Vai na fé: o brasileiro e suas narrativas representadas na telenovela

Vai na fé: o brasileiro e suas narrativas representadas na telenovela

Por mais que a onda dos “streamings” esteja a todo vapor, as telenovelas brasileiras ainda são um dos maiores patrimônios imateriais da nossa cultura. Sendo noveleiro ou não, precisamos concordar e nos orgulhar que nossas telenovelas são referências de gênero para muitos países. Ainda assim, por muitas décadas, suas narrativas giravam em torno de herdeiras do Rio de Janeiro ou, vez ou outra, uma caricatura péssima da região Nordeste. Onde a classe trabalhadora tinha acesso apenas à entrada dos fundos. Se antes era possível contar no dedo as atrizes negras sendo no núcleo principal, hoje a novela Vai na fé nos prova os contrário.

Na novela das sete da Globo, a personagem Sol (Sheron Menezzes) paga as contas da sua família com as vendas de suas quentinhas, no centro do Rio de Janeiro. A mãe de Jenifer (Bella Campos) e Duda (Manu Estevão), improvisa com paródias para divulgar seu menu diário do cardápio de marmitas. Apaixonada por Carlão, seu esposo, ex- lutador de boxe (Che Moais) e sua mãe Marlene, (interpretada pela gigante, Elisa Lucinda), juntos formam uma amorosa família de classe trabalhadora, negra e evangélica.

Família do elenco principal de Vai na Fé.
Família do elenco principal de Vai na Fé | Imagem: reprodução

“Vai na Fé” e o audiovisual com representatividade dentro e fora das telas

Mas não se engane, você não encontrará nenhuma caricatura de fanáticos religiosos pelo caminho. O time de autores da roteirista Rosane Svartman, além de diverso, também esbanja talento. Fabrício Santiago, Mário Viana, Pedro Alvarenga, Renata Corrêa, Renata Sofia e Sabrina Rosa têm todo o cuidado em perceber que as telenovelas também atuam como educadores sociais e assim não reproduzem a imagem automática que o brasileiro pensa sobre a religião em si.

Equipe de Roteiristas da telenovela Vai na Fé.
Equipe de Roteiristas da telenovela Vai na Fé | Imagem: De olho nos detalhes por Zamenza

É bom recordar que, segundo pesquisa da Datafolha: mulheres e negros são a maioria entre os evangélicos brasileiros. E são com esses dois grupos que somos presenteados com os dramas que grande parte da classe trabalhadora já vivenciou. Uma conta de energia cortada pelo dinheiro que não fecha no final do mês, um gás que acaba e não tem dinheiro para repor, um amor da juventude que não vingou ou mesmo um grande sonho que não se realizou. Tudo isso no bairro Piedade, periferia bem distante do grande centro do Rio de Janeiro.

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E é lá que somos embalados por ‘’Garota Nota 100’’, de Mc Marcinho e grandes hits de Claudinho e Buchecha. Através de uma linguagem de flashback, somos teletransportados aos bailes funk dos anos 2000, onde Sol era rainha do ‘’Baile Neinei’’ e dançava como ninguém sob as luzes do palco. Foi através dessa energia que ela conheceu Benjamin, o Ben, (Samuel de Assis). Os dois formam um jovem casal romântico que torcemos juntos até lembrarmos de quem eles são no agora, maduros com sonhos diferentes dos da juventude.

Do baile do Neinei aos palcos de Lui Lorenzo: a classe trabalhadora também sonha

Indo do passado para o presente, caminhamos por vários núcleos onde nas entrelinhas sempre nos deparamos com a possibilidade de melhoria de vida através do estudo. Temos Benjamin, que é um advogado bem sucedido mas que herdou o escritório do pai. E do outro lado, Jenifer, bolsista de Direito em uma faculdade particular que se dedica muito aos estudos por sempre lembrar do significado daquela conquista para toda sua família.

Não diferente do que se espera do horário, em temos também o núcleo de humor com grande maestria. Desde um cantor canalha, que agarra toda e qualquer mulher até jornalismo focado em notícias de celebridade, ou melhor, em fofocas ou deslizes cometidos pelas mesmas.
Os núcleos de Vai na Fé são costurados quase que de maneira imperceptível. A mansão da novela é moradia de Wilma Campos (Renata Sorrah), uma atriz aposentada que cuida da carreira de cantor do seu único filho.

O cantor boy-lixo é Lui Lorenzo, (José Loreto), que metido em muitos processos com mulheres fica sem uma de suas dançarinas e backing-vocal. E é nesse momento que Sol pode voltar a sonhar em ser dançarina outra vez, sendo inspiração para outras mulheres de quarenta anos. Sejam elas vendedoras de quentinhas ou não.

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Sol (Sheron Menezzes) se apresenta no palco de Lui Lorenzo.
Sol (Sheron Menezzes) se apresenta no palco de Lui Lorenzo | Imagem: Reprodução

Existem muitas camadas que poderiam ser escritas sobre o conjunto de acertos presentes em Vai na fé. Mas com certeza uma das mais significativas é ver a classe trabalhadora não se deixar ser engolida pela diferença de acessos, tal qual  o brasileiro que resiste todo dia e decide dançar diferente da música porque sabe que só assim vai conseguir  realizar do que tanto deseja.

Como canta Negra Li, na música de abertura: “O sol, pra gente, sempre vai nascer… Não importa o que acontecer. Nossa voz vai ecoar, o brilho iluminar em todo canto, em todo lugar.” 

Logo, se enxergar em personagens da dramaturgia brasileira não é somente uma cereja do bolo que faltava no Brasil, é uma refeição inteira.

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