Torto Arado: memórias de exploração e esperanças

Torto Arado: memórias de exploração e esperanças

Torto Arado conta a história das irmãs Belonísia e Bibiana que, quando crianças, mexem na mala da avó por curiosidade. Em seguida, acham uma faca e ficam encantadas com o brilho, depois que a pegam, e num impulso, as duas a colocam na boca. Por acidente cortam as línguas e uma delas a decepa. E assim começa a história.

O romance de Itamar Vieira Junior, publicado pela Editora Todavia, conta a história de três vozes-memórias: Belonísia, Bibiana e Santa Rita Pescadeira. Cada uma delas narram suas trajetórias, percepções, desejos e sofrimentos. ao mesmo tempo, narram a história silenciada das meninas, transfigurada na faca. A partir daí as duas irmãs tornam-se mais unidas e uma dá voz a outra. Basta um olhar para saber o que querem dizer.

Seríamos iguais. A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar. (pág. 23)

Fonte: Gabriela C. Marra/Delirium Nerd

Vidas invisíveis

O cenário de Torto Arado é a Fazenda Água Negra, onde famílias vivem e trabalham em condições análogas à escravidão. Trabalham em troca de um pedaço de terra, não têm salário e são proibidos de construírem suas casas de alvenaria para que não se fixem no local. Diante desta realidade, estão sujeitos à exploração da força de trabalho e à violência, em um ambiente marcado pela seca.

O gerente queria trazer gente que “trabalhe muito” e “que não tenha medo de trabalho”, nas palavras de meu pai, “para dar seu suor na plantação”. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. (Pág. 41)

O que vemos em Torto Arado são relações de trabalho que assujeitam o trabalhador a condições degradantes assim como a jornadas exaustivas. E qual o tempo dessa história? Não há datas no livro e nem uma pista de quando se passa os acontecimentos, pode ser no Brasil do passado ou nos dias atuais. Portanto, um Brasil que permanece o mesmo, com os mesmos costumes, racista e perverso.

Em Torto Arado

O pano de fundo é a história da família de Zeca Chapéu Grande, homem da terra, respeitado, curandeiro de corpo e espírito, que carrega a herança da escravidão. Ele é um líder espiritual da comunidade de Água Negra, assim, todos o procuram em busca de cura. Seguem seus caminhos entre crenças e luta. O povo de Água Negra, em sua maioria, é descendente dos que foram escravos e eles continuam a viver em condições análogas à da escravidão.

A faca, que aparece logo no início, representa o dominador que silencia um povo escravizado, corta a voz de pretos e indígenas. Bibiana e Belonísia expõe o valor da união e de suas origens. Igualmente, as mulheres, mães, avós, irmãs, representam a ancestralidade, a força e a resistência ao peso do racismo no país.

Leia também >> Diário de Bitita: a infância de Carolina de Jesus em um Brasil pós-abolição

Torto Arado e o fio de corte

Belonísia e Bibiana eram as mais próximas, andavam juntas, frequentemente disputavam espaços e brigavam. Após Belonísia perder a língua, Bibiana tornou-se parte de Belonísia, como se a língua arrancada fosse das duas. Apesar disso, elas querem seguir seus próprios caminhos. 

São trajetórias que se aproximam e se afastam e que conta a história da comunidade. Bibiana narra o primeiro capítulo, segue seu sonho de ser professora, sai da fazenda, carregando marcas de seu passado de dor.

Belonísia vê a irmã arrumando a mala:

Vi seus olhos surpresos com a descoberta e não fui capaz de comunicar nada sobre o que estava fazendo. Nem ela. Seu olhar era inquisidor, árido como o tempo que nos cercava, e minha vergonha era suficiente para que sequer tentasse justificar o que fazia. (pág. 82)

Torto Arado e o rio de sangue

Belonísia, fincada na terra, segue seu pai, mas ainda sim, tem clareza de sua condição de mulher em um ambiente opressor. É em seu relato que nos deparamos com a vida de mulheres que passam por situações de violência. Posteriormente, ela casa-se com Tobias, a princípio um homem que a respeita, porém descobrimos nele o machismo.

Todos agora sabiam que eu não era mais a Belonísia de Zeca Chapéu Grande, e que agora vivia com Tobias, logo, eu era Belonísia de Tobias. Deixava a quela mágoa morrer no peito, mormente quando ele erguia a roupa antes de dormir, para entrar em mim. Ele dormia, roncava, não reclamava da mulher deitada, então ficava quieta por dentro, como se estivesse tudo bem. (pág.116)

Santa Rita Pescadeira narra a terceira parte, uma entidade que aparece algumas vezes ao longo do livro, incorporada por uma habitante de Água Negra. Santa Rita anda por essas terras há muito tempo e fala das dores do sertão, bem como conta histórias das personagens e do rio que corre entre o passado e presente: o marido de Bibiana é encontrado sobre um rio de sangue, símbolo da história dos negros pelo país.

Ela viu crueldade, é calejada, contudo se comove com homens derramando sangue para destruir sonhos, pelos castigos no garimpo de diamante. Viu uma mulher incendiando o corpo para não ser cativa, e outras que retiraram seus filhos do ventre para não nascerem escravos. Viu o rio de sangue. Viu a história de Bibiana e Belonísia.

Leia também >> Mandíbula: a monstruosidade entre as mulheres no romance de Mónica Ojeda

Por que ler Torto Arado?

Torto Arado foi publicado primeiro em Portugal. Mostra um Brasil com enorme riqueza cultural, mostra a terra fértil, a miséria, a seca, o trabalho forçado. Dessa forma, é um livro para refletirmos as relações sociais de dominação e de resistência, assim como a exploração da força de trabalho, que continua silenciosa e permeada por outras formas de opressão, como gênero e raça. Enfim, a escravidão continua existindo, num Brasil preso ao seu passado escravagista.

O autor termina com a frase: “Sobre a terra há de viver sempre o mais forte“.  Então, quem é o mais forte?

O autor

Autor Itamar Vieira Junior
Itamar Vieira Junior | Fonte: vermelho.org.br

Itamar Vieira Junior tem graduação e mestrado em geografia, e doutorado em Estudos Étnicos e Africanos pela UFBA. Publicou os livros Dias e A oração do carrasco (finalista do Prêmio Jabuti). Torto Arado venceu os prêmios LeYa, em 2018, Jabuti e Oceanos.

O autor nos passa um olhar interno do sertão a partir de sua experiência profissional, como servidor do INCRA, onde encontrou pessoas e histórias pulsantes, de um Brasil com sua organização social racista e que pouco aparece na literatura contemporânea.


Torto Arado

Autor: Itamar Vieira Junior

Editora Todavia

264 páginas

Se interessou pelo livro? Você pode comprar aqui!

O Delirium Nerd é integrante do programa de associados da Amazon. Comprando através do link acima, ganhamos uma pequena comissão e você ainda ajuda a manter o site no ar, além de ganhar nossa eterna gratidão por apoiar o nosso trabalho.

Escrito por:

Gabriela é carioca, pesquisadora na área de Saúde do Trabalhador e frigoríficos. É escritora, e revisora de textos.
Veja todos os textos
Follow Me :