Em Charuto de Mel, filme da diretora Kamir Aïnouz, conhecemos a história de Selma (Zoé Adjani), uma jovem de 17 anos, que é filha única e vive com seus pais argelinos na França. Quando entra em uma escola preparatória, Selma conhece um rapaz chamado Julien (Louis Peres), cujas primeiras palavras que lhe dirige são “Belo sorriso. Belos peitos”.
O mundo que Selma adentra contém jovens que falam toda hora de sexo, claramente querendo se gabar de experiências que nem tiveram de verdade. Em Charuto de Mel, a protagonista tenta fazer de tudo para se enturmar, desde responder à altura como participar de um trote envolvendo humilhação sexual na frente dos outros alunos.
Prazer feminino: autoconhecimento ou pressão cultural?
Ao mesmo tempo em que Selma se sente atraída por Julien, também tem alguma noção de como isso pode ser uma cilada. Dessa forma, ela tenta se proteger quando ele dá em cima, e se afasta quando ele começa a demonstrar desinteresse após conseguir o que queria.
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Por outro lado, Selma também busca se adequar ao que ele quer dela. Quando ele a esnoba dizendo que ela é uma virgem inexperiente, ela tenta “tirar a própria virgindade” sozinha, antes de ir novamente atrás dele. Esta cena foi aplaudida por muitos críticos, mas na verdade consiste na coisa mais triste que pode existir na vida sexual das mulheres, embora seja muito comum: fazer as coisas não por si, ou por prazer e autoconhecimento, mas por pressão de outros.
A diretora Kamir Ainouz (meia-irmã do diretor brasileiro Karim Ainouz, e quase sua homônima) busca retratar como Selma consome conteúdo sobre sexo, mas tal conteúdo só mostra o sexo como uma performance: são podcasts falando sobre sexo anal como um espetáculo, livros que idealizam o ato como algo transcendental e perfeito, e suas próprias olhadas no espelho, admirando seu corpo.
O retrato do sexo sem a objetificação da protagonista
Kamir mostra essas cenas para que constatemos como é isso que se ensina às meninas quando iniciam sua vida sexual, e é isso que elas vão reproduzir. Ela não tem interesse em objetificar sua protagonista. Não há cenas de nudez em Charuto de Mel, e mesmo nas cenas de sexo com os rapazes, são exibidos apenas os rostos dos personagens.
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Em entrevista, a diretora comentou que queria mostrar o sexo através da emoção da protagonista, pois já sabemos o que está acontecendo no corpo dela, não precisamos ver em si. E Kamir Ainouz é muito bem sucedida nesse aspecto. A ótima atuação de Zoé Adjani permite expressar muito bem os sentimentos de Selma durante esses momentos.
É uma pena que os sentimentos sejam sempre um misto de insegurança e falta de prazer. Selma tem parceiros que pensam apenas em si mesmos, e um deles inclusive é, digamos, violento e abusivo (para evitar spoilers). É um sexo rápido, sem graça, sem preliminares, como é para talvez a maioria das mulheres pelo mundo afora ainda hoje em dia. E, ao final, ainda há a responsabilidade de fingir para o homem que aquilo foi prazeroso, para alimentar a autoestima dele.
Charuto de Mel não é uma história sobre erotismo e libertação feminina
Selma tem desejo e consome produtos que idealizam o sexo, mas não consegue encontrar nada próximo disso no mundo real. Embora essa seja uma realidade comum a muitas mulheres, não deixa de ser a constatação de uma tragédia coletiva. O trailer do filme faz parecer que será sobre o despertar erótico de uma garota, quando na verdade é muito mais sobre a frustração de ser mulher numa sociedade patriarcal.
Soma-se a isso a vida conjugal conturbada dos pais de Selma, além do conservadorismo deles sobre as saídas noturnas da filha, o que só faz com que ela tente ser mais rebelde. Há também em outro momento a inserção da guerra civil na Argélia dos anos 90 como pano de fundo, o que serve como espelhamento para os conflitos que Selma vive em sua vida pessoal e familiar.
Kamir Ainouz fala muito sobre empoderamento nas suas entrevistas, mas esse elemento é no máximo alusivo no filme. Talvez Selma consiga navegar sua vida e encontrar caminhos mais libertadores lá na frente, mas a duração de Charuto de Mel se resume mais a constatar as tragédias e percalços impostos pelas amarras do machismo e do racismo contra a origem argelina da protagonista.
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Há, segundo a diretora, alguns elementos autobiográficos na história, e inúmeras mulheres poderão se identificar com situações pelas quais Selma passa. Há também o enorme mérito de se conseguir filmar cenas sexuais interessantes apenas focando no rosto das atrizes e atores, o que é um grande feito, além de também incluir uma abertura envolvente com uma animação abstrata que alude a vulvas pulsando junto com a trilha sonora. Porém, é triste que Charuto de Mel acabe sendo muito mais sobre as frustrações e as tragédias da realidade do que sobre erotismo e libertação.
Charuto de Mel está atualmente nos cinemas.