A Vida Depois do Tombo: Karol Conká antes, durante e depois do BBB

A Vida Depois do Tombo: Karol Conká antes, durante e depois do BBB

Quando o comediante Nego Di foi eliminado do Big Brother Brasil 21, recebeu do apresentador Thiago Leifert a notícia de que havia quebrado não um, mas dois recordes: sua taxa de rejeição fora a maior entre todos os participantes da história da franquia no Brasil e no mundo. Uma semana depois, sua colega de confinamento Karol Conká recebeu a mesma notícia. Rapper com uma carreira consolidada, Karol saiu da casa com 99,17% dos votos contra os 98,76% de Nego Di. Disponível no Globoplay, a série documental A Vida Depois do Tombo procura explicar a rejeição à cantora e responder à pergunta: o que acontece do lado de fora da “casa mais vigiada do Brasil”?

O documentário é a peça mais importante de um esforço da Globo para recuperar a carreira de Karol, abalada por sua passagem pelo BBB. Antes do lançamento da série, a rapper já tinha dado entrevista para o Fantástico e inaugurado o retorno dos ex-BBBs ao Domingão do Faustão, entre outras cortesias que, diga-se de passagem, não foram estendidas a todos os participantes com alto índice de rejeição.

Karol Conká em cena de A Vida Depois do Tombo
Karol Conká em cena de A Vida Depois do Tombo | Imagem: divulgação

Entretanto, A Vida Depois do Tombo é o elemento mais sincero e abrangente da “operação passa pano”. A série tenta passar a limpo a experiência de Karol no BBB e a forma como as vidas da cantora e de sua família foram impactadas.

Embora falhe em muitos aspectos, a série levanta questões a respeito de como a cantora e o público foram igualmente afetados por seus próprios traumas na hora de interpretar o que estava acontecendo na casa. E deixa também uma questão: o quanto da crítica a Karol foi válida e o quanto foi só fachada para racismo e misoginia?

Pipoca e camarote

Antes de falar do documentário em si, é importante entender como chegamos em A Vida Depois do Tombo. O Big Brother Brasil teve sua primeira edição em 2002, na Rede Globo. O vencedor foi o dançarino Kléber de Paula, conhecido como Bambam. Ao longo dos anos seguintes, o programa se tornaria sucesso de público e serviria de trampolim para personalidades que vão desde a apresentadora Sabrina Sato ao ex-deputado federal Jean Wyllys. Porém, nos anos de 2010, o reality queridinho do diretor Boninho começaria a patinar na audiência.

Após o fracasso da edição de 2019, a emissora resolveu dar uma bagunçada na estrutura do programa e dividiu os participantes em dois grupos: pipoca, composto por participantes anônimos, e camarote, integrado por famosos. Com uma ajudinha da quarentena imposta pelo novo coronavírus, o BBB 20 foi um sucesso e a nova fórmula foi repetida no BBB 21.

Mosaico de participantes do BBB21
Mosaico com os participantes do BBB21 | Imagem: divulgação

Assim como Nego Di, Karol entrou no programa do lado camarote. A lista de convidados famosos contou também com os atores Carla Diaz e Lucas Penteado, a influencer Camilla de Lucas, a youtuber ViihTube, e os cantores Pocah, Rodolffo, Projota e Fiuk (que também é ator e filho de Fábio Júnior).

Impactados pelo sucesso do BBB 20, os participantes da nova edição procuraram replicar estratégias que deram certo dentro e fora da casa. Assim como a cantora Manu Gavassi, fenômeno de mídias sociais da vigésima edição, Karol apostou em looks marcantes para serem repercutidos no Instagram e vídeos prontos para todos os seus momentos na casa, da liderança ao paredão.

Manu Gavassi, do BBB20
Manu Gavassi fez história com sua estratégia de mídias sociais no BBB20 | Imagem: divulgação

Dentro da casa, os competidores elevaram à enésima potência discussões fortes do BBB 20, como o machismo descarado dos “chernoboys” e o debate racial levantado pelo ator Babu Santana. Fiuk, por exemplo, virou piada na internet por ter feito um “curso de desconstrução” antes de entrar na casa e chorar em frente a participantes negros por ser um homem branco privilegiado.

O cenário parecia perfeito para Karol Conká brilhar. Afinal, a cantora é uma mulher negra versada em discussões de raça, gênero e sexualidade. Suas letras falam de empoderamento e um de seus projetos mais recentes era um programa de TV sobre sexualidade feminina para o canal GNT com a ginecologista e ex-BBB Marcela McGowan.

Mas, afinal, o que deu errado?

O tombo

Os comentários de Karol Conká chocaram o público da cantora ainda nos primeiros dias de programa. Conversando com Nego Di e a psicóloga e DJ Lumena, a rapper afirmou que a participante Juliette poderia “virar uma chavinha” e acusar de assédio algum dos homens da casa. A advogada e maquiadora paraibana também foi alvo de comentários xenófobos de Karol, que justificou seu incômodo com o comportamento da outra participante com o fato de ser curitibana e, portanto, mais bem educada.

Além dos ataques a Juliette, Karol também acusou Carla Diaz de estar dando em cima de Arcrebiano, ou Bil, participante do grupo Pipoca com o qual ela se envolveu. Quando o relacionamento com o modelo acabou, a cantora empreendeu uma campanha de desmoralização contra o participante na casa e foi acusada de abuso psicológico. O impacto no bem-estar emocional de Arcrebiano foi tanto que a mãe do modelo fez mutirão para tirar o filho da casa quando ele foi ao paredão.

Cena do documentário A Vida Depois do Tombo
Os participantes Arcrebiano e Carla Diaz se recusaram a participar do documentário | Imagem: divulgação

A relação com Carla e Arcrebiano é um dos temas levantados em A Vida Depois do Tombo. Karol admite ter inventado o interesse da atriz por Bil. Afirma que acreditava que seu relacionamento com o modelo tinha mais leveza e pede desculpas a ambos. Porém, nem Carla, nem Arcrebiano aceitaram participar da série.

No caso de Juliette, as coisas são um pouco mais complicadas e colocam uma importante questão: é justo fazer um documentário como A Vida Depois do Tombo com o BBB 21 ainda no ar? Vencedora do reality, Juliette sequer teve a chance de recusar um convite. Afinal, as filmagens começaram assim que Karol saiu da casa e a série foi lançada antes mesmo da reta final do reality. Aliás, os comentários preconceituosos e o bullying contra a maquiadora mal aparecem no documentário.

Mas o principal relacionamento de Karol na casa por trás dos mais de 99% de rejeição não foi nem com Carla, nem com Bil, nem com Juliette. A indignação do público foi alimentada pela forma como a cantora tratou Lucas Penteado.

O ex-ator de Malhação gerou inimizades dentro da casa e críticas fora dela por seu comportamento nas primeiras festas depois de beber. Tudo se encaminhava para que Lucas se tornasse um vilão ou, no mínimo, um chato da edição. Não fosse a reação descabida dos colegas de confinamento.

Cena de Lucas Penteado no BBB21
Lucas Penteado almoça sozinho: imagem marcou a passagem do ator pelo BBB21 | Imagem: divulgação

Quase todos os participantes da casa se voltaram contra Lucas após as primeiras festas. Contudo, o que era apenas uma irritação passou a ser uma perseguição aberta ao participante. E a principal figura por trás da exclusão do ator foi Karol Conká. Entre outras coisas, a cantora xingou o participante sem provocação em várias ocasiões e declarou a intenção de torturá-lo psicologicamente.

Lucas também não aparece para conversar com Karol no documentário. A única ex-participante que topou o encontro foi Lumena, grande aliada de Karol na casa. Porém, o ator enviou um vídeo para a produção, no qual afirma não estar pronto para se encontrar com Karol, de quem era fã antes do programa, e fala de perdão.

Após ouvir o depoimento de Lucas, Karol pede desculpas assim como pediu para Carla e Bil. Porém, dessa vez, o documentário acrescenta uma nova camada à história: a complicada relação da cantora com seu pai alcoólatra, que morreu quando ela tinha apenas 14 anos. Karol explica que o comportamento de Lucas foi um gatilho para ela, e o documentário chama atenção para os bons momentos entre a rapper e seu colega de reality.

Lucas Penteado em A Vida Depois do Tombo
Lucas Penteado optou por não encontrar Karol, mas enviou um vídeo para a cantora | Imagem: divulgação

Nesse ponto, A Vida Depois do Tombo anda por uma linha tênue. Por um lado, é importante entender as motivações por trás de comportamentos abusivos. Não dá para falar de abuso sem discutir a sério a formação do abusador, tanto no que diz respeito a problemas estruturais da sociedade quanto à história pessoal.

Porém, ao encerrar o episódio com uma imagem de Karol sendo gentil com Lucas bêbado, A Vida Depois do Tombo corre o risco de diminuir a dor de quem teve seus próprios gatilhos ativados pelas atitudes de Karol. Fica a sensação de que o sofrimento não é tanto se você também tiver memórias boas dos que causaram o sofrimento.

Gabinete do ódio, racismo, machismo e homofobia

No auge da rejeição, Karol Conká ganhou no Twitter o apelido de Jaque Patombá, uma referência à sua música mais famosa, Tombei. Seu grupo de aliados no BBB ficou conhecido como “gabinete do ódio”. Todos saíram da casa com altíssimos índices de rejeição, com exceção de Lumena, que recebeu 61,31% dos votos. Porém, a psicóloga e DJ enfrentou no paredão outro grande nome do “gabinete do ódio”, Projota, o que ajudou a dividir os votos.

Algo que chamava atenção no “gabinete do ódio” era que todos os grandes vilões da primeira fase do BBB21 eram negros. Em um país de passado escravista como o Brasil, não é de se espantar que os perfis e as famílias de todos tenham sofrido ataques racistas. Em A Vida Depois do Tombo, Jorge e Ana Maria, filho e mãe de Karol, respectivamente, falam das ofensas e ameaças que recebiam diariamente. Com apenas 15 anos, Jorge precisou criar uma conta nova no Instagram para parar de ser xingado.

Karol e Jorge na apresentação do BBB21
Karol e seu filho, Jorge, no vídeo de apresentação da cantora no BBB | Imagem: divulgação

O documentário também exibe cenas de comemorações pela eliminação de Karol, que teve ares de final de copa do mundo, com bares lotados e gritaria nas janelas. Em uma delas, uma pessoa não identificada chama a cantora de “macaca”.

Não dá para colocar a rejeição à Karol apenas na conta do racismo. Mas também não dá para negar que a narrativa do “gabinete do ódio” serviu de desculpa para muita gente botar para fora o que tem de pior dentro de si. A Vida Depois do Tombo não faz comparações entre Karol e outros participantes, mas, para quem assiste, é impossível não traçar um paralelo entre a saída da rapper e a do cantor sertanejo Rodolffo.

Rodolffo no BBB21
Rodolffo fantasiado de homem das cavernas no castigo do monstro | Imagem: divulgação

Rodolffo fez praticamente um bingo de preconceitos em sua passagem pelo BBB. Primeiro, indicou Carla ao paredão com uma justificativa machista. Depois, fez um comentário sobre o vestido de Fiuk que coroou uma série de atitudes homofóbicas na casa. Por fim, comparou a peruca da fantasia de homem das cavernas que precisou usar em uma dinâmica do jogo com o cabelo afro do participante João Luiz. Confrontado, preferiu se esconder atrás da justificativa de ser do interior em vez de reconhecer os erros.

Porém, ao contrário de Karol, Rodolffo não sofreu quase nenhuma repercussão do lado de fora da casa. Enquanto a cantora perdeu seguidores e contratos, Rodolffo viu sua música com o parceiro Israel, Batom de Cereja, chegar ao topo do Spotify Brasil. Enquanto o público esperava ansiosamente para eliminar Karol com recorde de rejeição, Rodolffo sobreviveu a três paredões antes de sair com 50,48% dos votos. E se a família de Karol recebeu ameaças e ofensas racistas, no caso de Rodolffo, quem virou alvo nas redes foi João Luiz.

Há duas formas de encarar esses dois pesos e duas medidas. Ambas passam necessariamente pelo racismo. A primeira é que Karol sofreu mais do que Rodolffo por ser uma mulher negra e, portanto, sofreu julgamentos maiores do que os dispensados a um homem branco. Já a segunda é que a violência individual cometida contra Lucas e Juliette é mais facilmente entendida como violência do que os comentários de Rodolffo. Porém, se não conseguimos perceber o peso que falas como a do sertanejo têm na mente de quem sofreu a vida toda com o racismo, estamos negando uma opressão estrutural.

Realidade e estética do arrependimento em A Vida Depois do Tombo

No primeiro episódio de A Vida Depois do Tombo, Karol Conká fala sobre a forma como o público esperava que ela aparecesse na mídia após o BBB. Segundo a cantora, a expectativa era de que ela aparecesse definhando em frente às câmeras para demonstrar que se arrepende do que fez. Contudo, para Karol, essa mudança de visual seria desnecessária e não necessariamente corresponderia a um arrependimento verdadeiro.

Entretanto, A Vida Depois do Tombo também possui sua própria estética do arrependimento. Karol aparece sentada em uma sala vazia, cercada por imensas telas que mostram seus diversos “crimes” dentro da casa e lhe fazem perguntas de maneira impessoal. Da mesma forma, a afirmação da rapper de que seu comportamento pós-confinamento não passou por nenhum tipo de briefing entra em conflito com a reunião de assessoria mostrada no próprio documentário.

Karol Conká no Rede BBB
Karol Conká no Rede BBB, primeira entrevista dos participantes após a eliminação | Imagem: divulgação

Não se trata aqui de julgar a veracidade do arrependimento de Karol. Porém, fica claro que a Conká que aparece no documentário é um personagem. E a Karol do BBB21 também.

Apesar do nome reality show, o Big Brother não nos apresenta a uma cópia fiel da realidade. O confinamento do BBB expõe os participantes a um nível de estresse bem específico, assim como a noção das demandas do público. Um bom exemplo desse estresse é a crise de ansiedade que a participante Camilla teve em uma festa. Bêbada, ela chorava por não conseguir ser má como achava que Boninho queria que ela fosse.

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A forma como o público assiste ao reality também não é igual à maneira como interpreta o mundo fora das telas. Não usamos as mesmas ferramentas. É por isso que, apesar de se basear em uma dinâmica que imita a realidade, o programa possui mocinhos, vilões, alívios cômicos, casais amados ou odiados e figurantes. Tanto a edição da TV quanto os recortes dos perfis especializados nas redes sociais apresentam os acontecimentos da casa quase como uma novela. Não é à toa que, em entrevista a Ana Maria Braga no Mais Você, Karol chamou a si mesma de “nova Carminha”.

Além disso, a produção do BBB tende a não interferir no comportamento dos participantes. Casos de racismo, abuso psicológico e até mesmo suspeitas de violência sexual ocorrem no programa sem intervenção da emissora. No máximo, há a expulsão do participante acusado de agressão, mas apenas quando a violência chega ao nível físico. Assim, não é possível saber qual teria sido o comportamento de Karol na casa se alguém tivesse chamado sua atenção e se ela estivesse ciente das repercussões até mesmo legais que suas ações tiveram no mundo real.

Lucas e Karol no pós-BBB
Lucas e Karol se encontram após a final do BBB21 | Imagem: divulgação

A Vida Depois do Tombo é, sim, parte de um esforço de recuperação da carreira de Karol Conká. Comprar ou não essa virada vai depender do público. É compreensível que muitas pessoas prefiram não consumir mais o trabalho da cantora. Afinal, Karol vive, em parte, de sua imagem – uma imagem que ela mesma abalou em rede nacional. Porém, também é compreensível que outros fãs optem por perdoá-la enquanto figura pública, da mesma forma, aliás, que o próprio Lucas Penteado.

O que deve ficar para o público de A Vida Depois do Tombo não é uma decisão definitiva sobre reabilitar ou não a cantora. O Big Brother Brasil é um programa que gera paixões intensas, tanto para o bem quanto para o mal. O que A Vida Depois do Tombo nos oferece é a oportunidade de colocar algumas dessas paixões em perspectiva depois que as portas da casa se fecham.


Revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Tradutora, jornalista, escritora e doutoranda em Linguística, na área de Análise do Discurso. Gosta de cinema, de ficção científica, de cinema de ficção científica e de batata. Queria escrever quando crescesse e, agora que cresceu, continua querendo.
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