As mulheres complexas de “Um Lugar ao Sol”

As mulheres complexas de “Um Lugar ao Sol”

Lançada em novembro de 2021, Um Lugar ao Sol marcou o retorno de produções inéditas à faixa das 21h na Rede Globo após quase dois anos de reprises e de uma pandemia que ainda não acabou. A primeira novela de Lícia Manzo (A Vida da Gente) no horário traz Cauã Reymond como o protagonista Christian, que assume o lugar do irmão gêmeo Renato. Porém, apesar de ser o fio condutor da história, o Christian de Cauã Reymond está longe de ser a parte mais interessante de Um Lugar ao Sol. Esse título pertence a outros personagens – ou melhor, a outras.

Um Lugar ao Sol parte de uma premissa simples, considerada um clichê das telenovelas: irmãos separados na infância que se reencontram depois de adultos. No caso, Christian e Christopher são gêmeos idênticos, nascidos no interior de Goiás. Após perderem a mãe no parto, Christopher é adotado por um casal rico do Rio de Janeiro, que muda seu nome para Renato. Já Christian é mandado pelo pai para um abrigo. Depois de adulto, resolve se mudar para o Rio atrás do irmão, que viu no jornal, em uma foto de um jogo de futebol.

Cena de Um Lugar ao Sol
Cauã Reymond como os gêmeos Christian e Renato (Imagem | Reprodução)

Anos se passam até Christian finalmente encontrar Christopher. Em dívida com os traficantes da favela em que vivia, Christian estava prestes a fugir para Minas com a namorada, Lara (Andréia Horta), e o irmão de criação, Ravi (Juan Paiva), quando seu destino mudou para sempre. Depois de uma noite de bebedeira ao lado do irmão perdido, ele conta a sua história, e Renato decide subir o morro para acerta a dívida no seu lugar. É morto a tiros. Para o mundo, porém, quem morre é Christian.

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A partir dessa trama inicial, Lícia Manzo explora questões que já apareceram em suas outras novelas, como identidade e relações familiares. Outra de suas assinaturas que a autora traz para a faixa das 21h é a presença de personagens femininas marcantes e extremamente complexas. Apesar do protagonista masculino, são as mulheres de Um Lugar ao Sol que carregam as principais tramas da novela e convidam o público a se identificar. Rebeca, Noca, Nicole, Elenice, Ilana e até mesmo as odiadas Bárbara e Joy são algumas das personagens que permanecerão na memória dos espectadores por tanto tempo quanto Christian e Renato.

Essa forte presença feminina não vem sozinha. Por meio de suas personagens, Lícia Manzo aborda questões femininas de forma raramente retratadas nas telenovelas. Entre as principais, estão uma visão não romantizada da maternidade e uma importante discussão sobre beleza, magreza, juventude e autoaceitação.

Menos força, mais complexidade

Quando falamos em personagens femininas fortes, não é raro que o primeiro tipo de força que venha à cabeça seja a física. No cenário das telenovelas, em que cenas de pancadaria não são comuns, o que se entende por uma protagonista forte, que fuja do estereótipo da mocinha sofredora, costuma ser uma mulher estoica, que não se permite chorar ou sofrer. O resultado muitas vezes é uma personagem unidimensional, com a qual as espectadoras não conseguem se identificar. Um exemplo é a mocinha Regina (Camila Pitanga) da novela Babilônia, fracasso de público e de crítica.

Portanto, o mais correto talvez seja falar não em personagens femininas fortes, mas em personagens complexas. O objetivo, afinal, é permear o mundo da ficção com mais mulheres tridimensionais, que não sejam apenas mocinhas virginais, femmes fatales, megeras ou mães resignadas. E, nesse ponto, Um Lugar ao Sol acerta e muito.

Andreia Horta como Lara em Um Lugar ao Sol
Andréia Horta como Lara (Imagem | Divulgação)

Das mulheres com papel central na trama, a mais chatinha de acompanhar é, sem sombra dúvida, Lara. A ex-namorada de Christian tem uma personalidade alegre e certinha demais que faz com que boa parte do público a ache sem tempero demais para ser neta de uma cozinheira de mão cheia feito Dona Noca (Marieta Severo).

Ainda assim, Lara se basta como personagem. Pensa e age uma pessoa de carne e osso. Ao mesmo tempo em que se mostra generosa e persistente, toma decisões equivocadas por ter perdido o homem que amava de maneira tão brusca. Por não ter conseguido viver o luto no seu próprio ritmo – em grande parte por culpa da avó –, Lara se casou rápido demais com Mateus (Danton Mello) e vive assombrada pelo fantasma de Christian. Ao mesmo tempo, porém, não consegue aceitar as dúvidas que sente a respeito do casamento e por pouco não topou engravidar sem vontade só para não perder a relação.

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O erro do qual Lara consegue desviar (mais uma vez, por intervenção de Dona Noca) é cometido por Ilana (Mariana Lima). A produtora opta por descongelar os óvulos e engravidar como forma de evitar uma crise no casamento com Breno (Marco Ricca). Contudo, logo fica claro que Breno só gosta de ser pai no mundo das ideias, e a crise se aprofunda. A típica empresária decidida e controladora da ficção, Ilana se vê abalada por uma gravidez de risco que ela não pode controlar e que a força a fazer escolhas inesperadas.

Tanto Lara quanto Ilana são mulheres que encaram a vida de frente, mas que são arrastadas pela correnteza quando o mar bate forte demais. E o mesmo pode ser dito de praticamente todas as outras personagens de Um Lugar ao Sol: nenhuma mulher da novela é exatamente fraca, mas sempre há momentos em que a força não basta. São tantos os “poréns” das personalidades das personagens que é difícil até mesmo apontar uma vilã para a novela, mesmo que haja algumas fortes candidatas.

Ana Beatriz Nogueira como Elenice
Elenice: de vilã a núcleo cômico (Imagem | Divulgação)

Elenice (Ana Beatriz Nogueira) queimou a largada da corrida de vilãs com a adoção extraoficial de Renato. Ela não apenas comprou um bebê como o separou do irmão gêmeo que, na época, estava doente. Anos depois, Elenice se tornou uma vigarista e uma mãe controladora, que vê no filho o bilhete de volta para o mundo dos ricos do qual ela foi expulsa após perder a herança do marido.

Contudo, Lícia Manzo fez uma escolha ousada: em vez de transformar Elenice em uma grade vilã, jogou-a para o núcleo cômico. O alpinismo social da personagem é ridicularizado ao ponto de ela se sentir atraída por um homem com tornozeleira eletrônica (claro sinal de golpista rico!) e de dizer para uma parente idosa em coma “Ô, tia, se você quiser ir, vai!”.

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A segunda a largar na disputa das vilãs é Bárbara (Alinne Moraes), namorada de Renato com quem Christian se casa. Herdeira da rede de supermercados Redentor, Bárbara é elitista, racista, mesquinha e invejosa. Sua ficha corrida inclui ajudar o namorado a se safar de um assassinato, dar um tapa na cara de uma criança e roubar um conto de uma colega do curso de escrita.

Entretanto, embora não dê para dizer que Bárbara é a grande mocinha da novela, a personagem possui camadas que a tornam digna não de redenção, mas de uma certa pena. Bárbara perdeu a mãe por suicídio ainda criança e se sente preterida pelo pai. Extremamente insegura, suas ações vêm de um lugar de profunda angústia. Assim como Lara, Bárbara se vê incapaz de viver um luto no próprio ritmo – no caso, pelo filho natimorto, Yuri. A dor faz com que ela chegue ao ponto de tentar se matar. A cena em que ela chora e diz para a irmã Nicole (Ana Baird) que gostaria de descobrir o que tem de errado com ela é de fácil identificação para qualquer pessoa que tenha sofrido por muito tempo com um transtorno psiquiátrico não diagnosticado.

Cena de Um Lugar ao Sol
Bárbara e Christian se casam (Imagem | Divulgação)

Tanto Bárbara e Elenice quanto Lara e Ilana são personagens que carregam multidões dentro de si. Boas ou más, elas possuem forças e fraquezas distintas que são exploradas igualmente pela autora da novela. São mulheres de carne e osso, embora fictícias, e as experiências apresentadas na trama são múltiplas. Porém, alguns temas se sobressaem.

A maternidade em Um Lugar ao Sol

A primeira forma como a questão da maternidade chama atenção em Um Lugar ao Sol é pela sua aparente ausência. A novela tem pouquíssimas mães no sentido tradicional da palavra: mulheres que deram à luz e criaram filhos, ou que os adotaram por meios legítimos ou não. O que temos, no geral, são mães ausentes e relações análogas à maternidade construídas de outras maneiras.

Bárbara e Nicole, por exemplo, perderam a mãe ainda jovens, assim como Lara. A ex-namorada de Christian, porém, tem a avó como figura materna. Sua relação com Dona Noca permite que ela se aproxime de Marie (Maju Lima), filha de Mateus. Órfã de mãe, Marie é incentivada por Lara a homenagear outra pessoa na festa de dia das mães da escola e escolhe o pai.

A ausência materna também é sentida por personagens cujas mães estão vivas e até mesmo presentes de alguma forma. Filha do primeiro casamento do empresário Santiago (José de Abreu), Rebeca (Andrea Beltrão) tem uma mãe com Alzheimer que a confunde com a neta, Cecília (Fernanda Marques). Interpretada por Débora Duarte, Eva morre em uma clínica de repouso, deixando um buraco na vida da filha que já havia começado a se abrir muito tempo antes. Já Felipe (Gabriel Leone), par romântico de Rebeca, tenta se reaproximar da mãe alcoólatra em recuperação após ter sido criado pela avó.

A maternidade em Um Lugar ao Sol
Mãe de Felipe, Júlia (Denise Fraga) é alcoólatra em recuperação (Imagem | Divulgação)

No caso das personagens cujas mães são presentes, a relação costuma ser conflituosa em maior ou menor grau. Cecília não se dá bem com Rebeca porque considera a mãe imatura e se incomoda com a pressão para seguir a carreira de modelo. Renato não suportava o comportamento controlador da mãe, ao passo que Christian não consegue fingir amor pela mulher que o abandonou.

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Por fim, Joy (Lara Tremouroux) tem um relacionamento abusivo com a mãe, Inácia (Yara de Novaes). O problema é agravado pela presença de Valdir (Roberto Alencar), namorado de Inácia que abusa sexualmente tanto de Joy quanto de Mimi (Maithê Rodrigues). O único que parece ter uma boa relação com a mãe na novela é Luan (Miguel Schmidt), filho da fisioterapeuta Érica (Fernanda de Freitas).

Essa forma de representar as relações entre mães e filhos não tem como objetivo falar mal da maternidade. O que Lícia Manzo faz em Um Lugar ao Sol é apresentar mulheres que são mães como seres humanos falhos. Afinal, ao contrário do que se diz por aí, nem toda mulher nasceu para ser mãe, e a maternidade não transforma ninguém em algo que ela não é. Da mesma forma, não é porque uma pessoa não tem mãe (ou não tem uma boa mãe) que ela não pode encontrar afeto e apoio em outro lugar.

Lara Tremouroux como Joy
Lara Tremouroux como Joy (Imagem | Divulgação)

Ser mãe, em Um Lugar ao Sol, não é padecer no paraíso. E a gravidez, na novela, também não é um momento mágico na vida de uma mulher. Lícia Manzo faz questão de tratar a gravidez de maneira sem romantizações, dando espaço para histórias que são muitas vezes varridas para baixo do tapete. Por meio de personagens como Bárbara e Ilana, que perde uma das filhas gêmeas no parto, a gravidez é apresentada como uma experiência difícil e potencialmente traumática.

E mesmo quando ela chega ao fim sem problemas para a saúde da mãe ou do bebê, o resultado nem sempre é o desejado. Joy, por exemplo, não perde seu filho com Ravi nem tem uma gravidez de risco, mas odeia ser mãe. Tanto, aliás, que chegou a procurar uma clínica clandestina para fazer um aborto. Isso não significa que ela odeie o filho, mas que não consegue se encontrar na maternidade.

Idade, corpo e beleza

A forma como o machismo impacta a vida das personagens de Um Lugar ao Sol se apresenta de diferentes formas: na obsessão de Santiago por um herdeiro homem, na impunidade de Valdir, na dificuldade de Breno em lidar com o sucesso de Ilana… A mais evidente, porém, é como o padrão de beleza imposto pela sociedade afeta as irmãs Rebeca e Nicole.

Modelo de sucesso no passado, Rebeca tem dificuldade para lidar com o envelhecimento e as ofertas escassas de trabalho. Ao mesmo tempo, ela está satisfeita com o próprio corpo e não quer se submeter a cirurgias plásticas. Presa em um casamento infeliz com Túlio (Daniel Dantas), Rebeca também se sente sufocada sexualmente.

Porém, tudo muda quando ela conhece Felipe. Namorado de uma amiga Cecília, Felipe se encanta por Rebeca, e os dois começam um relacionamento às escondidas. Rebeca não apenas se sente bonita e desejada, como também volta a entrar em contato com o próprio desejo, algo que é representado em uma rara cena de masturbação feminina.

Cena de Um Lugar ao Sol
Rebeca começa um relacionamento com Felipe (Imagem | Divulgação)

Rebeca é a única filha de Santiago que apoia o relacionamento do pai com Érica, uma mulher muitos anos mais jovem. Contudo, ela sabe que a mesma sociedade que aceita um relacionamento entre um homem idoso e uma mulher de 30 e tantos anos não veria com mesmos olhos o namoro dela com um universitário. Por isso, e por medo de desfazer o casamento, ela não tem coragem de assumir a relação com Felipe.

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Já Nicole se considera feia e indigna de afeto por ser gorda. Cheia de inseguranças, a atriz e comediante se esconde por trás de um humor agressivo e aceita ser maltratada pelos homens com quem sai. Para piorar a situação, sempre que alguém tenta ajudá-la (normalmente, Bárbara), é sugerindo um tratamento para emagrecer.

Ana Baird como Nicole em Um Lugar ao Sol
Ana Baird como Nicole (Imagem | Divulgação)

Entretanto, após se apaixonar por Paco (Otávio Müller), Nicole precisa dar início a um duplo trabalho de aceitação. A primeira parte é aceitar que ela pode ser amada do jeito que é e que, portanto, não precisa ter medo de se envolver. A segunda é aceitar que ela também pode amar Paco – afinal, ele também é gordo e não corresponde ao tipo de homem de que ela aprendeu que deveria gostar. É uma representação realista de como os nossos preconceitos internalizados também afetam a forma como vemos os outros. Nicole quer ser gorda e amada, mas não acha isso possível, logo, porque ela amaria Paco?

O que poderia ser diferente em Um lugar ao Sol?

Embora a novela traga personagens bem desenvolvidas e levante debates importantes sobre temas que costumam cercar a vida das mulheres, nem só de elogios vive uma crítica da representação feminina em Um Lugar ao Sol. A trama tem alguns problemas que poderiam não existir. O primeiro deles tem a ver com Nicole.

O texto de uma novela é sempre repetitivo. Ao contrário do que algumas pessoas acham, novelas não foram feitas para serem vistas diariamente. É por isto que a indústria do spoiler de novela é tão forte: para que o público saiba quais capítulos não pode perder. Já o texto repetitivo ajuda o espectador a se situar na trama se precisar pular um capítulo ou cinco.

No caso de Nicole, os comentários gordofóbicos vêm sendo repetidos à exaustão para que o público entenda o quanto ela sofre por ser gorda. Já deu para entender que eles não devem ser tomados como um bom exemplo e que a trama da personagem vai caminhar em outra direção. Ainda assim, a quantidade de piadinhas e lições de coach de emagrecimento por episódio tem deixado as cenas de Ana Baird chatas e desagradáveis. A trama já poderia ter avançado um pouco mais sem prejuízo para os espectadores.

Indira Nascimento como Janine em Um Lugar ao Sol
Indira Nascimento como Janine (Imagem | Divulgação)
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Outro problema da novela é um que afeta grande parte das produções do gênero: a falta de diversidade. Ilana deve começar um relacionamento com a médica Gabriela (Natália Lage) nos próximos capítulos, mas, até agora, todas as personagens são apresentadas como cis e heterossexuais.

No campo da diversidade racial, a coisa não é muito diferente. A novela tem três personagens negras, todas pouquíssimo exploradas. Dalva (Ju Colombo) teve uma história curta no começo da novela na qual resolvia aprender a ler, mas foi reduzida a núcleo de apoio de Dona Noca. Já Ruth (Pathy Dejesus) não faz nada além de ser amante de Túlio. A personagem negra de mais destaque na trama foi Janine (Indira Nascimento), a colega de classe de quem Bárbara rouba o conto. Embora tenha tido um arco interessante descobrindo o próprio valor como escritora, a personagem sumiu após ser revelada como a verdadeira autora.

Devido às mudanças no ritmo de produção causadas pela covid-19, Um Lugar ao Sol não está sendo gravada enquanto vai ao ar. A novela já está toda pronta. Portanto, não dá para mudar a trama de acordo com a resposta do público. Ainda assim, é importante apontar os pontos em que Um Lugar ao Sol poderia melhorar, bem como os pontos em que a novela está indo bem. Lícia Manzo traz um novo olhar para um gênero tão importante para a cultura popular brasileira e a autora é ótima no que faz. Porém, ainda há espaço para melhorar.

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Tradutora, jornalista, escritora e doutoranda em Linguística, na área de Análise do Discurso. Gosta de cinema, de ficção científica, de cinema de ficção científica e de batata. Queria escrever quando crescesse e, agora que cresceu, continua querendo.
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