Sopranos: uma nova página para as personagens femininas na TV

Sopranos: uma nova página para as personagens femininas na TV

Sopranos, ou Família Sopranos no Brasil, foi o primeiro grande sucesso da HBO. Sendo premiada 21 vezes no Emmy (dentre suas 111 indicações), a série é considerada uma das maiores obras feitas para TV. A obra narra a história de Tony Soprano (James Gandolfini), um dos chefões da máfia de New Jersey, que começa a fazer terapia devido aos seus ataques de pânico. Sopranos foi criada por homens, protagonizada por homens e direcionada para homens. Ou pelo menos, é o que parece ser. Até que então, a série nos surpreende apresentando discussões muito importantes, inclusive sobre as nuances do que é ser uma mulher na sociedade.

Abordando temas como estupro, violência doméstica, pedofilia, dentre outros, Sopranos não é meramente um programa de TV sobre a máfia, mas algo que retrata a sociedade em que vivemos e a maneira como isso nos afeta. Dessa forma, essa aclamada série de 1999, marca o início de uma nova fase na era televisiva, onde um show de TV deve servir para debate, e não mero entretenimento.

ALERTA DE GATILHOS: O texto apresenta conteúdo sensível sobre violência doméstica e abuso sexual.
ALERTA DE SPOILER: As primeiras partes do texto não contém spoilers graves, mas os dois últimos segmentos sim, então se você ainda não assistiu, fique alerta.

As mulheres na vida de Tony Soprano

James Gandolfini como Tony e Jamie-Lynn Sigler como Meadow no seriado "Família Sopranos"
James Gandolfini como Tony e Jamie-Lynn Sigler como Meadow no seriado “Família Sopranos” | Imagem: HBO / reprodução

Em primeira análise, é machista o ato de encarar algumas personagens como simplesmente “mãe de Tony Soprano”, “esposa de Tony Soprano” ou “filha de Tony Soprano”. Isso é um fator comum na visão dos personagens masculinos, além de certa parte dos fãs do seriado. Todavia, não é o objetivo de Sopranos tornar essas personagens apenas um fator secundário da trama, uma vez que a obra se aprofunda a cada episódio através dos dramas pessoais dessas mulheres. Tendo isso em mente, boa parte do machismo vem por parte do próprio público, que sem compreender o que ali é proposto, se torna justamente o que a série critica: uma parte dessa sociedade patriarcal e preconceituosa em que vivemos.

Dentro da maior parte de Sopranos, as personagens femininas não são enxergadas como indivíduos únicos, com seus próprios gostos, anseios e necessidades. Tais personagens são ignoradas e menosprezadas pelos homens da série. Portanto, existe uma dualidade nelas: a violência da vida de seus maridos, irmãos, filhos, amantes, contra a inabalável esperança que as mantém sãs. Essa dualidade delineia suas personalidades e cotidianos, além de representar a pluralidade do que é ser mulher.

Carmela Soprano

É impossível falar das mulheres em Sopranos sem falar de Carmela. Carmela Soprano (Edie Falco) é o clássico retrato de uma mulher “bela, recatada e do lar”. Ela é a primeira-dama de Tony Soprano, a Rainha-Mãe. Ela acredita ser natural para o homem cair em tentação e trair a esposa. Por outro lado, pensa que a mulher deve ser mais forte, tolerando tudo em nome dos valores da família tradicional.

Edie Falco como Carmela Soprano na série "Sopranos" da HBO
Edie Falco como Carmela Soprano no seriado “Família Soprano” | Imagem: HBO / reprodução

Carmela demonstra uma força inigualável para educar seus filhos, manter Tony em casa e cuidar das atividades domésticas. Mas não é porque suporta tantas humilhações que merece ser humilhada, e entender isso lhe exige mais força do que qualquer outra coisa. Além disso, Carmela não só vive assim, como perpetua esse sistema de abuso.

Por exemplo, quando sua amiga Angie Bompensiero (Toni Kalem), esposa do mafioso Pussy (Vincent Pastore), diz que vai se separar do marido, Carmela se sente incomodada. Assim, após um episódio inteiro de impasse por parte da mulher, Carmela lhe diz: “Eu sei que no fim, você não vai deixá-lo”.

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E ela de fato não o deixa. Carmela, no entanto, não pensa isso por si só: são séculos de exploração feminina que moldam seu pensamento dessa maneira. A sociedade machista onde ela está inserida a faz crer e perpetuar a ideia de que uma mulher deve preservar o lar, custe o que custar. Inclusive tolerar abuso moral, psicológico, e por vezes, físico.

Toni Kalem como Angie Bompensiero no seriado "Sopranos"
Toni Kalem como Angie Bompensiero em “Sopranos” | Imagem: HBO / reprodução

As amantes 

Mas Carmela vive em uma mansão, ganha joias e dinheiro aos montes! Como isso pode ser abusivo? Infelizmente, muitas mulheres não percebem que estão em um relacionamento abusivo, pois nem todos os sinais são óbvios. Alguns não estão relacionados a ataques físicos ou verbais, mas através das pequenas humilhações diárias. Tony praticamente chantageia Carmela para ser sua esposa, como se manter os custos da casa fosse um favor que ela precisa pagar. É esse tipo de sinal de abuso que muitas vezes não é notado, mas ainda está ali.

As amantes de Tony Soprano
Oksana Lada como Irina Peltsin na série “Sopranos” | Imagem: HBO / reprodução

Para Tony, emocionalmente, seus casos extraconjugais não significam nada. Tudo o que o personagem precisa é pago através das jóias, da mansão, da escola caríssima dos filhos. Tudo isso para que Carmela continue com ele, pois ele precisa dela, só não sabe merecê-la. Carmela, porém, não está muito distante das inúmeras amantes de Tony: todo o luxo que possui não supre um tratamento digno que nem ela ou as amantes recebem. Todas essas mulheres, portanto, estão no mesmo patamar de menosprezo deste homem.

Uma tradição patriarcal

Outro ponto importante para analisar é o papel da Igreja na instituição da família. A máfia de New Jersey, da qual os personagens fazem parte, foi fundada por imigrantes italianos muitas décadas antes de Tony, e as famílias que a compõe ainda são as mesmas conservadoras, italianas e católicas. Porém, ao longo da série muitas críticas à Igreja são feitas, dentre elas, o fato de várias pessoas seguirem com hipocrisia as normas religiosas. Por exemplo: não incomoda mais a Carmela as atividades ilegais de seu marido do que uma mulher que quer simplesmente se divorciar.

Esse modo de vida perpetua certos pensamentos machistas, provenientes de uma estrutura patriarcal. Outro exemplo, é quando Richie (David Proval), tio de Adriana (Drea de Matteo), confronta Christopher (Michael Imperioli) sobre as agressões contra a moça. Em cena, Richie diz:

“Se você encostar na minha sobrinha de novo, eu te mato. Quer bater nela? Case-se com ela, depois disso, não será mais problema meu.”
O patriarcado e a violência contra mulher em Sopranos
Adriana La Cerva (Drea de Matteo) e Christopher Moltisanti (Michael Imperioli) em “Família Sopranos” | Imagem: HBO / reprodução

Sendo assim, no contexto de Sopranos, o casamento é um contrato, não muito diferente da máfia. Ao se casar e entrar na máfia o homem se torna proprietário da mulher e submisso ao chefão da “família”. Os homens de Sopranos usam as mulheres como bem entenderem, seja como um aparato para o sexo – no caso das amantes – ou para terem filhos e evitarem a solidão – no caso das esposas.

Tal pai, tal filho?

Tony Soprano, porém, não foi criado para ser um personagem agradável. Ele tem alterações de humor muito rápidas e frequentes, além de ser violento e traumatizado. E é por isso que vai à terapia. Por outro lado, o personagem está dividido em duas vidas: ser um mafioso respeitado e ser um bom pai, esposo, filho e irmão; o que o caracteriza como um anti-herói. Mas o que Tony tem a ver com a representação feminina na série? Bom, tudo.

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Torna-se claro que diversos comportamentos de Tony Soprano estão relacionados com a masculinidade tóxica, desenvolvida desde a infância pela influência paterna e materna. Em alguns momentos da série, vemos Tony não como o homem violento e insensível que comanda a máfia e trai a esposa, mas um menininho assustado que viu o pai arrancar os dedos de um homem.

Contudo, embora a série brinque com o conceito de mafiosos terem duas vidas distintas, é impossível separá-las na prática. Como um homem que bate na esposa pode ser um bom pai? Como um homem que assassinou uma jovem inocente pode ser um bom amigo?

Masculinidade tóxica

O feminismo e a desconstrução das estruturas patriarcais da nossa sociedade não são necessários apenas para as mulheres, mas para todos, incluindo homens brancos e héteros. Carmela reproduzia apenas o que já lhe fora imposto desde criança: ser obediente ao seu marido. Tony faz o mesmo, tendo uma dificuldade real em entender que chorar, procurar ajuda psicológica e ser fiel a esposa, não são fraquezas. Porém, é fato que a depressão de Tony não justifica nenhum de seus atos criminosos ou violentos.

Masculinidade tóxica na série "Sopranos"
Michael Imperioli como Christopher Moltisanti no seriado “Família Sopranos” | Imagem: HBO / reprodução

A masculinidade tóxica é um dos temas mais delicados e bem tratados da série, e não apenas a de Tony, mas a de Christopher Moltisanti, por exemplo. Christopher tinha o sonho de ser escritor, mas nunca superou o luto pela morte brutal de seu pai, e assim busca na máfia a única conexão com a figura paterna da qual nunca chegou a receber afeto.

AVISO: O restante do texto contém spoilers das 4 primeiras temporadas de Sopranos!

A violência em Sopranos

Os criadores de Sopranos não nos pouparam de mostrar violência extrema, nudez, drogas e outros elementos que tornam a série muito pesada. Entretanto, todos esses recursos servem para o mesmo objetivo: mostrar o mundo como ele é, sem escrúpulos. Porém, não podemos nos esquecer da impactante cena do estupro de Doutora Melfi.

Existe, atualmente, uma discussão importantíssima sobre o uso do estupro como recurso narrativo, afinal, é muito difícil falar de uma violência tão extrema sem ferir emocionalmente quem realiza a cena e quem a assiste. No geral, a situação serve para representar o caso real de inúmeras mulheres que passam pelo mesmo tipo de violência. Mas até que ponto é necessária a cena do estupro em si?

A violência em Sopranos
Lorraine Bracco como Doutora Melfi e James Gandolfini como Tony Soprano no seriado “Sopranos” | Imagem: HBO / reprodução

A série concentra a atenção nos sofrimentos da Doutora Melfi, na sua busca por entender seus sentimentos e seguir em frente apesar da violência que sofreu. Não é para que vejamos um homem espancando outro homem por vingança, é para que entendamos que isso acontece, seguirá acontecendo, mas ninguém está só em tudo isso. No entanto, a cena é polêmica por não ser essencial para o debate e é ainda por cima brutal. No fim, é difícil dizer até onde retratar um estupro de maneira tão explícita é aceitável, mesmo que seja para discutir o assunto. Mas uma coisa é certa: precisamos falar sobre isso.

Vale destacar que nenhuma história de violência doméstica e abuso sexual tem um “final feliz”, pois essas histórias falam sobre dor e violência. Ponto. A superação é um caminho árduo e contínuo, mas o suporte que as vítimas recebem e as ações para prevenir futuros ataques é essencial. Essas denúncias por meio de produções midiáticas devem servir para mostrar possíveis reações a problemas reais, dores reais. Não é uma história de vingança, não é uma história de redenção.

O que as personagens femininas de Sopranos nos ensinam

Existem diferentes tipos de violência: psicológica, doméstica, sexual, e todas são representadas em Sopranos.  Apesar de diferentes, todas essas violências nos relembram que há algo muito errado na sociedade.

Mais de 20 anos separam a estreia de Sopranos e o ano de 2021, mas pouca coisa mudou em relação à violência contra a mulher. Os números do feminicídio no Brasil e no mundo seguem alarmantes, assim como os casos de estupro. Na cultura pop, todavia, temos cada vez mais vozes para esse tipo de denúncia, dentro das telas ou fora delas.

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Por fim, por mais que a série trabalhe bem muitas de suas representações femininas, é válido dizer que Sopranos pecou em muitos momentos, reforçando estereótipos e apresentando uma violência quase gratuita contra a mulher. Existe, portanto, uma grande diferença entre representar uma violência contra mulher para apresentar um problema real, e apenas chocar os telespectadores. A série pode acertar  em várias ocasiões, mas seja como for, seus roteiristas e diretores ainda são homens, e isso em si já é parte de um problema.

O que as personagens femininas de Sopranos nos ensinam
Meadow Soprano (Jamie-Lynn Sigler) e Carmela (Edie Falco) em “Sopranos” | Imagem: HBO / reprodução

Ademais, Sopranos abre portas para uma nova maneira de representar as mulheres e seus problemas. Não é, em suma, uma série perfeita, mas sua importância nesse sentido é inegável.

Se você está passando por algum tipo de violência, ou conhece alguém que está, não hesite em procurar ajuda. Ligue 180 para um atendimento 24 horas ou procure a delegacia da mulher mais próxima.
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Estudante de Letras na Universidade de São Paulo, apreciadora de boas histórias e exploradora de muitos mundos. Seus sonhos variam entre viajar na TARDIS e a sociedade utópica onde todos amem Fleabag e Twin Peaks.
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