-apocalíptico tenebroso, bem ao estilo cyberpunk, em que a humanidade corre o risco de ser extinta, não parece sobrar nenhum conhecimento do que havia antes. Os humanos que restam não se lembram de nada e por isso mesmo, não aspiram a nada. Não há esperança de um “retorno ao que era antes”, pois nenhum personagem do filme seria capaz de dizer o que é isso.
Mesmo para o público, não fica claro a qual “antes” estaríamos nos referindo. Ao contrário de muitas narrativas distópicas, o ponto de partida desta apocalipse não é o mundo atual que conhecemos, e sim um mundo alternativo, muito mais tecnológico e utópico. Por isso, ao levar Zuru e outros membros da vila de Electro-fishers em sua busca por um gene esquecido, Killy transfere para sua busca pontual aquilo que na verdade é a verdadeira busca da humanidade na trama, sua memória.
Universo > personagens
Em Blame! a trama do filme coloca à frente do drama o cenário e a empreitada pela salvação da humanidade, muito a detrimento dos próprios personagens. As tramas individuais existem, mas são pinceladas ao longo do filme sem tomarem muito espaço.
Killy, que é o protagonista original do mangá, tem um papel coadjuvante no filme. Assim, quem carrega a maior parte do apelo e da bagagem emocional do longa é Zuru, a líder do grupo de jovens cuja empreitada abre o filme. No caso dela, uma personagem coadjuvante no mangá que assume a primeira fila no anime.
Leia também >> Representatividade e Sailor Moon: agradeça ao anime dos anos 1990!
Neste caso, pode-se dizer que essa troca de protagonistas foi um “crime” – em termos de adaptação literária – que compensou no final. No entanto, a relação de Zuru com sua irmã Tae, embora com pouco tempo de exposição, convence a ponto de alimentar o clímax emocional da trama.
Já Killy, com sua personalidade lacônica, preenche bem o papel secundário da trama, ao mesmo tempo que se revela promissor para arcos futuros (talvez?). Porém, sua companheira e co-protagonista dos mangás, Cibo, ganha um destaque a mais, mesmo sendo encarnada na maior parte do tempo por uma cabeça mecânica desprovida de corpo. Em seguida, o diálogo entre ela e Zuru, enquanto o resto do grupo dormia, é o mais marcante do filme.
Leia também >> A evolução da representação feminina na ficção científica audiovisual
Assim como Matrix e Blade Runner, a escolha é por colocar o universo como protagonista da saga. Alguns fãs da obra original sentiram falta das histórias e dos dramas dos personagens. Outros creditaram o diretor, Hiroyuki Seshita, pela escolha acertada. De qualquer forma, Blame! é um filme que arca com suas seleções de maneira convicta, entregando um arco dramático simples, porém convincente. E no fim, nos dá um cenário e personagens promissores para que talvez mais episódios desta saga venham para as telas um dia.
Edição e revisão por Isabelle Simões.