O racismo estrutural em “Little Fires Everywhere”

O racismo estrutural em “Little Fires Everywhere”

A minissérie Little Fires Everywhere, lançada no Brasil pela Prime Vídeo, é uma adaptação do best-seller homônimo da autora estadunidense Celeste Ng, que conta com um elenco de peso como: Elena Richardson (Reese Witherspoon), Mia Warren (Kerry Washington) e Bill Richardson (Joshua Jackson) e se propõe a discutir o racismo estrutural e as relações raciais, além de também debater temas como homofobia, sexismo e maternidade.

AVISO: Esse texto contém spoilers

O contato com o Outrem…

Para Freud, a diferença que vemos no outro, não diz respeito somente a ela, mas também ao desconhecimento que temos dentro de nós. Aliás, podemos ver isso no primeiro encontro das protagonistas de Little Fires Everywhere, onde a temática principal surge, evidenciando a tensão e a disparidade existente entre as duas durante toda a série.

Mia é uma mulher negra, artista, anárquica, mãe solo, sem nenhum dinheiro. Ela não tem uma residência fixa e dorme dentro de um carro com a sua filha. Sua chegada à cidade gera um visível desconforto na comunidade local, principalmente em Elena, que é uma mulher branca de classe alta, jornalista, sistemática, casada e mãe de quatro filhos.

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Mia Warren (Kerry Washington)
Mia Warren (Kerry Washington) em Little Fires Everywhere. Imagem: Hulu/divulgação

Conforme a proximidade entre as duas e suas famílias vai crescendo, mais visível fica o contraste entre as suas realidades e mais clara fica a desigualdade que está sempre presente na série, tanto em âmbito social através da exclusão vivida por negros em uma sociedade exclusivamente branca, quanto no econômico através das escolhas feitas mediante as necessidades de sobrevivência. Tal fator evidencia um racismo estrutural que sempre acontece de forma sutil ao mesmo tempo em que escancara as relações de poder existentes na sociedade.

Elena e a branquitude em Little Fires Everywhere

Quando olhamos para Elena vemos uma mulher que faz muito por sua comunidade, assim como a sua família também, já que foram eles que lutaram por uma escola inclusiva. A filha de Elena namora com um rapaz negro e a própria Elena empregou uma mulher negra que passava por um momento difícil. Portanto, todas essas atitudes são de pessoas boas, sem preconceitos, até mesmo demonstram um interesse de luta por igualdade. No entanto, quando olhamos mais atentamente, o que impulsiona essas atitudes de Elena, na verdade, é um sentimento de caridade, como se fizesse um favor ao se relacionar com negros.

Portanto, isso fica claro quando percebemos que Elena não tem intenção de conhecer e se aprofundar na vida dos poucos negros que a cerca. Por exemplo, quando Pearl (Lexi Underwood), filha de Mia, visita a casa de Elena e encontra o namorado da filha dela, Elena diz que os dois tem muito incomum e podem ficar conversando, reproduzindo a ideia – tão intrínseca na construção do racismo estrutural – de que negros não possuem individualidade. Igualmente, Elena não vê problema em seu ciclo social ser formado majoritariamente por pessoas brancas, como no caso do clube de leitura. Isso para ela é natural.

Elena (Reese Witherspoon) e a branquitude em Little Fires Everywhere.
Elena (Reese Witherspoon) com seus filhos. Imagem: Hulu/divulgação

Outro ponto relevante é o discurso cada vez mais frequente: a meritocracia. Há uma cena na série que ocorre em um jantar familiar, onde Elena e sua família discutem o tema da redação para Yale, que será escrever sobre situações difíceis ou de discriminação que o candidato passou. Entretanto, a família de Elena se sente “injustiçada” pela escolha do tema, afinal que culpa ela e sua família podem ter se não enfrentaram dificuldades?

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Observando as atitudes de Elena, podemos perceber que sua bondade e interesse pelos problemas sociais se limitam a sua vivência, como se sua crença fosse a única forma que a vida pode ser vista. Sua bondade é seletiva ao que ela julga correto sem levar em consideração o contexto do outro, sem considerar que as pessoas não possuem as mesmas oportunidades ou tiveram as mesma escolhas que ela.

O que vemos em Elena de Little Fires Everywhere não é um pessoa que é conscientemente racista, ela não é uma defensora da supremacia branca, o seu racismo não vem de uma intencionalidade consciente e sim de uma construção social, de alguém que é incapaz de perceber a discriminação automática que pratica e de questionar o privilégio que usufrui. Dessa maneira, Elena considera seus privilégios como méritos por fazer boas escolhas, não uma posição adquirida em uma relação de exploração que surgiu séculos antes dela.

Racismo estrutural em Little Fires Everywhere.
Cena de Little Fires Everywhere. Imagem: Um Filme Me Disse/reprodução

A personagem de Reese Witherspoon vem de uma família de classe alta, o que lhe possibilitou fazer sempre as melhores escolhas. E apesar da Mia não ter tido uma vida extremamente difícil em sua juventude, é nítido durante a série que Elena teve um caminho repleto de escolhas, se não sempre fáceis, como a questão da maternidade e vida profissional. Pelo menos, tais escolhas não eram limitadas pela sua posição social, raça ou orientação sexual. Aliás, toda essa tensão racial e social vai crescendo até o preconceito acabar finalmente tomando forma em uma tentativa de Elena punir Mia, como uma maneira de colocá- la em seu “devido lugar”.

Por fim…

O que vemos em Little Fires Everywhere é como a branquitude que, se por um lado, não deseja voltar a escravizar os negros e até mesmo busca uma sociedade mais inclusiva, por outro, ainda esbarra na falta de autocrítica para entender a extensão dos seus privilégios e combater de frente a desconstrução do racismo estrutural que proporciona esse sentimento de superioridade. Esse fato, mesmo que inconscientemente, impede as relações de igualdade e imputa um sentimento de caridade ao se relacionar com outras raças. E então, talvez, assim como Elena, poderemos entender nossos erros de caráter e conduta e fazer o caminho de volta.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

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