Imaculada: é possível escapar da tradição?

Imaculada: é possível escapar da tradição?

Imaculada (Immaculate) centra seu horror nas raízes do patriarcado, remetendo constantemente à tradição cristã, especificamente católica, que tem um forte histórico de dominação do corpo feminino. Essa dominação se manifesta nos papéis estruturais impostos às mulheres, tanto no convívio social quanto na vida privada: mulheres são vistas como seres destinados ao amor e, portanto, à maternidade e ao casamento.

O convento italiano, cenário do filme, serve como uma miniatura do mundo, onde as mulheres, vigiadas por Deus e pelas tradições da Igreja, reproduzem valores que parecem cada vez mais ultrapassados. Como salvar essa casa tão antiga? O mundo cresce ao redor dela, enquanto os portões estão cada vez mais fechados.

Sydney Sweeney interpreta a jovem Cecília, uma moça de olhos grandes e inocentes. Ela chega em uma terra estrangeira, onde falam uma língua estranha aos seus ouvidos, mas isso não importa: no convento que será sua casa, a palavra de Deus ainda é a mesma. E isso, ela sente no coração.

O lado misterioso de Deus e os embates de fé nunca são uma questão para Cecília. Ela chega a dizer que estar ali sequer é uma escolha. Há um propósito divino, e ela deve segui-lo. Não há dúvida sobre quem ela é. Seu papel naquela ordem religiosa está definido. Entre os diversos labirintos do convento, cada mulher parece saber seu lugar, abandonando sua individualidade para se tornar mais uma ovelha do rebanho.

Cecília (Sydney Sweeney) em "Imaculada"
Cecília (Sydney Sweeney) em “Imaculada” | Divulgação

O que define um terror?

O que há de sobrenatural nisso tudo? Assim como a igreja tenta recuperar seu espaço, o mundo espiritual, intangível, busca seu lugar em narrativas cada vez mais materiais. A fidelidade à representação torna-se mais importante do que as coisas invisíveis, que podem ser captadas pela magia do cinema.

A técnica, calculista com seus sons e ângulos, resiste em entrar plenamente no gênero que parece emular. O terror em Imaculada é gelado, como o gelo em que Cecília quase se afoga. As cenas mais escabrosas ficam espaçadas, sem que sejamos realmente comovidos por elas. A quantidade de gore não é suficiente para que um terror provoque medo, ou que um filme seja, de fato, um terror.

Da mesma forma, a relação com a Igreja não faz de Imaculada um filme sobre demônios. Quer dizer, depende do tipo de demônio que você estiver imaginando.

Sem trazer nada muito novo, o filme consegue ter um desenvolvimento linear conciso e organizado, com algumas poucas coisas que saltam aos olhos. O tão elogiado final provoca, de fato, sentimentos conflituosos. Entre dúvida, aversão e ansiedade, somos jogados naquele momento ao lado de Cecília. Com os efeitos sonoros e a violência muito explícita, o filme calcula cuidadosamente onde colocar sua tensão.

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AVISO: Parte com spoilers!

O corpo feminino e as relações entre mulheres no filme Imaculada

Sobre as tradições, Imaculada resgata tropos do gênero do terror. O aprisionamento do corpo e da mente feminina, por exemplo, é elaborado em diferentes instâncias: a primeira freira do filme é enterrada viva; Cecília quase se afoga no gelo, e outra vez no convento. O próprio local em que estão é uma espécie de prisão (e uma um tanto óbvia).

Por fim, o feto desenvolvido em seu ventre é uma prisão, dentro da outra. Um corpo estranho colocado ali sem sua permissão. Esse talvez seja o tema mais batido abordado pelo filme. O maior horror é não ter escolha sobre si. E isso está além do dilema do livre arbítrio diante de Deus. É algo muito real e abordado como uma questão feminista, principalmente através das falas da Irmã Gwen.

Vale ressaltar que a Irmã Gwen (Benedetta Porcaroli) é quase um estereótipo, sem uma participação significativa, infelizmente. Sua amizade com Cecília dava muita dinamicidade às cenas. Um pouco de leveza, um pouco mais de desenvolvimento para ambas, e a revelação do convento. Isso é deixado de lado, mas o filme é mesmo muito curto.

Na verdade, apenas Cecília é desenvolvida – afinal, ela é a adorada por ser imaculada. Irmã Isabelle (Giulia Heathfield Di Renzi) também teve um papel muito interessante, vale dizer, mesmo que um tanto reduzido.

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Cena do filme "Imaculada" (2024)
Cena do filme “Imaculada” | Divulgação

Patriarcado e blasfêmia em Imaculada

Ainda sobre os rastros de algum feminismo no filme, mesmo sendo um lugar administrado sobretudo por mulheres, os três homens da história possuem poderes únicos e manipulam todas as situações.

O padre mais jovem, o cardeal e o médico detêm controle sobre a vida das mulheres, tanto no sentido espiritual quanto físico. A lei suprema está nas mãos deles, dada por uma figura masculina. É interessante notar que os problemas derivados do fanatismo são estruturais naquele mundo, mas perpetuados principalmente por quem mais se beneficia dessa estrutura.

Desde o momento em que a câmera foca no olhar hesitante de Cecília ao beijar o anel do cardeal (Giorgio Colangeli), fica claro que aquele mundo é, como o nosso, um mundo dos homens. Como Irmã Gwen diz: “Eu acredito em Deus, porque só um homem poderia ter deixado o mundo assim.”

Patriarcado e blasfêmia em Imaculada
Cena do filme “Imaculada” | Divulgação

Podemos nos lembrar sobre a história do Barba Azul: quando Cecília descobre o corpo da amiga na catacumba e percebe que o homem a havia enganado o tempo todo, e enganado tantas outras antes dela.

Se amor é sofrimento e os trabalhos de cuidado são todos das mulheres, o destino delas também seria sofrer. São as tentativas desesperadas de uma Igreja que precisa recorrer à ciência para sobreviver neste mundo incrédulo. E sua tentativa de adaptação gera anomalias, como as freiras que aparecem em alguns momentos com máscaras vermelhas.

A ideia de uma organização interna da Igreja que atue sem escrúpulos, violentando mulheres, foi interpretada como blasfema por alguns. Evidentemente, abordar a Igreja como uma organização problemática gera discussões. Mas, afinal, quem usa o texto bíblico para justificar a violência são os próprios religiosos do filme! E eles são, claro, “os vilões”. Indubitavelmente. Cecília, inclusive, chega a dizer: “Deus jamais perdoará vocês.”

Como contar e o que contar

Cena do filme "Imaculada" | Divulgação
Cena do filme “Imaculada” | Divulgação

Afinal, é possível contar novas histórias? Imaculada falha em seguir o melhor de qualquer tradição do cinema de terror, mas também falha em criar algo novo.

Entre uma história macabra, espiritualmente, e uma crítica potente ao patriarcado consolidado pela Igreja, Imaculada se perde em um limbo. Um limbo do qual temos apenas sombras, e não muito além de sombras, de discussões muito importantes, como o aborto e o fanatismo religioso.

Já sobre os sustos, o filme consegue construir uma atmosfera de estranhamento crescente com uma ótima atuação de Sydney Sweeney.

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32 Textos

Estudante de Letras na Universidade de São Paulo, apreciadora de boas histórias e exploradora de muitos mundos. Seus sonhos variam entre viajar na TARDIS e a sociedade utópica onde todos amem Fleabag e Twin Peaks.
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