Com poesia e crítica social, Eliana Alves Cruz convida a reconhecer a negritude como espelho do Brasil

Com poesia e crítica social, Eliana Alves Cruz convida a reconhecer a negritude como espelho do Brasil

A carioca Eliana Alves Cruz tinha 11 anos quando escreveu em seu diário sobre o desejo de se tornar escritora. De lá, até o lançamento do seu primeiro livro, foram anos de trabalho como jornalista esportiva. Hoje, pode-se dizer que o sonho de infância se tornou realidade, e com muita maestria.

Uma combinação de alta qualidade na escrita e a proximidade com a nossa história como povo, faz com que Eliana desponte como grande revelação no meio literário. A escritora também pega embalo em um ótimo momento de renovação.

Em um país que pouco lê, muito se tem falado sobre obras nacionais contemporâneas, como o arrebatador  Tudo é Rio, de Carla Madeira, o comovente A Pediatra, de Andréa del Fuego e o aclamado Torto Arado, de Itamar Vieira Junior.

Escritora Eliana Alves Cruz
Escritora Eliana Alves Cruz | Imagem: reprodução

Com Eliana não é diferente. Ela é uma das grandes estrelas dessa bem-sucedida constelação de novos autores. Os anos exercendo o ofício de jornalista possibilitaram um amadurecimento do seu processo criativo e o reconhecimento de uma aptidão natural para a escrita. E, desde que se deu conta da sua imensidão literária, Eliana nunca mais parou. 

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A trajetória literária da escritora Eliana Alves Cruz

Eliana produz com uma intensidade invejável. São romances, contos, poemas e participações em diversas antologias. Seu livro de estreia, Água de barrela, ganhou o Prêmio Oliveira Silveira de 2015, da Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura e foi menção honrosa do Prêmio Thomas Skidmore 2018.

O segundo livro, O crime do cais do Valongo, foi escolhido como um dos melhores do ano de 2018 pelos críticos do jornal O Globo e foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2019, enquanto o romance Solitária ficou entre os mais vendidos da Companhia das Letras, em 2022. Além de todas essas conquistas, com A Vestida, ganhou o primeiro lugar no Prêmio Jabuti 2022, categoria Conto.

O currículo de Eliana impressiona e, ao mesmo tempo, inspira aqueles que acreditam ser tarde para concretizar seus sonhos.

Eliana Alves Cruz e Marcelo Moutinho, vencedores do Prêmio Jabuti 2022.
Eliana Alves Cruz e Marcelo Moutinho, vencedores do Prêmio Jabuti 2022, nas categorias Conto e Crônica | Foto: Hermes de Paula

A história do Brasil com o protagonismo de pessoas negras, mulheres e LGBTQIA+

Em suas obras, a autora apresenta uma perspectiva contemporânea para assuntos antigos e cujos desdobramentos ainda reverberam fortemente nos dias de hoje, como racismo e herança da escravidão. Ao mesmo tempo, trata das injustiças raciais e sociais de forma muito poética, dando protagonismo àquelas que, por muitos anos, foram marginalizadas nas histórias do Brasil.   

No romance Nada digo de ti, que em ti não veja, Eliana conta a história de Vitória, uma mulher trans, negra e escravizada, que luta por um amor impossível, forte e verdadeiro. Uma narrativa – talvez – nunca antes explorada, de comoção ímpar.

Água de barrela narra a trajetória familiar da própria escritora, focado na vida das mulheres de sua família, desde o Brasil na época da colônia até o início do século XX. 

As capas das edições de "Água de barrela" e "Nada digo de ti, que em ti não veja", de Eliana Alves Cruz

Em Solitária, lançado em 2022, a escritora adentra aos dias atuais e, com sensibilidade e acidez, toca na ferida da exploração de mulheres negras no trabalho doméstico, por meio da história de duas mulheres, mãe e filha, que moram no trabalho e buscam descobrir suas próprias identidades, além do ambiente em que vivem.    

A Vestida que, não à toa, foi premiado no 64º Prêmio Jabuti, traz uma escrita mais poética, com textos curtos, de pura emoção. Em um dos contos, intitulado  “Noite sem Lua”, o coração fica à beira da alma com a menina Marilene, que deixou de comer tudo que era preto para clarear a pele, a fim de ser aceita na escola.

A Ludi parou de comer tudo o que é preto. Café? Não. Chocolate? Nem pensar!

Passa? Isso é ruim de qualquer jeito. Ameixa? Só vermelha. E o feijão não pode nem encostar.

Edição do livro "Solitária", publicado pela Companhia das Letras
Edição do livro “Solitária”, publicado pela Companhia das Letras | Imagem: Amazon

Em “A passagem”, Eliana nos convida a refletir sobre a falácia da igualdade racial, que se derrama pelos papéis e discursos, mas nunca pelas vidas de carne e osso.

E, afinal, como seria Ele? Esperava que fosse uma Criador, que fosse uma Deusa. Muitas vezes duvidou, embora a voz de sua mãe viesse lhe dizer que Deus a ama.

Como poderia acreditar em sua existência se desde cedo aprendeu que umas e uns têm mais direitos que outras e outros?

É difícil escolher um dos livros de Eliana como o melhor. Da ficção policial à poesia, a premiada autora escreve sem medo de desagradar, com coragem e audácia de expor quem são os reais protagonistas da história do Brasil. Além de emocionar, suas obras ensinam, entram na alma e ficam para sempre.

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A escritora tinge o quadro do Brasil de hoje com as cores do ontem 

Em entrevista à Blooks, a escritora deixa uma mensagem forte:

“Brasil, se olhe no espelho, enxergue quem você realmente é e se ame. A história e o conhecimento do povo negro são tesouros riquíssimos que precisam ser descobertos e aproveitados por toda a nação”.

“Brasil, se olhe no espelho” é um apelo para olhar a nossa própria existência como povo e perceber o que reluz de volta. E, o que se vê, ao se debruçar pela obra completa da escritora, é o resgate da memória, a preservação da identidade cultural negra e o protagonismo de um Brasil inviabilizado por séculos, mostrando que o presente e o futuro dependem de não esquecermos nem apagarmos o passado.

Autora Eliana Alves Cruz
Autora Eliana Alves Cruz | Imagem: Folha

Eliana Alves Cruz não apenas se tornou escritora, como pretendia na infância. Hoje, ela desenha sonhos e busca um futuro melhor para todos. Mostra que as batalhas de hoje já começaram há muito tempo e é diária a luta por uma sociedade verdadeiramente igualitária. Como a autora mesmo diz, a missão da literatura é libertar o leitor de um único lugar, de uma única narrativa.

Fica, então, o convite à leitura dessa brilhante libertária de pensamentos, que conjura outros futuros, outras possibilidades de finais e de vidas, trazendo a negritude como marca do Brasil.

“Subverter as expectativas em relação ao destino destas pessoas. Porque fabular, conjurar um futuro, também é uma missão da arte, uma missão da literatura para nós, que parece que estivemos tanto tempo congelados, condenados a um único lugar, à uma única narrativa. Então, é hora da gente conjurar outros futuros, outras possibilidades de finais e de vidas”.

– Eliana Alves Cruz, em entrevista ao Programa Sempre um Papo

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Mais uma pessoa que escondeu por anos a verdadeira vocação, enfim, liberta! Encontro nas palavras a forma de expressar minha paixão por cinema, literatura e cultura em geral. Não me convide para fazer trilha, mas vou até o fim do mundo com você em busca do Tiramisu perfeito.
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