Sempre que se aproxima uma grande premiação – Oscar, Emmy ou o que for –, o furor gira em torno das principais categorias e, claro, do tapete vermelho: é fácil, afinal, se perder entre o glamour da pré-cerimônia e a torcida por alguns dos títulos mais populares do momento. Mas não raro uma pérola se esconde entre as categorias menos badaladas, e se você prestar bastante atenção na lista de indicados, pode até descobrir algo novo para assistir. Ou você pode continuar lendo esse texto e entender por que Legendary, que concorre ao Emmy 2021 nas singelas categorias de melhor penteado e melhor maquiagem, merece um lugar na sua lista de programas de competição favoritos.
(Especialmente você, fã de Drag Race ou Pose. Se você ainda não conhece Legendary, vai segurar a minha mão e ler esse texto até o fim, combinado?)
O ballroom de Legendary
É inegável que RuPaul’s Drag Race não apenas abriu caminho para uma popularização da cultura drag, como também apresentou para o público geral, mesmo que em breves pinceladas, elementos históricos. Mas isso ocorre justamente porque o reality show de drag queens não pode fugir de suas raízes: desde as (poucas) queens que fazem questão de trazer a história à tona, até menções ao documentário Paris is Burning (1991), um programa como Drag Race só pode fazer sucesso hoje porque, há muito tempo, a cultura do ballroom existe e resiste.
E é aí que entra Legendary.
No ar pela HBO Max desde 2020, Legendary faz um contraponto muito interessante a Pose, outra série bem famosa que compartilha elementos de sua origem com Drag Race e Legendary. Para a telespectadora desavisada, as três, ainda que não tenham uma conexão direta, permitem um mergulho cada vez mais profundo nessa cultura: rag Race insinua; Pose faz uma dramatização de décadas de ballroom pelas lentes algo fantasiosas de Ryan Murphy; e Legendary, enfim, nos mostra efetivamente o que é essa cultura hoje, com pessoas que a mantém viva e que também são parte desse legado.
Mas antes de falar mais a fundo sobre a série, é preciso estabelecer as bases da cultura do ballroom: ela é parte fundamental da cena LGBTQIA+ americana. Formada principalmente pessoas negras e latinas, surgiu como uma subcultura periférica e, como tal, tem um repertório todo próprio, do vocabulário às categorias das competições onde os participantes defendem suas casas – e a própria ideia de casas já diz muito sobre as raízes do ballroom.
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Dessa maneira, sob o comando de uma mãe ou, em alguns casos, um pai, pessoas se encontram e formam uma família; não é regra, mas para muitos, o acolhimento oferecido pelas casas foi caminho para sair das ruas, de um lar abusivo, ou mesmo se encontrar.
Vogue e uma pitada de Cirque du Soleil
Legendary emula a estrutura do ballroom, com as casas se enfrentando a cada semana em episódios temáticos, em performances de grupo e individuais. Há sempre a casa vencedora do episódio, enquanto as duas com pontuação mais baixa devem competir em uma batalha de voguing; aquela que perde é eliminada.
O verdadeiro show dado por cada uma das casas participantes é de encher os olhos e, muitas vezes, deixar a espectadora sem ar. No entanto, o que realmente impressiona em Legendary é o encontro entre a realidade dos membros da casa, que vamos conhecendo melhor por meio de depoimentos, além da produção de altíssima qualidade, com um orçamento digno de grandes competições.
Há uma equipe criativa por trás do programa, é claro, mas ela está, de modo geral, a serviço das casas: a partir de cada tema, os membros confabulam e trabalham em sua visão com o apoio da equipe, que vai colaborar com as coreografias, o design dos figurinos e o que mais for necessário para levar ao palco um espetáculo que, de preferência, conquiste uma nota 10 de todos os jurados.
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O júri de Legendary, inclusive, é parte fundamental do sucesso do programa: há um cuidado claro ao navegar a tênue linha entre um corpo de jurados especializado demais, que acabaria tornando o conteúdo inacessível a um público mais amplo, ou leigo demais, o que acabaria com a legitimidade das escolhas de cada episódio.
Dessa forma, Jameela Jamil, possivelmente mais conhecida por seu papel em The Good Place e o ativismo nas redes sociais, exerce o papel clássico de conexão com o público iniciante: ainda que venha visivelmente aprendendo mais e mais sobre as nuances do ballroom, ela é quem se encanta e, não raro, julga mais pela empolgação do que por critérios técnicos.
A rapper Megan Thee Stallion, por sua vez, traz um caminhão de carisma, mas também um olhar mais atento, especialmente no que diz respeito à precisão das coreografias e à entrega no palco. Law Roach, estilista que já vestiu Zendaya, Ariana Grande e Tom Holland, entre tantos outros, cumpre o papel de jurado carrasco, mesmo que com uma dose de cumplicidade; conquistar um elogio dele às vezes causa mais euforia que vencer a noite.
Mas a verdadeira estrela desse júri é Leiomy Maldonado – e não à toa, ela merece uma seção própria nesse texto.
Mulher-Maravilha do Vogue
Dançarina e coreógrafa, Leiomy Maldonado tem, do alto de seus 34 anos, credenciais incríveis. Afinal de contas, não é qualquer uma que pode se gabar de ter inspirado Janet Jackson, Beyoncé, Lady Gaga e Britney Spears: todas elas adotaram o “Leiomy Lolly”, movimento de bate-cabelo que se tornou assinatura das apresentações de Leiomy.
Ainda em 2009, Leiomy foi um dos poucos exemplos de representação positiva de mulheres trans na TV aberta americana. Mas seu envolvimento com a cultura do ballroom começou muito antes: seu primeiro contato com voguing ocorreu quando ela ainda tinha 15 anos, o que significa que lá se vão quase 20 anos vivendo nesse universo. E sem nunca ter feito uma aula de dança sequer.
Em Legendary, Leiomy transborda não apenas conhecimento, como também a essência da cultura: ela vibra com cada casa, ao mesmo tempo em que avalia cada quesito técnico de maneira precisa; ela acolhe e ensina tanto quem está no palco quanto quem está assistindo. Ela é, acima de tudo, uma defensora ferrenha de valores que são a essência do ballroom e, por isso mesmo, traz aquela dose tão necessária de legitimidade ao programa.
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Inclusive, vez ou outra Leiomy acaba puxando a orelha de participantes e fãs de Drag Race. Nas palavras dela, em entrevista de junho deste ano, “O ballroom é parte da comunidade LGBTQIA+, mas nem todo mundo da comunidade conhece esse meio ou fez parte dele. Essas pessoas não entendem a cultura, nem o quão profunda e importante ela é para nós.”
Mesmo em episódios de Legendary, há momentos em que a própria Leiomy, ou ainda outros membros do júri, reforçam a importância do conhecimento. Legendary é competição e é espetáculo, mas isso não diminui a importância do seu papel em difundir essa parte tão importante da cultura LGBTQIA+ americana, com vozes que entendem do assunto. E, e claro, com muita opulência.
Edição e revisão por Isabelle Simões.