Tais & Taiane: filme machista e retrógrado sobre duas garotas na estrada

Tais & Taiane: filme machista e retrógrado sobre duas garotas na estrada

Com estreia marcada para o dia 14 de outubro nos cinemas, a sinopse de Tais & Taiane parecia promissora. A história de duas garotas que se encontram na estrada, pedindo carona, e passam 3 dias juntas até cada uma seguir seu caminho. Não há tantos filmes de estrada feitos no Brasil, pela dificuldade de produção, e ainda mais com mulheres protagonistas.

A trama de Tais & Taiane

Dirigido e escrito por Augusto Sevá, o filme conta a história de Tais (Gabriela Verganni), uma inocente menina de classe média, que desce de um ônibus interestadual no meio da estrada e lá encontra Taiane (Yasmim Santos), uma garota jovem como ela, que faz programa com os caminhoneiros pela estrada. Sem saber para onde ir, Tais acompanha Taiane durante 3 dias, viajando de carona, dormindo ao relento e encontrando diversos homens pelo caminho.

Tais & Taiane
Cena de Tais & Taiane | Imagem: Pandora Filmes / divulgação

Tais quer continuar sua viagem até Vitória e encontrar o pai. Já Taiane, deseja apenas sobreviver, mas também tem uma história com problemas paternos como pano de fundo. Após um dos programas de Taiane com um caminhoneiro, as duas se perdem na mata, comem cogumelos, dormem em uma caverna com morcegos e encontram uma menina misteriosa lavando roupa num riacho. A menina mal abre a boca e logo mais desaparece do filme. Além dessa menina, as únicas outras mulheres que aparecem no longa são uma cafetina e algumas prostitutas jovens.

Tais & Taiane é um road movie machista e retrógado
Cena de Tais & Taiane | Imagem: Pandora Filmes / divulgação

Olhar machista e retrógrado sobre os corpos das protagonistas

Vários dos homens que as garotas encontram pela estrada, sempre bem mais velhos que elas, tentam abusar sexualmente de Tais, mas Taiane consegue salvá-la. Porém, em uma dessas cenas, Tais sai praticamente nua pela estrada, com a roupa toda rasgada, em uma cena demorada, até que Taiane arranje outra roupa (bem curta) para ela.

Em outras cenas, a câmera enquadra apenas as coxas das garotas, assim como mostra seus corpos nus nadando nos lagos que encontram pela mata.

Mais à frente, Tais e Taiane encontram dois motoqueiros que finalmente parecem amigáveis. Eles não as assediam, mas em um momento em que estão acampando no mato, as duas garotas começam a dançar sensualmente uma com a outra, enquanto os homens tocam gaita e as observam. Eles também ficam sempre observando à beira do lago enquanto as duas se banham.

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Tais dá uns amassos com um deles, mas Taiane fica surpresa de o outro não se interessar sexualmente por ela. Tocada por esse gesto aparentemente raro, Taiane pergunta se pode adotá-lo como figura paterna. O cara aceita, mas não sem antes ressaltar a diferença de cor entre eles, por algum motivo.

Yasmim Santos interpretando Taiane
Taiane em “Tais & Taiane” | Imagem: Pandora Filmes / reprodução

Como o racismo e o machismo se misturam no Brasil

Além de todo o machismo com que a câmera retrata as protagonistas, Taiane ainda é caracterizada com o estereótipo racista brasileiro, de que mulheres não-brancas são mais sexualizadas, contrastando com a inocência de Tais, uma menina branca de classe média, chamada de dondoca por Taiane. Em diversos momentos, Taiane ainda define a si mesma como bruta e ignorante.

É impressionante como um filme lançado em 2021 insira esses elementos não para criticá-los, mas para reforçá-los da forma mais explícita possível. É chocante constatar como cineastas que ainda estão em atividade possam estar tão fechados em seu mundo particular de forma a ignorar toda a discussão enorme pela qual passou a representação audiovisual nos últimos tempos. Esse tipo de retrato sem nenhuma reflexão ou crítica é simplesmente inaceitável nos dias de hoje.

As mulheres não têm história para além dos homens

Taiane parece ter uma história passada com uma cafetina, que, quando a reencontra, parece muito brava e lhe cobra dívidas. Mas a cena é rápida e não confere muitos detalhes.

Em um flashback, vemos que Tais desceu do ônibus no meio da estrada para se livrar de um passageiro ao seu lado que estava a assediando. Cansa ver o enésimo abuso sofrido por Tais e ainda ser tratado de forma “natural” pelo filme, como na constatação de que é assim que as coisas são, ou numa falta enorme de imaginação para conceber algum elemento na história de uma mulher que não seja permeado por abusos de homens.

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Nesse road movie brasileiro as mulheres não têm história para além dos homens
Tais em “Tais & Taiane” | Imagem: Pandora Filmes / reprodução

Além disso, a rasa história pregressa que as duas protagonistas são conferidas tem a ver com um pai. Tais quer continuar sua viagem para encontrar seu pai. Mas Taiane ressente a falta do pai que nunca teve.

Ao final, [spoilers apenas neste parágrafo] o pai de Taís aparece para resgatá-la e Taiane resolve ficar com seu novo pai adotivo (o motoqueiro da estrada), num final moralizante terrível, como que dizendo que apenas uma figura paterna seria suficiente para salvar as meninas dos perigos da estrada e da prostituição. Pior ainda, enquanto Tais aparentemente segue viagem em segurança no carro do pai, fica implícito que Taiane é morta a tiros pela cafetina e um outro homem a quem ela devia dinheiro. Essa “punição” simbólica é mais do que comum no cinema (e em qualquer outro tipo de mídia) em relação a personagens de prostitutas. Como se a tragédia funcionasse como uma força moralizante nas histórias, para aniquilar os transgressores. [fim do spoiler]

A qualidade técnica também é terrível em Tais & Taiane

Com exceção da fotografia, que realmente é a única coisa boa no filme, os elementos técnicos prejudicam demais a experiência de assistir a Tais & Taiane. As atuações são engessadas, apesar das protagonistas visivelmente se esforçarem, os diálogos são péssimos e o filme possui uma dublagem artificial, que as vezes fica dessincronizada com a boca dos atores, tornando algumas cenas hilárias involuntariamente. O roteiro possui uma história mais fina que papel, assim como o quase inexistente arco de suas protagonistas.

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Cena do road movie brasileiro
Cena de Tais & Taiane | Imagem: Pandora Filmes / divulgação

Até quando homens farão esse tipo de filme sobre mulheres?

É realmente impressionante que um filme como esse consiga ser produzido hoje em dia, derramando machismo, racismo e objetificando suas personagens de forma tão explícita. Se em algum momento o objetivo foi retratar de forma crítica a realidade dura das estradas ou do machismo ainda sofrido pelas mulheres, o resultado passou bem longe.

Ainda mais preocupante o filme estar sendo vendido como uma “história de amizade entre duas garotas pela estrada”, quando tudo o que entrega são imagens sexuais de jovens mulheres das piores formas possíveis. Realmente, mulheres não aguentam mais ver filmes assim. É uma pena que, em 2021, eles ainda continuem sendo produzidos.

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