Para quem nunca tenha vivido, convivido ou amado algum adicto químico, talvez esteja detestando a Rue (Zendaya), de Euphoria. E com razão: manipula, mente, tem atitudes extremamente egoístas, além de se pôr em perigo, também arrisca a vida de quem lhe cerca, machuca profundamente quem a ama. Porém, temos ideia de como isso é um reflexo não de um mau caráter inerte à Rue, mas sim a profundidade do poço em que ela está inserida, em decorrência de sua dependência química.
Atrelada a sua bipolaridade e déficit de atenção – apresentados ao público no episódio piloto de Euphoria – e junto da sua abstinência, Rue sofre com a constante e aflitiva oscilações de humor. A personagem mostra, portanto, o quão cruel é o mundo da pessoa que perde, pouco a pouco, sua vida para as drogas.
Comentando e refletindo os dois episódios mais recentes de Euphoria (HBO), traremos a review de You Who Cannot See, Think of Those Who Can e Stand Still Like the Hummingbird. Mas antes de falarmos de Rue, também serão explorados um pouco dos núcleos de Cal (Eric Dane) e de Cassie (Sydney Sweeney), pois ambos tiveram um desenvolvimento pertinente à história.
Aviso: contém spoilers dos respectivos episódios de Euphoria
Cal encontrando sua liberdade diante ao vexame
Nos episódios anteriores tivemos ciência sobre sua juventude e como sua homossexualidade reprimida influenciou em sua vida: procurando estabelecer a família perfeita na tradicional americana, Cal viveu sob as sombras. Na vida exposta era o líder de família exemplar: influente, com filhos obedientes; mas, em seus momentos íntimos, vivia o que o mesmo dominava como vida dupla: se relacionava com pessoas mais jovens, tendo a liberdade queer – e como Cal comenta com Jules, a graça da nova geração é ter a liberdade de ser quem são.
Há quem diga que essa sua preferência por parceiros e parceiras mais jovens, com a identidade de gênero e sexualidade tão aflorada e explorada, seja uma maneira de experimentar a liberdade a qual nunca teve oportunidade de ter.
Exausto de viver à farsa da própria vida, o personagem, bêbado e frustrado, expõe aos filhos e esposa a tal condição de vida dupla, sobre suas aventuras sexuais e a revolta em ter que construir uma vida a qual nunca quis. Expôs sua infelicidade, a decepção em encarar suas falhas, o arrependimento de ter tido Nate (Jacob Elordi) e que, com esse desabafo, talvez ele esteja apto a poder viver sua vida da maneira que achou que nunca poderia ter.
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A combustão de Cassie em Euphoria
A presença de Cassie em Euphoria retrata a dolorosa dependência emocional da aprovação masculina. Convivendo com um pai problemático, a personagem teve de buscar em vários parceiros algum acolhimento. Ao se relacionar com Nate, ela acredita finalmente ter encontrado alguém que possa lhe trazer a estabilidade que sempre procurou.
Contudo, o que Nate procura nela não passa de um desejo carnal. Os objetivos dele, pelo visto, não podem ser supridos com o que ela teria a oferecer a ele, a não ser seu corpo e a fragilidade emocional manipulável que ela oferece.
A personagem vem se afundando ao desespero de trair a melhor amiga, Maddy (Alexa Demie), ex-namorada do Nate e também pelo extremo desejo de ter algo com o rapaz. Ela se lamenta em estar traindo alguém que ela confiava com outro alguém que Cassie sabia não ter nenhuma ética ou moral – a mesma presenciava Nate humilhando, maltratando e desrespeitando Maddy.
No último episódio, Rue expôs a relação de Cassie e Nate, revelando a Maddy a traição. Nos próximos, veremos de que maneira Maddy irá digerir as novas informações, como Nate tentará manipular as duas e como Cassie vai recuperar.
Além disso, quando Cassie percebeu que o discurso construído por Nate era um reaproveitamento do que ele já tido com Maddy, ela sucumbe na humilhação e remorso. A cena é incômoda porque, além do vômito, a personagem toma noção de que ali, ela era uma opção descartável.
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Inclusive, o núcleo de Maddy e Nate também explora a questão da dependência emocional e como uma relação pode tornar ambos lados parasitários ao questionar a existência de um possível amor rendendo ali ou se ambos estavam nessa relação em razão do que um teria a oferecer ao outro (Nate tendo sua parceira troféu e Maddy tendo status).
Rue sucumbindo na segunda temporada
Os dois últimos episódios exploram ainda mais o talento de Zendaya, mostrando uma Rue perdendo-se e afundando-se nas drogas. Se nos primeiros episódios encaramos uma Rue caricata e resumida a caretas, nesses últimos vimos a profundeza na quão ela está e continuará vivenciando.
Uma pessoa adicta não mede esforços para pagar ou conseguir novas drogas e dose. Não é a toa que Rue, em um estado abstinência, percorre toda uma cidade – em meio ao trânsito, fugindo de carros e sendo perseguida pela polícia – a fim de conseguir dinheiro para pagar as drogas que adquiriu com a traficante da área. Não somente para pagar essa dívida, mas também para poder consumir.
Além desse desespero para aliviar seu vício, Rue dividiu as cenas iniciais do quinto episódio em uma discussão feroz com sua mãe, Leslie Bennet (Nika King) e sua irmã, Gia (Storm Reid), em que ambas descobrem a profundidade de sua mais recente recaída. Nesse momento, é impossível não se emocionar com a sequência da discussão, em que Rue humilha a mãe e machuca com palavras sua família, inclusive partindo para a agressão física.
Nesse meio tempo enxergamos que, mesmo aprofundadas no cansaço, machucadas pela situação, a família de Rue insiste em não a abandonar. Tentam crer em uma possível melhora e buscam, a todo custo, acolherem-na para tentar recuperá-la.
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A luta se mostra dolorida, cruel e absurdamente triste. Conseguimos ver que Rue, em sua instabilidade de humor, arrepende-se das palavras disparadas e violência assumida até então, mas quando o desespero da dependência retorna, um outro perfil lhe assume e todo o caos retorna.
A personalidade da pessoa adicta, antes da dependência, perde espaço para o desespero das drogas. Esse perfil manipulador, agressivo e cruel ocupa o espaço de uma pessoa que antes era amorosa, não porque aquela pessoa sempre foi assim, mas porque o impacto das drogas lhe tornou assim. Lembrando que não foi só sob um uso recreativo, mas pela necessidade de acalentar uma mente que passou a depender dessas substâncias para ter algum alívio, nem que tenha sido cada vez mais temporário.
Assim como podemos desenvolver muita revolta com Rue em Euphoria – com razão, afinal, estamos presenciando sua ruína – também podemos elaborar empatia por ela. A personagem revela, mais de uma vez, a falta que sente do pai, a exaustão que todo esse cenário da dependência lhe machuca, além de sua relação com Jules (Hunter Schafer), que fragmenta-se em traições, ainda que haja amor e admiração ali.
Rue também nos mostra que aquela criança que amou a irmã caçula desde o primeiro instante e fez uma carta emocionada para se despedir do pai, foi sobrecarregada pelas consequências que as drogas consumidas lhe trouxeram. Nada das escolhas tomadas foram feitas por espontânea vontade, mas sim orquestradas pela dependência.
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Os próximos episódios trarão ainda mais angústia, da mesma maneira que os últimos nos tiraram o fôlego. E é preciso dizer que o discurso antidrogas explorado pela série é bem-feito: não estão demonizando-as, mas sim expondo os riscos – em todos os níveis – que elas podem trazer a curto e longo prazo.