“Agosto de 1888, Distrito de East End, Londres, após o anoitecer“. Assim encontramos as primeiras palavras do livro de Nancy Springer, Enola Holmes: o caso do marquês desaparecido. E é com estes dados incertos sobre o tempo e o espaço que somos fisgadas para a atmosfera que segue: “A ÚNICA LUZ VEM DAS POUCAS lamparinas a gás ainda intactas e dos fogareiros dos velhos vendedores nas calçadas, que, do lado de fora das tavernas, oferecem marisco cozido em panelas borbulhantes.”
Rapidamente, a autora nos apresenta uma de suas criações mais corajosas. A personagem misteriosa “desliza de sombra em sombra sem ser notada, como se ela mesma fosse uma.” Ela está sozinha, “examina, procura e observa“. Enola Holmes é uma pesquisadora da realidade. Uma caçadora de verdades, pistas e enigmas.
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Conhecida inicialmente como a irmã mais nova do grande detetive Sherlock Holmes, ela poderia permanecer apenas assim, porém aos poucos somos conquistadas por sua ousadia e inteligência e notamos a mulher “que nunca pertenceu a lugar algum” ocupar espaço em nossos corações. Enola Holmes tenta sempre entender os fatos que a cercam começando pelo seu nome “que de trás para a frente é ‘alone’, ou seja, sozinha“, sua mãe devia ter algo em mente, pensa ela.
Vemos que as ideias de pertencimento e solidão surgem em vários momentos da obra de Nancy Springer como na vida de todas as pessoas e, principalmente, de toda mulher. Afinal, temos verdadeira companhia? À que lugar nos destinamos? Sabemos que majoritariamente nossos espaços estão pré-definidos e este é o caso da menina de 14 anos que nos levará em uma grande aventura pelos portos da Londres do século XIX e pelo universo das narrativas infanto-juvenis.
Autoconhecimento e a desistência da aprovação masculina
A princípio, Enola espera aprovação de seus irmãos e se revolta com sua mãe por tê-la deixado. Sonha com uma Londres de “palácios, fontes, catedrais. Teatros, óperas, cavalheiros de fraque e damas cobertas de diamantes“. Mas depois ela se identifica com ambos apesar das diferenças e vai conhecendo a si mesma mais profundamente. Enola descobre sua vocação de investigadora como a de seu irmão Sherlock, e seu gosto por desvendar enigmas e símbolos como o de sua mãe Eudoria. E se vê diante de uma Londres suja e de pessoas famintas.
A nossa heroína é revelada através de sua educação e comportamento diferente para o contexto histórico e propiciada pela liberdade de sua mãe após a morte do pai e ainda pela sua classe social. No primeiro momento, Enola aparece em 1888, ano posterior ao surgimento do detetive Sherlock na obra de Arthur e as vésperas de grandes movimentos e intensas transformações sociais, como a greve dos trabalhadores em Londres e a conhecida 1ª onda do feminismo, As Sufragistas. Tal movimento defendia o direito ao voto feminino e o ingresso das mulheres no mercado de trabalho. O sufrágio é mencionado a partir das descrições de Eudoria, mãe da protagonista e narradora.
Mamãe era, como qualquer um podia ver, uma livre-pensadora, uma mulher de personalidade, defensora do sufrágio feminino e da reforma do vestuário vitoriano, inclusive dos vestidos macios e soltos enaltecidos por Ruskin – mas também, quer ela gostasse ou não, era uma viúva e tinha certas obrigações. (p. 24)
Enola Holmes ultrapassa as fronteiras do gênero infanto-juvenil
As menções aos movimentos feministas e ao período histórico em si não são o foco da narrativa, mas fazem parte da construção da personagem e do enredo servindo para criar a imagem dessa menina, que apesar de toda uma estrutura social e familiar rígida vai em busca de sua mãe e, também, de sua liberdade.
Podemos notar que, embora a literatura infanto-juvenil tenha nascido em meio a sociedade burguesa e em muitos momentos reafirma os valores tradicionais da norma familiar, em Enola Holmes acontece justamente o rompimento desses valores através das mulheres da família.
Ao olhar ao redor, no silêncio da sala de estar de minha mãe, me senti mais reverente do que se estivesse numa capela. Sabe, eu tinha lido os livros de lógica de meu pai, e Malthus, e Darwin; assim como meus pais, eu mantinha um ponto de vista racional e científico – mas estar no quarto de mamãe me fez sentir um desejo de acreditar. Em algo. Na alma, talvez, no espírito. (p.22)
Desde sua origem, sabemos que a ciência tem o distanciamento do objeto de análise e exame e que em grande parte em seu passado e presente é permeada por preconceitos, deixando minorias em desvantagens e fortalecendo padrões sociais de desigualdade. No personagem Sherlock Holmes, das obras de Arthur Conan Doyle, temos muito mais de científico e racional do que um olhar de intuição e espírito como em Enola, de Nancy Springer.
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O trecho acima revela o positivismo científico que norteava a educação do século XIX e como bem conhecemos as narrativas tão objetivas dos detetives, mas que não eram frequentes na educação de uma mulher da época. Nos contornos da obra são destacados momentos em que a personagem e sua mãe sofrem preconceito por parte de homens próximos, seus irmãos: Sherlock Holmes e Mycroft.
Então Sherlock virou para Mycroft e disse suavemente:
– A culpa é minha. Não há como confiar numa mulher; por que abri exceção para nossa mãe? Eu devia, no mínimo, ter vindo aqui de tempos em tempos para verificar se estava tudo bem com ela, por mais desagradável que fosse. (p. 43)
Em vários momentos, Enola Holmes questiona a frieza dos irmãos, principalmente o grande detetive a quem tanto admirava. “Herói ou não, ele – e seus modos – estava começando a me irritar. E a me afligir, pois minha mãe também era mãe dele; como podia ser tão frio?”. Embora a educação dela fosse diferente das outras meninas de sua época e permeada pela racionalidade, a personagem ainda encontra dentro de si os afetos necessários para o distanciamento de uma investigação extremamente racional – como era aparentemente a de seu irmão.
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Corajosas e independentes, as mulheres por trás e ao redor do famoso personagem de Conan Doyle escapam com astucia do filho, irmão e incrível detetive. Uma das características de obra infanto-juvenil ao longo do tempo é a presença do dominador e do dominado, sempre nas figuras do adulto e do jovem respectivamente.
Nesta obra, a protagonista ganha a voz e a liberdade de ação das narrativas detetivescas e de aventura. Ironia e crítica? Talvez. Nancy Springer pincela as cores de uma época e cria uma personagem jovem com educação masculina de classes sociais altas daquela época, mas que, também, escuta suas intuições e afetos.
Enola Holmes: O caso do marquês desaparecido
Nancy Springer (Autora), Livia Koeppl (Tradutora)
176 páginas
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